Exposições

Ana Mendieta: corta-se uma árvore, ficam as raízes

Ana Mendieta & Talita Trizoli Publicado em: 19 de janeiro de 2024

Vista da exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, no Sesc Pompeia, São Paulo, 2023-2024. Foto de Joana França.

Yagul é o nome em zapoteca de um sítio arqueológico que ocupa cerca de 1.000 hectares na província de Oaxaca no México. Constituído por um agrupamento de três seções arquitetônicas (edificações de caráter militar, religiosa e residencial), o lugar tem sido um ponto de atração para incursões científicas, turísticas, religiosas e até mesmo artísticas. No complexo religioso, entre os vestígios de pátios e salas de convívio, foram desenterradas entre 1950/60 nada menos que 30 tumbas cerimoniais, ornamentadas com hieróglifos e efígies que emergem das paredes de pedras vulcânicas típicas da região. Há um contraste evidente entre a aridez dessas pedras, com os pontos verdes de vegetação que perduraram após séculos de cultivo agrícola, combates colonialistas e dilapidação moderna. Também foram encontradas, no entorno das ruínas dessa antiga cidade, diversas pinturas e incisões ditas rupestres que indicam a dimensão xamânica que ordenava a estrutura social das diversas gerações que ali habitaram – até o advento da invasão espanhola. São figuras de animais e humanoides, juntamente a hieróglifos e símbolos que remetem a nosso arcabouço astrológico, eternizados ali com pigmentos branco e vermelho sobre as rochas das cavernas (as mesmas cores que ornamentavam as paredes do complexo residencial, um branco arenoso e reluzente, um vermelho sanguíneo denso).

A cidade-ruína do Pueblo Viejo ou da “Árvore Velha” [1] tem sua ocupação remontando cerca de 500/700DC, mas é em 1973 que a jovem recém-naturalizada estadunidense Ana Mendieta segue para Oaxaca, em uma de suas diversas viagem ao México [2]. Seu encontro com o silêncio e o calor de Yagul constitui uma Bildungsreise (viagem de formação, em uma tradução livre do termo em alemão) que foge da rota turística predatória, e que impressiona a jovem artista tanto pelo intenso contraste em relação ao frio de Iowa, onde ela residia, quanto pela dimensão telúrica das ruínas e imagens nas paredes das cavernas do entorno – é justo ali em Yagul, entre as tumbas e vestígios de uma civilização massacrada, que se inicia a longa série de trabalhos Silhueta, a mais popular de sua breve carreira.

Nascida em Cuba no seio de uma família de classe média alta, com antecedentes políticos e inclinações partidárias estadunidenses, a trajetória de vida de Mendieta pode ser considerada banal no que tange seu deslocamento migratório e político para a época. Mas é também singular pelos detalhes e anedotas (poéticas e trágicas, simultaneamente), o que a torna tão fascinante.

Ainda uma pré-adolescente, Ana foi enviada junto com sua irmã Raquelin Mendieta para o estado norte-americano de Iowa em 1961, dentro de um programa apelidado de Operação Peter Pan, uma parceria orquestrada pela Igreja católica com o governo de Eisenhower. Tratava-se de um êxodo clandestino e forçado que, ao longo de dois anos, retirou de Cuba milhares de jovens pertencentes a famílias ligadas ao movimento de antirrevolução do governo de Fidel Castro, e que foram instalados em campos de refugiados e orfanatos – Mendieta e sua irmã foram residentes no orfanato de Dubuquet e em diversos lares temporários até 1966, quando sua mãe finalmente adentra ao território estadunidense, seguida por seu marido em 1979.

Frame do vídeo Raquel Cecilia Mendieta on Ana Mendieta at Galerie Lelong, publicado no site oficial da artista.

Desterrada em sua infância tardia, e habitando um corpo feminilizado e racializado em um território hostil ao qual fora lançada sem consulta, a jovem artista passa a elaborar trabalhos em que o desejo de pertencimento e integração com uma dimensão autóctone e mítica impera como norteador de suas pesquisas, juntamente a concepções de cura e transcendência via a experiência estética.

Os vestígios da civilização em Yagul são um disparador para Mendieta elaborar um conjunto vocabular de signos que marca sua singularidade plástica. A silhueta na escala de seu corpo, o pigmento vermelho ou sangue animal, o uso de pólvora e lama, diversos elementos vegetais e animais como flores e penas, além de referenciais místicos e índices de violência ritualística formam um quase dialeto em que o princípio de transmutabilidade alinhava pouco mais de 10 anos de carreira – interrompidos em 1985 com sua morte prematura.

Vista da exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, no Sesc Pompeia, São Paulo, 2023-2024. Foto de Joana França.

Na exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, individual da artista em cartaz no Sesc Pompeia, com curadoria de Daniela Labra, o conjunto de vídeos e fotografias selecionados consegue condensar esses diversos elementos formativos, que fazem com que a produção de Mendieta ocupe um lugar de fascínio, assombro e desejo no observador – e, principalmente, no imaginário daqueles inclinados às dimensões da feminilidade (e feminilidade aqui entendida como linguagem, e não necessariamente como matéria orgânica ou de concepção essencialista).

A expografia de aspecto octogonal elaborada pelo estúdio GRU forma um labirinto que guia o espectador por um percurso de penumbra, interrompido pelas projeções de vídeo e pelos reflexos no fio de água da arquitetura de Lina – que aliás, dialoga diretamente com a dimensão telúrica do trabalho de Mendieta, assim como o chão de pedras, as paredes de tijolos à vista, e a lareira que é ligada nos picos de inverno. A escolha fortuita do espaço do Sesc Pompeia para essa exposição permite ao espectador uma faísca de sensorialidade que Mendieta (talvez) obteve ao adentrar as cavernas de Yagul, com os contrastes de temperatura, a ausência e presença de vegetação, e o ruído aquoso do entorno pantanoso.

Esse pequeno fio de água, aliás, que sibila atravessando o grande galpão industrial adaptado para o Sesc, permite um contraponto de trajeto ao labirinto expográfico da mostra, principalmente quando o elemento água passa a integrar as peças da artista (rios, riachos e praias com ondas quebrantes dividem o espaço nos negativos projetados com cenas bucólicas de Iowa, México e Cuba, e algumas vistas mais soturnas, como cemitérios e ambientes domésticos à meia luz).

A produção de Mendieta mescla dimensões ritualísticas de expurgo, restauro e perlaboração da experiência de ser no mundo. Paira nela um declarado desejo de transmutação e transitoriedade, onde essas obras são sintomáticas do estado de espírito da artista, de sua existência entre culturas, de não-lugar. A dimensão material de fluídos e pós funcionam como dispositivos de limpeza do corpo, são elementos de trânsito para mudanças de estado interior; líquidos aquosos ou plasmáticos, terras ou poeiras de diferentes cores estruturam e nutrem esse corpo que almeja acolhimento, mas que também imola seus ícones.

Frame do vídeo Raquel Cecilia Mendieta on Ana Mendieta at Galerie Lelong, publicado no site oficial da artista.

De formação católica conservadora, a família da artista em Cuba não tinha contato com as vertentes sincréticas das religiões de matriz africana, nas quais é tão cara a experiência da transcendência e das trocas materiais – por conseguinte, o envolvimento tardio dela com as práticas xamânicas e místicas da santería operam por uma lógica quase antropológica, de procura por sinais e técnicas de conexão com um passado nunca vivenciado, uma certa romantização mística de retorno à uma origem inexistente.

“Acredito que isso tenha sido resultado direto de ter sido arrancada de minha terra natal (Cuba) durante minha adolescência. Estou dominada pela sensação de ter sido expulsa do ventre (da natureza). Minha arte é a forma como restabeleço os laços que me unem ao universo.” [3]

Essa presença de um ritornelo matriarcal na obra da artista indicia seu contato com diversas operações que emergiam na vanguarda artística do período, como as ditas landart (instalações, interferências e projetos em locais “naturais” e “selvagens), a bodyart (obras onde o corpo é suporte, veículo e problema estético), e a arte conceitual (onde ideias e procedimentos imperam como núcleo dos trabalhos, em detrimento da materialidade), com acréscimos singulares da percepção geopolítica, ecosófica e feminista.

No que tangem as trocas e atravessamentos de referenciais no corpo da obra de Mendieta, é possível identificar algumas parcerias ao longo de sua curta produção, tais como as obras de juventude de Vito Acconci, seu colega pela universidade de Iowa, em que o corpo como tensionamento de forças salienta sua materialidade carnal e visceral; Lynda Benglis e suas performances de travestimento de gênero e eroticidade, amiga de Mendieta dos círculos feministas; e mesmo as autoflagelações de Chris Burden e as encenações grotescas dos Acionistas Vienenses, ainda que tais ações operem por uma perspectiva de dessacralização do corpo, enquanto Mendieta procura recuperar a dimensão sacra da relação terra/corpo.

Importante mencionar também o diálogo com a obra de Robert Smithson, principal nome da prática de landart, mas com um programa estético altamente masculinista. As obras mais conhecidas de Smithson são interferências monumentais no âmbito natural, uma imposição fálica de controle e submissão da natureza, já Mendieta trabalha com a escala humana, e com o princípio de conexão e envolvimento. Enquanto Smithson fissura e demove matéria, Mendieta imerge e se oferta para a dimensão natural.

Esse contraste entre uma produção artística de caráter masculina ou feminina tem sido tema de debate desde a modernidade, e os critérios qualitativos que supostamente definiriam a produção de um artista homem em relação a produção de uma artista mulher, emulam os valores de época no entendimento das características simbólicas de cada linguagem de gênero. Tais questões, de um modo ou de outro, se mostram presentes na obra de Mendieta, principalmente a partir de seu contato com artistas como Nancy Spero e Carolee Schneemann, as quais apresentariam à Mendieta o projeto da A.I.R. Gallery em Nova York, e com quem ela partilhara a percepção de subalternidade e violência que os corpos feminilizados estão à mercê.

“Declarações feitas posteriormente pela amiga de Mendieta e artista feminista, Carolee Schneemann, relembram a opinião compartilhada entre ambas de que ’a violência contra as mulheres está relacionada com todo o sentido patriarcal de violência contra o mundo natural e com a resistência aos interrogatórios de gênero ‘, além da base judaico-cristã para “a negação da sexualidade como fonte de sabedoria e conhecimento e o silenciamento da experiência das mulheres.” [4]

Frame do vídeo Raquel Cecilia Mendieta on Ana Mendieta at Galerie Lelong, publicado no site oficial da artista.

Ao mudar-se para Nova York no ano de 1978, após experiências racistas e xenófobas no território de Iowa, e perceber que suas possibilidades profissionais não poderiam evitar o circuito artístico de Manhattan, Mendieta passa a integrar como associada (após um convite de candidatura da amiga e artista Mary Beth Edelson), a galeria de artistas feministas A.I.R (Artists in Residence). Criada em 1972 pelas artistas Susan Williams, Barbara Zucke, Dotty Attie, Maude Boltz, Mary Grigoriadis e Nancy Spero, a galeria em formato de cooperativa atua até os dias correntes como um espaço de suporte e valorização comercial de artistas mulheres e não binárias.

Em sua estadia como membro da A.I.R. Gallery, Mendieta foi uma integrante ativa nos primeiros anos, atuando em comitês, projetos de financiamento e mesmo recepcionando o público, o que demonstra sua inclinação como agente social no circuito artístico da época e seu desejo de comunidade – ainda que adiante ela tenha se decepcionado com a estrutura feminista e branca de classe-média da instituição. [5]

Inclusive, como forma de lançar luz a tais problemas na galeria, Mendieta fez as vezes de curadora, juntamente às colegas Zarina, artista indiana, e Kazuko Miyamoto, artista japonesa, em uma proposta expositiva de artistas desmerecidas pelo circuito devido a seus marcadores sociais. Essa triangulação curatorial evidencia por parte de Mendieta uma posição de coerência e ética frente aos problemas vivenciados por suas colegas imigrantes, como experiências de exclusão, desqualificação, hipersexualização e a busca por pertencimento em um país avesso ao diverso.

A mostra icônica The Dialectics of Isolation: Third World Women Artists of the United States, ocorreu por pouco mais de duas semanas em setembro de 1980, e teve a participação de oito artistas (Judith F. Baca, Beverly Buchanan, Janet Olivia Henry, Senga Nengudi, Lydia Okumura, Howardena Pindell, Selena Whitefeather e Zarina), obtendo largo sucesso da crítica e mesmo de vendas em seu curto período em cartaz. No ensaio do catálogo, Mendieta declara sua posição sobre certa feminilidade que desconsidera os índices raciais e geográficos:

“Nós, do Terceiro Mundo, nos Estados Unidos, temos as mesmas preocupações que os povos das Nações Não Alinhadas. A população branca dos Estados Unidos, diversa, mas de origem europeia básica, exterminou a civilização indígena e deixou de lado as culturas negras e não-brancas para criar uma cultura homogênea dominada pelos homens acima da divergência interna… Em meados e finais dos anos 60, quando as mulheres nos Estados Unidos se politizaram e se uniram no Movimento Feminista com o objetivo de acabar com a dominação e a exploração pela cultura masculina branca, elas não conseguiram lembrar-se de nós. O feminismo americano tal como está é basicamente um movimento branco de classe média. Como mulheres não brancas, nossas lutas são duplas.” [6]

Como artista, Mendieta realizou pela A.I.R. Gallery duas das quatro únicas individuais em Nova York enquanto viva: Silueta Series em 1979 e Esculturas Rupestres em 1981. A exposição de 1979, particularmente, marca um processo de reconhecimento de Mendieta por seus pares artísticos no circuito novaiorquino, já que as integrantes da galeria na época promoveram uma série de encontros e jantares a fim de que a jovem artista recém-chegada à cidade, pudesse circular no meio.

Para além dessas atividades fundamentais de socialização, uma anedota incontornável nessa mesma exposição é a mesa de debate organizada por Nancy Spero How has the Women’s Art Movement affected male art attitudes, simultânea à individual de Mendieta, e que proporcionou o encontro da jovem exilada cubana com o badalado nome da arte minimalista de então, Carl Andre.

A presença de Andre na biografia de Mendieta é no mínimo polêmica (para usar um termo mais brando do que violenta ou trágica), seja pelos indícios de abuso verbal por parte do “queridinho” do mercado de arte contemporânea da época, seja pela morte de Mendieta, na manhã do dia 08 de setembro de 1985, apenas oito meses após a oficialização do enlace, legalmente considerada como suicídio, mas com diversos sinais de um efetivo feminicídio.

A relação de Mendieta com Andre foi marcada por idas e vindas, passionalidade e competição profissional, terminando com a fatídica morte da artista em ascensão. Na época, Andre era figurado como um artista sedutor e cheio de excentricidades, em que o adjetivo da “genialidade” lhe proporcionava um salvo-conduto para uma série de comportamentos agressivos.

Vista da exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, no Sesc Pompeia, São Paulo, 2023-2024. Foto de Joana França.

Diversas são as histórias recolhidas por entre os corredores do meio artístico, como a sistemática traição em relações afetivas e seu uso descontrolado do álcool – que vez ou outra desencadeava em Carl acessos de violência, provocações e ofensas verbais, além de instigações gratuitas com colegas, e que evocam o hábito de competição masculina, além das narrativas de violência física e doméstica com ex-parceiras e colegas de trabalho [7]. Comentários e anedotas ao pé do ouvido sobre o tema foram sistematicamente silenciados com a tragédia da morte de Mendieta, na mesma intensidade em que se multiplicaram as narrativas de desqualificação da artista como mulher histérica e descontrolada, alpinista social e dinheirista, parceira invejosa da fama do grande escultor (mas que na época, já tinha sua carreira estagnada e maneirista).

“Carl espancou um colega artista no Texas, acabou num tanque de bêbados em Seattle, abusou em público de uma mulher em Berlim. “Absolutamente lixo”, era como Jack Hoffinger (advogado de Carl) chamava essas histórias quando ele conseguia falar com o artista ao telefone, mas os piores rumores, os de abuso físico de mulheres, lhe escapavam; as mulheres na vida de Carl permaneceriam as mais silenciosas de todas.

[…]

Havia pessoas no Soho que afirmavam ter visto Carl sendo violento com mulheres. O crítico e pintor Jeff Perrone, que dez anos antes havia escrito um raro e contundente ataque a Carl nomeando-o como uma espécie de vigarista da arte (“Carl Andre: Art Versus Talk”), não teve escrúpulos em dizer que tinha visto Angela Westwater, durante os anos em que ela morou com Carl, andando por aí machucada e com hematomas, e dizendo que havia esbarrado em uma porta, quando todos sabiam que era Carl.” [8]

Na época do caso Mendieta x Andre, não havia discussões públicas sobre feminicídio (o termo havia sido forjado em 1976 pela socióloga sul-africana Diana Russel, mas não adquirira recepção no âmbito cotidiano), muito menos de toda uma divisão conceitual dos diversos tipos de violência e abusos com base misógina (lovebomb, gaslight, violência patrimonial e sexual, apenas para citar alguns). À luz da perspectiva atual, de vertentes feministas combativas, decoloniais e não-essencialistas, fica evidente a dimensão de misoginia, racismo e xenofobia presente na relação entre o casal de artistas e seu desfecho. A extensa documentação a respeito, ora de caráter acadêmico, ora no formato de tabloide, permite uma revisão das práticas banalizadas de subjugação e desqualificação das mulheres, principalmente daquelas racializadas e de origem estrangeira/imigrante.

No transcorrer do processo de investigação e julgamento de sua morte, amigos e colegas declararam a absurdidade de um suposto suicídio, justamente pelo contentamento da artista com o andamento da carreira e sua ambição profissional (mesmo com as dificuldades de gênero, raça e nacionalidade impregnadas em sua pessoa), além de sua profunda fobia de alturas [9].

Além disso, vale recordar nesse momento o histórico de explosões agressivas de Andre ao longo da carreira, como a troca de socos com Gordon Matta-Clark [10], diversas brigas de bar, além das inúmeras mulheres do meio artístico com quem ele se relacionou, e que sofreram algum tipo de violência (e muitas ainda hoje se recusam a falar abertamente sobre os casos por receio de retaliação).

Daqueles que teriam sofrido abusos em suas mãos – a galerista Angela Westwater, por exemplo, admitiu recentemente ter sofrido abusos verbais, mas não físicos – ninguém optou por testemunhar no momento do julgamento. [11]

O protocolo de silêncio sobre as implicações (ou culpabilidade) de Andre na morte de Mendieta é um grande estudo de caso dos meandros de poder no sistema judiciário e das artes estadunidenses, e dos mais explorados por investigadoras feministas nos últimos anos. No entanto, uma questão permanece: até onde é válido centralizar a trajetória profissional de uma artista do porte de Mendieta, em relação a sua morte violenta e de matiz machista? Ou ainda, é honesto com a trajetória da artista reduzir sua produção poética à ritos de prenúncio de sua morte, como foi efetuado na época por diversos periódicos e principalmente pelos advogados de Andre?

Evidentemente que não! Mas também não se deve descartar tais dados, pois além de serem relevantes na fantasia de auratização da artista, ainda permitem a constatação sobre o efetivo grau de violência e machismo operado por figuras públicas com alto capital social. Se há ainda nos dias correntes divisões apaixonadas sobre a morte de Mendieta, e uma efetiva guerra de narrativas sobre as condições do ocorrido, é importante considerar nessa ligeira recapitulação, a alta capacidade de exploração e manipulação emocional de Andre com suas diversas parceiras amorosas (como Lucy Lippard, com quem se relacionou), o que nos leva a indagar o porquê seria diferente Mendieta. Como exemplo, vide o caso da saída da artista da A.I.R Gallery.

“Em 19 de outubro de 1982, Mendieta apresentou uma carta formal de demissão, seguida de um inquérito sobre a venda da sua sociedade. A carta de demissão não citou quaisquer motivos para sua saída, mas várias artistas colegas da A.I.R. lembram-se dos eventos relacionados. Para um evento beneficente recente, Mendieta e Carl Andre doaram uma peça colaborativa. Como era a política da galeria, todas as obras precisavam ser entregues pelo artista. Edelson lembra que Andre se ofendeu, instigando um desentendimento, o que, em parte, levou à demissão de Mendieta. Mesmo sem este incidente, de acordo com outra integrante, Pat Lasch, a associação de Mendieta com o agora lendário Andre certamente desempenhou algum papel na sua decisão.” [12]

Frame do vídeo Ana Mendieta au Jeu de Paume Concorde – Paris, publicado no site oficial da artista.

Parte da complexa equação operativa nos casos de abuso e violência, que dificultam a percepção da vítima em seu estado de degradação física, emocional e patrimonial, segue tanto pela dimensão de um constrangimento da inevitável exposição pública, e seus respectivos questionamentos e culpabilização pelos eventos. A auto recusa em assumir sua condição de vítima dentro de uma história de violência também pesa nesse mecanismo – negação essa que convêm ao abusador, e que anda par a par com o medo paralisante instigado por seus parceiros, junto às estratégias de isolamento social e distorção narrativa, a ponto de que elas, as subjugadas, não consigam se afastar do abusador. Tais situações não eram totalmente desconhecidas por parte de Mendieta, pelo contrário, mas isso não implicava que ela mesma não se visse imersa nesses jogos emocionais.

Especulações afetivas à parte, se faz importante recordar que os elementos de violência presentes na obra madura de Mendieta não possuem um caráter explícito ou de recapitulação criminosa. A violência ali presente possui uma dimensão litúrgica, integrante de uma série de ações protocolares e ritualísticas que implicam uma conexão espiritual com a matéria – salvo a exceção dos trabalhos de juventude, que encenavam e revisitavam crimes de gênero, como Untitled (People Looking at Blood, Moffitt) e a performance Rape Scene, ambos de 1973.

Ainda estudante na Universidade de Iowa, Mendieta vivenciou o medo gerado pelo brutal assassinato e estupro de uma colega de sala, Sara Ann Otten. Com ampla cobertura predatória sobre o crime e o estado de pânico instalado, a artista convidou amigos para uma festa em seu estúdio, apenas para encontrá-la imóvel sobre a mesa da cozinha, com as mãos amarradas e as calças arriadas, coberta por sangue (cena essa montada de acordo com o descrito na imprensa). A performance se estendeu por quase uma hora e, no final, Mendieta se recompôs e abriu uma lata de cerveja, para interagir normalmente com os convidados.

Já em Untitled (People Looking at Blood, Moffitt), Mendieta registra em filme as diversas reações de transeuntes à uma poça de sangue e vísceras de animal, depositados em frente a seu apartamento.

Muitos conectam tais trabalhos de juventude e suas características formais à forma trágica e “misteriosa” da morte da artista, como se fossem um oráculo de sua trajetória de vida. Por mais irresistível que tal interpretação seja, é importante recordar que Mendieta é mais do que um fim violento. Sua obra é um agrupamento de pulsões primordiais da feminilidade sem mediações esterilizantes. Tomando a metáfora de Yagul, a velha árvore-cidade de Oaxaca, os galhos de Mendieta que mal se expandiam foram violentamente cortados, mas suas raízes se estendem fortemente no imaginário de jovens artistas. ///

Talita Trizoli é curadora, professora e pesquisadora. Doutora pela FE-USP e mestra pelo PGEHA-USP, com pesquisas na área de feminismos, história e crítica de arte no Brasil. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado no IEB-USP com apoio da FAPESP, e coordena o G.A.F. (Grupo de Acompanhamento Feminista para artistas mulheres).

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A exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo está em cartaz no Sesc Pompeia (SP) até o dia 21 de janeiro de 2024. Mais informações aqui.

[1] Em zapoteca, ya é árvore e gul é velho.

[2] A 1ª viagem de Mendieta para o México é em 1971, em uma excursão arqueológica para San Juan Teotihuacan. A artista retornaria ao país nos anos de I973, I974, I976, e I978 justamente pelo programa de intercâmbio e estudos de férias da Universidade de Iowa, onde era estudante.

[3] Petra Barreras del Rio; John Perreault. Ana Mendieta: A Retrospective. New York: Museum of Contemporary Art, 1988, p. 10.

[4] Carolee Schneemann, Regarding Ana Mendieta, Women & Performance: A Journal of Feminist Theory 21 no. 2, (2001), p. 11

[5] Mendieta passou a se distanciar dos rótulos do feminismo, renunciando formalmente ao seu cargo e vendendo sua participação financeira na A.I.R. galeria em 1982.

[6] Mendieta, “Introduction,” in Dialectics of Isolation: An Exhibition of Third World Women of the United States, exh. cat. (New York: A.I.R. Gallery, 1980):, p. 1

[7] https://hyperallergic.com/538535/actress-ellen-barkin-reveals-she-was-assaulted-by-carl-andre-in-the-late-70s/

[8] Robert Katz. Naked by the window. New York: Atlantic Monthly Press, 1990, p.149

[9] “Ela me fez trocar as lâmpadas dela. Ela tinha medo de altura. Ela nunca chegaria perto da janela”, confidenciou Schneeman, acrescentando como é estranho para ela que Andre ainda viva no mesmo apartamento de onde Mendieta saltou para a morte, e que sua nova esposa supostamente faça obras de arte baseadas em janelas”. Gillian Sneed, The Case of Ana Mendieta. Art in America, October 12, 2010

[10] WADLER, Joyce. A death in Art. New York Magazine, 16 December 1985, p. 43

[11] Anna C. Chave. Grave Matters: Positioning Carl Andre at Career’s End. Artjournal, winter 2014, p. 08

[12] Kat Ana Mendieta at A.I.R. Gallery, 1977–82, Women & Performance: a journal of feminist theory, 21:2, 171-181, (2011) p. 177


Bibliografia

Anna C. Chave. Grave Matters: Positioning Carl Andre at Career’s End. Artjournal, winter 2014,

Priscilla Frank. The Haunting Traces of Ana Mendieta Go On View (NSFW), Huffington Post website February 4, 2014 [Online] Visite at 09 december 2023

Jane Blocker. Where is Ana Mendieta? Identity, performativity and exile. Durham, NC: Duke University Press, 1999.

Carolee Schneemann, Regarding Ana Mendieta, Women & Performance: A Journal of Feminist Theory 21 no. 2, (2001), p. 11

Robert Katz. Naked by the window. New York: Atlantic Monthly Press, 1990.

Ana Mendieta, Kazuko Miyamoto, Zarina. Dialectics of isolation: An exhibition of Third World women artists of the United States. New York: A.I.R. Gallery, 1980.

Kat Griefen Ana Mendieta at A.I.R. Gallery, 1977–82, Women & Performance: a journal of feminist theory, 21:2, 171-181, (2011) DOI: 10.1080/0740770X.2011.607595

Luca Cerizza, The Gallerist: Kazuko Miyamoto from A.I.R. Gallery and Onetwentyeight, New York,  Art Agenda Reviews, June 8, 2015, https://www.art-agenda.com/features/237394/the-gallerist-kazuko-miyamoto-from-a-i-r-gallery-and-onetwentyeight-new-york.

Sadia Shirazi, Returning to Dialectics of Isolation: The Non-Aligned Movement, Imperial Feminism, and a Third Way, Panorama: Journal of the Association of Historians of American Art 7, no. 1 (Spring 2021), doi.org/10.24926/24716839.11426

Petra Barreras del Rio; John Perreault. Ana Mendieta: A Retrospective. New York: Museum of Contemporary Art, 1988

Gillian Sneed, The Case of Ana Mendieta. Art in America, October 12, 2010

WADLER, Joyce. A death in Art. New York Magazine, 16 December 1985


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