Entrevistas

Vestígios do tempo

Ishiuchi Miyako, Daniel Salum & Lucas Gibson Publicado em: 27 de fevereiro de 2025

Yokosuka Story #98, da série Yokosuka Story, de Ishiuchi Miyako, 1976-77

Nascida em 1947 na cidade de Kiryu, na prefeitura de Gunma, Japão, Ishiuchi Miyako iniciou sua carreira na década de 1970, destacando-se com a série Yokosuka Story (1976-1977). Esta obra documenta a dor e a complexidade sentida pela fotógrafa em sua adolescência na cidade portuária de Yokosuka, onde cresceu sob a sombra da ocupação estadunidense. Este trabalho inicial é caracterizado pela evocação visual de memórias pessoais e históricas, marcando o início de sua investigação sobre a relação entre o espaço físico e a lembrança. Ao longo de sua carreira, Ishiuchi demonstrou uma notável capacidade de reinvenção e experimentação, refletida nas distintas mudanças de estilo que marcam sua trajetória artística. Ela permanece profundamente comprometida com a exploração de temas como memória, corpo e a inexorável passagem do tempo. Sua abordagem caracteriza-se por transformar objetos cotidianos e vestígios do passado em poderosos testemunhos visuais, elevando-os a agentes que comunicam tanto a resiliência quanto a fragilidade da condição humana.

Em dias distintos de 2022, Ishiuchi Miyako (que pediu expressamente que seu nome fosse sempre escrito dessa forma daqui para frente, com o nome de família primeiro) nos recebeu em sua casa em Kiryu, pequena cidade na prefeitura de Gunma. Na época, estávamos no Japão como bolsistas de pesquisa em arte japonesa pela Fundação Japão e a Fundação Ishibashi; ambos brasileiros e contemplados com a bolsa em anos diferentes (Lucas em 2022 e Daniel em 2020). Uma série de coincidências, impedimentos e desencontros pandêmicos nos trouxeram ao Japão no mesmo período para a realização de nossas pesquisas relacionadas à fotografia e fotolivros japoneses.

Ganhadora do prêmio Kimura Ihei em 1979, em um cenário fotográfico dominado pela produção masculina, Ishiuchi foi uma das poucas fotógrafas a conseguir reconhecimento e visibilidade nas décadas seguintes ao pós-guerra. Em 02 julho de 2024, a fotógrafa recebeu o prêmio de fotografia Women in Motion, promovido pela Kering e o festival Rencontres d’Arles.

Distante dos barulhos e holofotes de Tóquio, aos 77 anos, Ishiuchi leva uma vida simples, sem telefones celulares e redes sociais. Assim, todo processo de aproximação com a fotógrafa foi feito a partir de sua galerista Aya Tomoka, proprietária da The Third Gallery Aya em Osaka, a quem somos muito gratos.

Pegando um trem saindo de Asakusa pela Tobu Line, chegamos na estação Shin-Kiryu, de onde tomamos um táxi para seu estúdio. A parede negra da casa se destacava em meio a um dia ensolarado de outono.

Conversamos com Ishiuchi sobre aspectos diversos de sua trajetória, como a descoberta da fotografia como linguagem, suas primeiras exposições e publicações, sua relação com a passagem do tempo, o luto pela perda de sua mãe, as imagens de Hiroshima e Frida Kahlo, suas séries mais recentes e seus pensamentos para o futuro da fotografia.

Esta entrevista faz parte de nossos esforços conjuntos para expandir e potencializar a série de conversas realizadas individualmente no Japão nos últimos meses de 2022. Nossa iniciativa tem como propósito tornar esse conhecimento mais acessível ao público de língua portuguesa, ampliando o alcance das discussões e facilitando a troca de ideias entre diferentes culturas. Ao traduzir e contextualizar essas conversas, desejamos enriquecer o debate acadêmico e artístico.

Apartment #19, da série Apartment, de Ishiuchi Miyako, 1977-78

Lucas Gibson: Você mencionou uma vez em uma entrevista que suas fotos não são sobre corpos, cicatrizes ou mesmo mudanças, mas sobre os vestígios do tempo. Você poderia falar da relação entre o tempo e a fotografia nos seus projetos?

Ishiuchi Miyako: A razão pela qual comecei a fotografar foi porque eu queria capturar a dor da minha adolescência. Naquela época, quando se falava de coisas invisíveis, eu pensava no tempo. Mas, além disso, se falarmos de coisas invisíveis, também existem cheiros e o ar, fragrâncias e coisas assim. Sempre tive muito interesse por essas coisas, e embora a fotografia só possa capturar a superfície, comecei a pensar que talvez eu pudesse capturar a exposição dessa superfície.

Daniel Salum: Você vem originalmente da experiência têxtil. Como você se viu, de repente, inserida nesse mundo da fotografia?

IM: Eu era realmente livre. Não tive um mentor, aprendi tudo sozinha. Eu não tinha relação alguma com o mundo da fotografia, não entendia aquilo, mas acabei conhecendo o Tomatsu Shomei, o Moriyama, o Araki e o Fukase. Eles são meus antecessores. Sinto que não foi uma relação de admiração, mas sim de iguais. Não tentei me inserir na organização. Quando comecei a fazer fotos, tinha quase 30 anos. Naquela época, eu não sabia o que fazer. Eu não sabia se queria me dedicar à fotografia, e tampouco sabia o que realizar exatamente. Queria trabalhar sozinha, de uma certa forma, isolada do resto do mundo. Claro, tem alguns trabalhos que não consigo fazer sozinha e exigem outras pessoas, mas tudo o que der, faço por minha conta.

LG: No início da sua carreira, você participou de exposições coletivas com o grupo Shashin Kōka, formado por Taku Yada, e que terminou em 1976. Qual foi a importância disso para sua trajetória?

IM: Com o Shashin Kōka eu participei das minhas primeiras exposições coletivas, foram duas. Eu estava fotografando há apenas dois meses quando o Sr. Yada me convidou. Nos anos seguintes, tive minhas primeiras exposições individuais, que foram Yokosuka Story (1977) e Apartment (1978).

LG e DS: E nessa época que você entrou nesse mundo da fotografia, quais foram suas influências? O Araki e o Moriyama te ajudaram de alguma forma?

IM: Quando participei dessas exposições coletivas antes de Yokosuka Story, fiquei surpresa quando o público disse que eu era uma discípula de Daido Moriyama. Eu não conhecia muito ele, então fui pesquisar sobre e resolvi ligar para ele na época da exposição de Yokosuka Story. Falei que era a Ishiuchi Miyako e perguntei se ele não gostaria de ver a minha exposição – já que diziam por aí que eu era sua discípula –, e aí ele veio me ver. Foi um período curto entre as exposições de Yokosuka Story e Apartment. Eu conheci Araki-san através de Yoko-san, esposa dele, que era muito minha amiga. Quando fui para Nova York, fomos os três juntos, foi divertido. Fiquei lá por três semanas, e então recebi a notícia que tinha ganhado o Prêmio Kimura Ihei. Fui a primeira mulher que recebeu o prêmio, e depois disso comecei a ter muito trabalho, fiquei muito ocupada. Yoko também foi para Argentina nesta viagem para ver sua mãe. Eu não conseguia tirar foto alguma, porque o Araki tirava um monte de fotos, dominava a cena, então eu ficava só observando.

LG: Seu trabalho como fotógrafa é muito pessoal; você sempre fala sobre sua própria vida e experiências de uma forma ou de outra. Suas três primeiras séries Yokosuka Story (1976-1977), Apartment [Apartamento] (1977-78) e Endless Night [Noite sem fim] (19789-80) foram fotografadas em preto e branco e abordavam temas relacionados às suas memórias em Yokosuka, sua infância e assim por diante. A partir do final da década de 1980, você aparentemente voltou sua atenção para o corpo humano, criando os projetos 1.9.4.7 (1988-1989), Scars [Cicatrizes] (1996-) e Innocence [Inocência] (1994-). Por que você decidiu focar mais no corpo humano?

IM: As três primeiras séries começaram como um interesse muito pessoal e conectado a questões minhas. Bem, eu cresci em Yokosuka, e dos seis aos dezenove anos estive lá, então aquela dor da adolescência que mencionei antes se ligava à cidade de Yokosuka. Então, eu não podia fazer nada sem olhar corretamente para onde eu estava. Quando comecei a fotografar, a primeira coisa que fiz foi capturar meu próprio entorno. Foi assim que comecei, focando no que estava aos meus pés. E então, quando completei 40 anos, percebi que não precisava mais ficar fotografando meus problemas pessoais, me dei conta que já havia fotografado todas as minhas obsessões. E chegar aos 40 anos foi algo que me fez pensar, “uau, 40?”, algo como “nossa, cheguei aos 40”, e isso me fez questionar o que iria fotografar a partir de agora. Foi então que tive uma percepção repentina. Decidi que queria capturar 40 anos de tempo. E, ao pensar onde esses 40 anos estariam, percebi que estavam acumulados nas mãos e nos pés. Foi assim que comecei a fotografar mãos e pés pela primeira vez com o projeto 1.9.4.7., que é o ano do meu nascimento. Assim, fotografei as mãos e os pés de 50 pessoas da mesma idade que eu, e embora superficialmente fossem mãos e pés, na verdade eu estava fotografando o tempo, 40 anos de sua passagem.

1.9.4.7. #11, da série 1.9.4.7., de Ishiuchi Miyako, 1988-89

DS: No seu trabalho, você conta as histórias muito pelo vestígio das pessoas, pelo que já passou.

IM: É difícil dizer, pois penso que uma fotografia só mostra a superfície, e eu me interesso em revelar o que não é visível. A atmosfera, os cheiros ou os sons não podem ser vistos. Por exemplo, eu não consigo ver o tempo. Eu quero ter o tempo, eu quero formar o tempo, abraçar o tempo. Como se faz isso? Como posso mostrar esse tempo? Se torna uma maneira de se expressar, não é que o interesse é a fotografia em si, mas é mais a maneira de me expressar mesmo. Acredito ser só a ferramenta para a maneira como penso. Poderia ter sido alguma outra coisa, mas por acaso foi a fotografia. O vestígio na fotografia acaba sendo uma intersecção de uma história do que foi e do olhar como observador, acaba sendo muitas vezes uma mistura. No vestígio há um espaço, um gap entre o que é a história e o que eu também projeto na história. Em 1.9.4.7., fui conhecer mulheres que haviam nascido nesse mesmo ano que eu. Eu tinha que olhar entre o meu tempo e o tempo de cada pessoa. Foi uma maneira que encontrei de representar o tempo, um modo de me conectar com essas outras existências. Penso que eu poderia ter sido qualquer uma dessas mulheres.

DS: Então é possível tornar o tempo visível?

IM: Todo mundo ficou surpreso quando eu comecei a fotografar mulheres, porque era muito diferente, né? A essência é a mesma, mas o que está sendo fotografado é diferente. As pessoas que gostaram dos meus primeiros trabalhos não gostaram muito desse.

DS: Você vê isso como um ato de coragem? O artista tem que ser muito corajoso de pegar algo que vem dando certo, que já está consagrado e aceito, e decidir fazer algo completamente diferente.

IM: Na verdade, foi natural. Eu só queria fotografar os 40 anos no tempo e fui em busca de encontrar 50 mulheres.

LG: Como é o processo de criação dos seus fotolivros? Você gosta de trabalhar com um designer e um editor, ou prefere escolher a sequência e construir os conceitos do livro por conta própria?

IM: Acho que o designer Tsunehisa Kimura teve uma influência forte nos meus livros. Ele é uma pessoa muito famosa no mundo do design, então meus dois primeiros livros, Apartment (1978) e Yokosuka Story (1979) foram desenhados por ele. Ele trabalhou comigo até o 1.9.4.7. e me ajudou o tempo todo. Geralmente o sequenciamento é quase todo feito por mim.

Ela traz a primeira edição do fotolivro Yokosuka Story.

Ishiuchi diante dos fotolivros Yokosuka Story (1979), ひろしま/hiroshima (2008) e Moving Away (2021). Foto por Lucas Gibson, 2022.

DS: Na série Yokosuka Story, você faz uma interseção de questões políticas da época, envolvendo as relações entre Japão e Estados Unidos com sua memória pessoal. Como você vê essa interseção? Como foi esse processo para você?

IM: Quando morei em Yokosuka, senti que vivi um choque cultural, havia uma fronteira em minha frente – O outro lado era a América, e aqui era o Japão? Tenho que olhar o meu chão, né? Onde eu cresci, onde eu vivi. Então comecei a fotografar esse meu entorno e ampliar os resultados na minha casa mesmo. Foi algo que me deixou muito machucada, por tudo o que aconteceu. Fotografar foi como um ato de vingança por todas as atrocidades que aconteceram por lá. Eu odiava Yokosuka e queria descobrir o porquê. Comecei a gostar de fotografia porque não estava achando que era a fotografia em si, mas sim fazer algo que não é material, algo que não é físico, se tornar material. Pensei que depois de fazer Yokosuka Story ia parar de fotografar, mas então o trabalho foi muito bem recebido e me perguntaram o que faria a seguir. Daí pensei, acho que eu vou fazer Apartment. Um projeto foi levando ao outro, foram três na sequência. Quando fotografei Yokosuka todos os temas seguintes estavam incluídos, havia uma linha de conexão.

DS: Você tem alguma lembrança marcante da sua infância? Alguma imagem forte, uma fotografia, um livro…?

IM: Ah, eu vi muitos filmes estrangeiros. Quando eu estava na universidade, fazia parte de um cineclube. Eu gostava muito de filmes preto e branco. Inicialmente eu queria trabalhar com cinema. Só que o filme envolve muita gente, né? Senti que não era muito boa em ter contato com as pessoas, não gosto de trabalhar em grupo, aí acabei desistindo.

DS: É interessante você falar isso, porque parte do Yokosuka Story você fez com o carro em movimento. Sua mãe dirigia o carro enquanto você fotografava, não? Então, de certa forma, era como se você tivesse um enquadramento ali, vendo as imagens passarem, como no cinema.

IM: Sim! Eu tirei fotografias de dentro do carro que minha mãe dirigia. Montei o Yokosuka Story pensando em um filme, como se fosse uma narrativa, uma linguagem cinemática. Fiz a edição do livro sozinha.

DS: Você experimentou as duas coisas, não é? A exposição, que inclui trabalhar com as próprias cópias, e também o livro. Como você vê essas duas experiências, de ver seu trabalho no livro e na parede?

IM: São duas coisas completamente diferentes, mas gosto mais da exposição em si. A exibição é algo espacial e mental, é uma maneira de me expressar fisicamente no espaço. É como no teatro, algo efêmero. E o conjunto de fotos em um livro é uma história. Para mim, o mais importante é a exposição. Mostrar as fotos ao vivo é o mais importante. Livros de fotografia podem ser vistos em qualquer lugar, permanecem. O espaço da exposição é um espaço de imersão, estamos dentro dele.

LG: Apesar da série Yokosuka Story ter vindo antes, seu primeiro fotolivro foi Apartment (1978), autopublicado e com uma ótima qualidade de edição, design, papel e encadernação. Ele também acabou estabelecendo um novo padrão nos critérios de livros autopublicados, que até então economizavam nos materiais e minimizavam os custos. Você poderia contar como foram os desafios e o processo de criação desse livro?

IM: Obrigada. Um livro pode funcionar como um catálogo de uma exposição que pode ser visto repetidas vezes e pode ser consultado a qualquer hora e em qualquer lugar. Portanto, um livro é uma versão diferente de uma exposição, algo necessário para mim. A exposição acaba e só quem a viu pode entendê-la. Por isso, no começo, pensei que talvez o Apartment pudesse servir como um registro. O Yokosuka Story foi minha primeira exposição individual, mas depois Apartment foi a minha segunda exposição. Foi nessa ocasião que meu primeiro fotolivro foi criado. Eu o produzi com um designer muito bom e um editor profissional, que eram meus amigos, e eu era bastante amadora na época, então a participação deles foi essencial. E, claro, eu pensei que deveria transformar Yokosuka Story em um livro também, então meu segundo livro foi o Yokosuka Story. Acho que os livros são realmente muito importantes.

LG: Era comum que fotógrafos atuantes no pós-guerra utilizassem as revistas fotográficas para alavancar suas carreiras, divulgando suas séries antes de publicá-las como fotolivros. Como as revistas de fotografia ajudaram a disseminar seu trabalho?

IM: Elas não tiveram praticamente nenhuma influência. Quase não conhecia outros fotógrafos e nunca estudei fotografia, sou completamente autodidata. Então eu nem mesmo via as revistas fotográficas na época. 

LG: Então, podemos dizer que o fotolivro foi um veículo mais imediato para sua produção? 

IM: Sim. Eu comecei completamente do zero, não sabia nada sobre o mundo da fotografia, não conhecia nada sobre revistas, e não tinha professores. Na época, meu namorado tinha um ampliador e equipamentos de laboratório, além de uma câmera fotográfica. Então, quando ele me disse que não queria mais isso em casa e que iria jogar fora, eu acabei ficando com o equipamento todo. Algo que não é utilizado se torna lixo, mas quando ganha uma função, vira uma ferramenta. Por isso, pensei: “Ah, por que não tentar?”. Na época todo mundo mandava seus trabalhos para as revistas, como o Moriyama e o Kawada, e eles inclusive ficaram muito conhecidos por isso, mas isso não importava para mim. Eu sou uma espécie de loba solitária.

Mother’s #35, da série Mother’s, de Ishiuchi Miyako, 2007

LG: Com os projetos Mother’s (2000-2005), ひろしま/hiroshima (2007-) e Frida (2012), você fotografa em cores e mantém seu foco no corpo humano e na experiência humana, mas adicionando uma perspectiva diferente: a ausência. Como foi essa transição e o que fez você adotar essa perspectiva mais conceitual?

IM: Em certo momento, percebi que estava fotografando apenas mulheres para o projeto 1.9.4.7., mas eu também tinha um desejo de fotografar homens nascidos no mesmo ano que eu. Porém, de alguma forma as fotos dos homens não ficaram interessantes. Certo dia eu estava fotografando as mãos e os pés de um homem da mesma idade que eu e, por acaso, ele tinha uma cicatriz no corpo. Então, pensei, “Ah, ele tem uma cicatriz”, e perguntei, “O que aconteceu?”, e ele começou a falar sobre ela. E aí percebi que as cicatrizes são como as antigas fotografias, muito próximas da memória. Comecei a perceber que eu também tenho grandes cicatrizes. Tornou-se algo sobre mim. E durante o inverno, há muitas vezes em que partes do meu corpo me fazem lembrar dos dias em que fui ferida no passado. Fotografando cicatrizes, era como se eu estivesse recriando antigas fotografias. As cicatrizes são, por assim dizer, uma imagem dolorosa, difícil e negativa na vida de alguém. Mas mesmo assim, são uma prova de vida daqueles que sobreviveram. Senti isso profundamente e, seguindo esse fluxo, manifestei o desejo de fotografar as cicatrizes da minha mãe.

DS: A transição para a fotografia em cor acontece no trabalho que fez sobre sua mãe. Como foi esse processo de mudança?

IM: Foi muito simples, eu fotografei um batom que foi dela, e o vermelho numa fotografia em preto e branco parecia muito “sujo” para mim. A partir dali minha fotografia mudou para sempre. Quando eu faço o preto e branco, eu faço tudo sozinha, é como se eu estivesse completamente envolvida, como se estivesse abraçando a fotografia o tempo todo, sempre junto, muito íntima. Já com a cor, outra pessoa amplia e revela para mim, eu saio dessa experiência do meu próprio corpo. Ter essa distância também é interessante, comecei a gostar de certas distâncias na fotografia.

LG: Como foi fotografar sua mãe? A fotografia te ajudou a lidar com o processo de perdê-la?

IM: Quando comecei a fotografar as cicatrizes no corpo da minha mãe, nunca imaginei que ela fosse morrer. Eu estava fotografando as cicatrizes em março e ela faleceu em dezembro do mesmo ano, então, de certa forma, não tive muita comunicação com ela. Depois que meu pai morreu e ficamos só nós duas, eu estava pensando em conversar mais com ela, mas ela morreu antes que isso acontecesse. Então, percebi que não tinha mais com quem falar. E o que fazer nessa situação? Falar com o que ficou para trás. Comecei a lidar com os pertences dela dessa maneira.

DS: De novo, é uma relação do vestígio, do que ficou, do resto…

IM: Sim… do que tem relação com o corpo, com a pessoa, com alguém.
Antes de minha mãe morrer, nossa comunicação não era muito boa. Quando resolvi me aproximar mais, ela morreu. Quando fui esvaziar a casa, abri a porta do armário e havia muitas roupas íntimas e eu não tinha ninguém para conversar naquele momento. Fotografar essas coisas foi uma maneira de eu ter esperança, de ter um diálogo com minha mãe. A mãe é uma espécie de vislumbre, ou seja, algo que está perto de você.

ひろしま/Hiroshima #9, da sérieひろしま/Hiroshima (doação de Ogawa Ritsu), de Ishiuchi Miyako, 2007

LG: Na sua série ひろしま/hiroshima (2007-), você fotografou vestidos e pertences principalmente de mulheres que não conhecia. Ainda assim, é curioso perceber que as fotos dessa série carregam uma afetividade muito grande, semelhante às que você produziu das roupas íntimas da sua mãe.

IM: A série Mother’s foi a que veio primeiro, e a apresentei na Bienal de Veneza em 2005. As pessoas que viram Mother’s na Bienal de Veneza pediram para que eu fotografasse Hiroshima. O mesmo aconteceu com Frida. Então, tudo começou com Mother’s. No caso de Mother’s, eu fotografei de maneira bastante calma e sem muita emoção, pois minha mãe já não estava presente, então fotografei os objetos deixados por ela de forma bastante serena, sem a intenção inicial de apresentá-los ao público. Decidi seguir o mesmo estilo quando fotografei Hiroshima e Frida.

DS: Como foi lidar com essa questão da intimidade, de fotografar objetos de alguém que era próximo a você, e depois fotografar objetos de alguém completamente estranho, como a Frida Kahlo?

IM: Quando eu estava expondo na Bienal de Veneza, me perguntaram se eu gostaria de ir ao México para fotografar os pertences de Frida Kahlo. Eu não tinha visto a obra dela pessoalmente, só em fotos, e fiquei um tanto confusa. Ela tinha a imagem de ser um pouco escandalosa, uma pessoa difícil, mas como recebi um convite, resolvi ir… E foi completamente diferente do que imaginava. Fiquei muito impressionada, ela era muito sensível.

LG: Em ひろしま/hiroshima, como foi seu processo de envolvimento emocional ao falar da ausência?

IM: Eu nunca achei que um dia iria para Hiroshima, nem como turista e nem como fotógrafa. Nunca tinha ido a Hiroshima antes, estava nervosa, principalmente porque sabia que havia vários projetos fotográficos interessantes sobre a cidade. Mas quando visitei o Memorial da Paz de Hiroshima e vi os artefatos de pessoas atingidas pela bomba, tive uma impressão muito distinta da que imaginava. As cores e o design das roupas me atraíam, e me mostraram uma imagem completamente diferente de Hiroshima. Eu também via fotografias da Cúpula da Bomba Atômica que eram muito grandiosas, principalmente porque eram feitas de baixo para cima. Mas quando a vi pela primeira vez, ela era minúscula. Então pensei: “que coisinha fofa, acho que posso tirar fotos de Hiroshima”. Sempre tive uma imagem de Hiroshima como um lugar preto e branco, parecia um lugar muito triste e realista, como um documento do bombardeio atômico. A imagem que tinha de Hiroshima era como a de um “livro didático”, como um ambiente vitimizado, sujo pela bomba atômica, mas quando fui lá, descobri que não era nada assim. Os pertences das vítimas que encontrei por lá eram estilosos, legais, agradáveis, coloridos. E foi aí que pensei que poderia fotografá-la, e fotografei em cores.

LG: Você ainda tem visitado Hiroshima para fotografar os objetos do museu?

IM: Sim. Quer ir comigo? [risos]. Eu vou todo ano, pois novos objetos chegam sempre.

LG: E você sempre usa fotografia analógica?

IM: Sim, uso filme 35mm. Agora, estou fotografando os objetos sempre com luz natural, usei a caixa de luz apenas no primeiro ano do projeto, em 2007.

Estávamos folheando o livro de Hiroshima, e ela mostra um vestido com verde mais escuro, que na página final não constava o nome da dona.

Ishiuchi mostra um dos vestidos fotografados na série Hiroshima. Foto por Lucas Gibson, 2022.

LG: No livro de 2008 há uma lista com o nome dos doadores de cada um dos objetos. Contudo, alguns não tem dono conhecido, como é o caso desse vestido que você está apontando. Como foi o processo de fotografar alguns objetos com proprietários conhecidos e outros não?

IM: Recentemente, eu meio que descobri de quem é. Parece um vestido da marca Comme des Garçons da Rei Kawakubo, uma estilista japonesa. Quando a Rei fez sua estreia na Paris Fashion Week, ela levou alguns vestidos pretos que pareciam ter sido bombardeados por uma bomba atômica, e foi isso que me fez criar essa associação. Como não havia doador atribuído, deixei sem o nome, mas penso ter descoberto a doadora. Eu senti que as pessoas que estavam em Hiroshima naquela época eram muito fashion, se preocupavam com o que vestiam, não era como se estivessem usando roupas simples por causa do contexto de guerra. Sinto que com esse projeto consegui trazer uma faceta da vida cotidiana, mas a imagem que temos de Hiroshima, a que os livros didáticos nos dão, não é essa. Hiromi Tsuchida, por exemplo, fotografou Hiroshima em preto e branco. Quer estejamos em Hiroshima, Tóquio, Paris ou Londres, as meninas jovens são fashion.

LG: O Tsuchida tem aquela foto do vestido doado pela Ogawa Ritsu, que você também fotografou, mas ele fez em preto e branco e você em cor…

IM: Ele fez fotografias desse vestido da Ogawa e de outros objetos de Hiroshima com fins de registro, eu não tiro fotos com esse fim. Me disseram algumas coisas terríveis nessa época… mas para mim não me importa se estamos tirando fotos da mesma coisa ou não.

LG: Eu cheguei a mencionar no meu artigo sobre sua série de Hiroshima essa crítica que o Tsuchida fez a você…

IM: Terrível, não é? Hiroshima tem uma história muito vasta e importante, e quando você fotografa temas assim, você sente muito orgulho e uma grande responsabilidade por estar documentando algo tão significativo relacionado à cidade. Eu não tenho esse tipo de orgulho. Na verdade, pela primeira vez em minha carreira, senti que era algo positivo eu ser uma mulher produzindo fotos de Hiroshima. Só posso tirar fotos como uma mulher, e senti como se estivesse encontrando a história quando vi este vestido que poderia ter usado.

Frida por Ishiuchi #36, da série Frida por Ishiuchi, de Ishiuchi Miyako, 2012

DS: A partir de certas perspectivas, você contou a história de sua mãe e da relação de vocês, contou a história da Frida, contou também a história de Yokosuka. Tem alguma história que você gostaria de ter contado que não contou?

IM: Eu sempre digo isso, foi minha mãe que me levou a fotografar o projeto da Frida e de Hiroshima. Eu agradeço muito a minha mãe. De certa forma, sinto que contei todas as histórias que queria contar.

DS: Você foi a única mulher na exposição Japan: A Self Portrait no ICP (International Center of Photography), em 1979. Como você vê essa relação do mundo da fotografia, que ainda é muito masculino, e você com esses outros fotógrafos?

IM: Naquela época, Yamagishi-san (Shōji Yamagishi, 山岸 章二, 1930-1979), o curador, escolheu trabalhos somente de homens, mas então o ICP recomendou que ele também inserisse trabalhos de fotógrafas. Eu fiquei muito surpresa com isso, era um ambiente muito opressor. A razão pela qual fui escolhida é porque simplesmente não havia nenhuma mulher na exibição. Eu não tive a intenção de me tornar uma fotógrafa, todo o início do meu trabalho foi uma questão de uma resolução minha comigo mesma. Não me sentia, de forma alguma, uma profissional, mas aí fui chamada e pensei, “ah, tá bom” (risos).  Aliás, vocês sabiam que a primeira fotógrafa feminina do Japão era daqui da cidade? Shima Ryū foi uma artista japonesa e fotógrafa pioneira nascida em Kiryu. Shima Ryū tirou a primeira fotografia conhecida criada por uma mulher japonesa, em 1864. Na época, eu acho que ela fotografava para o marido que era fotógrafo. E depois que ele faleceu, ela voltou para Kiryu e fez seu estúdio aqui.

LG: Uma vez você mencionou que o darkroom é um lugar realmente importante para o seu processo fotográfico. Você poderia falar mais sobre isso?

IM: Quando entrei no darkroom pela primeira vez, senti um cheiro nostálgico. Eu fazia aulas de tingimento e tecelagem na universidade, então tingia fios brancos antes de tecê-los. Naquela época, o fixador era o mesmo que usava para revelar fotografias. O cheiro dos produtos químicos têxteis que havia deixado para trás na minha época de estudante vinham à minha mente quando sentia o cheiro dos produtos químicos do laboratório, e percebi que a fotografia é como tingir.

DS: Você ainda entra no laboratório para fazer suas cópias?

IM: Eu trabalhei anos em laboratório e eu sinto que eu não tenho mais idade para isso, não tenho mais saúde (risos). É um trabalho muito físico. Antes, quando eu estava em Yokohama, se estivesse escuro, era possível imprimir em qualquer lugar, não precisa necessariamente ter um laboratório. Mas depois que eu cheguei aqui (Gunma), comecei a fazer cópias menores. Agora faço mais cor, então não entro muito no laboratório.

DS: Seu trabalho sempre teve um caráter político, mesmo partindo de questões pessoais, principalmente em Yokosuka Story. Como você vê o Japão atual, politicamente e socialmente falando?

IM: O mundo todo está em uma situação terrível, mas a situação no Japão é muito estranha. O povo aqui não vota, acham que tem maioria, mas não tem nem 50% de participação. Isso é o Japão hoje. Na minha época de estudante havia o movimento estudantil e os protestos; eu participava das barricadas. A política é algo necessário. A fotografia sempre reflete, de alguma forma, mesmo sendo de caráter pessoal, algo da sociedade.

DS: Você percebe uma sociedade menos politizada, que tem menos consciência política do que na época que você era estudante?

IM: Sim, a perspectiva social mudou. Ser oposição se tornou algo raro e era algo básico quando eu era estudante. Os japoneses não falam sobre política, eles não falam sobre suas posições.

LG: Seu projeto recente Moving Away [Afastando-se] (fotografado entre 2015-2018, fotolivro lançado em 2021) traz uma nova linguagem que não é comum em seus trabalhos: o autorretrato. No texto do livro, você diz que um projeto fotográfico é sempre um reflexo de seu criador, e que intencionalmente você nunca se fotografou. Você pode falar mais sobre esse projeto e por que decidiu se fotografar de tantas maneiras? Isso está conectado à liberdade que você tem sentido em relação ao meio fotográfico?

IM: Eu nunca havia tirado um autorretrato antes, então pensei que poderia estar em apuros. Lembrei de minha casa em Yokohama, onde tinha um darkroom e onde morei por mais de 40 anos. Um dia, acordei de manhã de repente e pensei: “Não quero mais ficar aqui.” Então, vendi tudo e vim para este lugar que estou morando. Então, basicamente, ao sair de lá, gastei cerca de três anos percorrendo um raio de 1 km do darkroom e tirando fotos. Além disso, tirei fotos das minhas próprias mãos e pés durante os três anos. Portanto, o ponto central é o darkroom. Este é um autorretrato que começa pelo darkroom. Pensando assim, eu acho que os retratos dos 50 colegas da mesma idade que tirei no projeto 1.9.4.7., quando tinha 40 anos, são uma forma de autorretrato. Quero dizer, no sentido de que, embora não me fotografe diretamente, a fotografia sempre reflete algo de nós mesmos. Não digo que isso englobe tudo, mas é algo próximo de um autorretrato. Então, quando me pediram para fazer autorretratos desta vez, normalmente as pessoas tirariam fotos do próprio rosto, talvez com uma câmera pequena. Mas como este é o lugar onde passei mais de quarenta anos no laboratório, e foi aqui que fiz minhas primeiras impressões, decidi que, ao me despedir deste lugar, deveria incluir também esse registro nas fotos que tirei.

LG: Então podemos dizer que Moving Away representa essa maior liberdade que você busca na fotografia?

IM: No final das contas, como eu não tive um professor de fotografia e comecei sozinha, eu sempre fiz o que achava que era certo, pensava de forma livre. Portanto, não é só sobre Moving Away; eu realmente não pensei muito sobre a fotografia que fiz até hoje. Mais do que tirar fotos, eu estive documentando minha própria história em imagens. Então, embora eu destaque esse aspecto mais livre de Moving Away, é mais sobre me libertar das fotografias que fiz até agora. De certa forma, sinto que estou construindo a história da minha fotografia. Eu tiro fotos há mais de 40 anos, e só agora estou começando a entender um pouco da diversão da fotografia. Não sei bem como explicar, mas sinto que a fotografia não é apenas uma forma de expressão pessoal, mas também lida com questões fundamentais da história, como a documentação, por exemplo. E agora estou sentindo que eu posso pensar mais livremente sobre ela. Estou me divertindo muito com isso.

LG e DS: Quais são seus futuros projetos?

IM: Estou fotografando algumas imagens minhas que foram danificadas numa enchente do rio Tamagawa. A partir dessas imagens mofadas, estão surgindo novas imagens. Aliás, vocês conhecem meu último projeto?

LG: O último não foi o Moving Away?

IM: Não, é um projeto chamado O Afogado. Em 2021, eu tive uma exposição individual no Museu de Arte Memorial de Otani, na cidade de Nishinomiya, e lá tive a chance de expor esse trabalho. Não sei se você conhece, o acervo do Museu da Cidade de Kawasaki sofreu uma enchente causada pelo Tufão número 19 há quatro anos, e o trabalho é sobre isso.

DS: O que você sente que permaneceu da Ishiuchi do começo da carreira até hoje?

IM: Sinto que permaneceu o desejo de capturar algo do invisível e do tempo. Essas foram as duas principais coisas que acho que mantenho desde o início. Penso que a história da fotografia é curta, não tem muito tempo, sinto que estou dentro dessa história, sendo parte dela, caminhando. Eu também sinto que esse tema do tempo, que é o meu tema principal, fala também de uma certa vulnerabilidade universal e da mortalidade. Somos todos seres mortais e tudo vai acabar um dia. É uma coisa inerente ao ser humano, nascemos sozinhos e morremos sozinhos.

DS: Qual é o futuro da fotografia na sua opinião?

IM: Acho que ela vai continuar, irá sobreviver. Todos usam o celular para filmar, né? Então, a fotografia de celular não é uma foto. É uma informação. Eu fotografo com filme, então não é uma informação. Não sei quanto tempo vai durar, mas enquanto houver filmes disponíveis, continuarei fotografando em película. As coisas estão ficando mais difíceis, mas em termos de visualização, as coisas estão melhorando. O tempo se impõe sobre o tempo. Eu tenho muitos amigos do 1.9.4.7. que morreram. A primeira mulher que morreu foi a Yoko, a esposa de Araki. Ela tinha 42 anos. Ela morreu sem ver o trabalho sobre eles (livro Winter Journey de 1991). Há dois anos atrás, a última mulher que fotografei para o 1.9.4.7. morreu. Uma mulher da minha idade. Isso mexeu comigo… a morte está sempre próxima.

DS: Você é uma artista que soube se reinventar muitas vezes, e talvez isso seja uma das coisas mais difíceis não só na arte, como na vida.

IM: Obrigada. Na verdade, a base da minha fotografia é minha própria história. Tudo foi um registro contínuo da minha vida. ///

Lucas Gibson (1992) é fotógrafo, professor e pesquisador. Doutorando em História da Arte pela Unifesp com tese sobre fotolivros japoneses do pós-guerra, mestre em Artes Visuais pela UFRJ e pesquisador do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) da USP/Unifesp. Foi bolsista da Japan Foundation/Ishibashi Foundation em 2022, desenvolvendo pesquisa no Japão sobre fotolivros japoneses. Com frequência, ministra cursos e palestras sobre fotografia japonesa, já tendo publicado diversos artigos sobre o tema.

Daniel Salum (1978) é professor, pesquisador, curador independente e editor de fotolivros. Há mais de dez anos, vem se dedicando ao estudo e pesquisa sobre fotografia japonesa, com ênfase no período iniciado no pós-guerra até os dias atuais. No ano de 2020, foi contemplado com a bolsa de pesquisa da Japan Foundation/Ishibashi Foundation para aprofundar sua pesquisa em Tóquio. Realiza periodicamente cursos, grupos de estudos e palestras sobre o tema.


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