Thereza Eugênia: retratos na intimidade e nos palcos
Publicado em: 30 de março de 2023Thereza Eugênia é uma dessas pessoas em que a vida e o ofício se entrelaçaram de tal maneira a tornarem-se uma coisa só. Não sabemos ao certo se foi a fotografia que propiciou suas experiências de vida, ou se seu circuito social e afetivo que possibilitou ser a fotógrafa que é. Parece ser um pouco dos dois.
Nascida na cidade baiana de Serrinha, Thereza mora desde 1964 no Rio de Janeiro, onde passou a fotografar a cena musical, primeiro como fã, e depois profissionalmente. Hoje, aos 83 anos, acumula um volumoso arquivo de fotografias de artistas da Música Popular Brasileira paramentados em cima dos palcos e também despidos de protocolos em seus momentos de intimidade.
Em 2021 publicou um livro, já esgotado, compilando alguns dos retratos icônicos de artistas como Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia dos anos 70 e 80, pela editora Barléu. Entretanto, é o seu perfil no Instagram – que acumula mais de 28mil seguidores – que a motiva a rever constantemente seu acervo e resgatar, por vezes, cenas e retratos que outrora lhe passaram despercebidos. É por conta deste álbum infinito de memórias, atualizado quase que diariamente, que é reconhecida por onde passa, principalmente por gerações mais jovens de “curtidores”.
Como que aconteceu esse encontro: você, a fotografia e a MPB?
Thereza Eugênia: Sempre gostei muito dos cantantes baianos. Meu primeiro show foi em 1969. Bethânia cantava num teatrinho pequeno aqui em Copacabana. Eu fui ver, gostei e fiz umas fotos dela. E então um amigo meu, que estudava teatro, chegou da Bahia e disse “Thereza, eu me dou com Bethânia, vamos lá na casa dela”, no Leblon. Ela gostou da foto e disse que gostaria de botar na capa de um disco.
Acontece que na época o produtor dela, Carlos Imperial, falou “não, essa foto não é comercial”. E aí ela fez uma capa lindíssima com um pintor e desenhista baiano chamado Luiz Jasmin. Realmente, ela deu uma dentro, porque ele fez uma capa belíssima para ela.
Também em 1969, Gal cantou aqui na [antiga boate carioca] Sucata e eu estava com uma máquina ainda sem trocar lente, da Alemanha Oriental. Eu fiz as fotos de Gal e quase que não acertei fazer nada, porque quando Gal começou a cantar “se você pensa que vai fazer de mim…” eu fiquei tão emocionada com ela no palco, cantando com boá.
Você se formou em enfermagem, em Salvador, antes de se mudar para o Rio de Janeiro. Como começou a fotografar?
TE: Quando eu cheguei aqui no Rio de Janeiro, arranjei logo um trabalho como enfermeira e já tinha dinheiro para comprar um equipamentozinho de fotografia. Sempre gostei muito de fotografar porque, quando morava em Serrinha, na casa da minha avó tinha uma câmera escura que eu brincava muito. Meu pai, e todo mundo, também adorava foto.
Eu comecei a fotografar minha irmã, que parecia muito com uma modelo. Não sei se você já ouviu falar num filme chamado Blow Up [Depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni], belíssimo. Aparece Veruschka, que era uma modelo russa que posa para esse fotógrafo e tem uma parte que se passa no Hyde Park [Londres]. Eu vi esse filme e, depois que estreou, em 1966, todo mundo no Brasil queria fotografar também.
Quando Roberto Carlos escolheu uma fotografia sua para ser a capa do LP de 1970, tudo mudou. Como foi essa transformação do lugar da fotografia como memória pessoal para se tornar uma profissão?
TE: Em 1970, Ivone Kassu [assessora de imprensa] me pediu para fazer umas fotos de Roberto Carlos no Canecão [tradicional casa de espetáculos carioca]. Eu disse “Ivone, eu não tenho máquina” porque minha máquina não era reflex, não tinha zoom, nem uma telezinha. Ela disse “tome emprestado com o gerente do Canecão”. Eu tomei e o gerente fez esse seguinte comentário: “como é que você manda uma moça aqui, que não sabe nem segurar a máquina, fotografar Roberto Carlos?” Roberto Carlos viu a foto, adorou e botou na capa do disco. E eu acho a capa belíssima. É um contrastado bem forte. Ela funcionou porque saiu daquele padrão de Roberto Carlos posar, do rosto dele e tal. Foi elogiadíssima pela imprensa carioca, “até que enfim Roberto Carlos fez uma capa legal”.
Logo depois, a gravadora me pediu para fazer umas fotos de Jerry Adriane. Eu fiz, mas ficaram tão contrastadas que a pessoa da gravadora me deu o maior esporro, “que fotos horrorosas!”. Eu aceitei porque era verdade [diz Thereza gargalhando]. A minha máquina não media a luz, não era automática. Eu é que tinha que dar a abertura, o diafragma. Não é como hoje que a máquina digital já lhe dá tudo. Hoje eu tenho um celular que eu adoro.
Mas, bom, em 1972 faço a primeira foto de Caetano, quando ele chega de Londres e faz um show no Teatro João Caetano [Rio de Janeiro]. É uma dupla exposição. Nessa época, nós íamos para praia – eu, Marina Lima e todo mundo – e houve uma distribuição de xerox de ingressos, porque não existia código de barra, e aí eu me lembro que vi duas vezes esse show. No segundo, pensei “quero ver se faço uma foto na hora que ele canta ‘quem não tem balangandãs, não vai ao Bonfim’”, que ele fazia aquele gesto. Eu consegui fazer essa foto no mesmo negativo.
E aí conheci o empresário dele, Guilherme Araújo, que depois virou um grande amigo meu e passou a me pedir para fotografar. Comecei a fotografar Gal, no show Índia… Gal a Todo Vapor e Deixa Sangrar eu já tinha feito, porque eu conhecia Paulinho Lima, que foi o empresário que ficou com Gal quando o Guilherme foi para Londres. Como sempre gostei muito de música, achava que, quando fotografava eles no palco, eu estava levando-os para minha casa. Era a sensação que eu tinha.
Para além do palco, como era fotografar essas pessoas nos seus momentos de intimidade?
TE: Veja só, eu frequentava a casa de todo mundo: Gal, Bethânia, Caetano… tanto que fui quando ele fez 40 anos. Naquela época nem telefone de fio a gente tinha. Aí, eu trabalhando no hospital que era perto da casa de Bethânia, em Ipanema, ela fazia assim “Thereza, passe aqui depois.” Eu passava lá. Aí Leina estava fazendo bobes na cabeça… Eu tenho essa foto e até já coloquei no Instagram, é muito engraçada.
Em 1979, eu já estava fotografando há quase nove anos, mas achava que não tinha técnica, que precisava aprender mais sobre os tons de cinza da fotografia. Fui fazer um curso no Parque Lage, com uma professora americana, Constance Brenner. Quando mostrei as fotos, ela disse assim “você tem intuição e suas fotos têm senso de intimidade.” Eu acho que essa definição é perfeita.
Eu sempre gostei de estudar. Comprei uma coleção da Time Life que ensinava tudo sobre fotografia, sobre retrato. Eu ficava lendo aquilo e, como era em inglês, às vezes não sabia muito a tradução. Eu era amiga de Marina Lima, frequentava a casa dela e pedia “Marina, traduza um pouco”. Não sei se ela lembra disso porque ela devia ter uns 18 anos, era criança ainda.
Você acha que fora do palco os artistas estão despidos da performance da persona pública?
TE: Eu sempre tive uma relação sem protocolos com eles. Olhe, um dia estava no meu fusquinha com Gal, em Ipanema. Ela, de carona comigo, disse “pare, Thereza, pare!”. Eu parei e encostou um cara na janela, que começou a falar “gracinha, gracinha e tal…” Quando ele foi embora, perguntei “Gal, quem é esse cidadão?” “Você não conhece, Thereza? João Gilberto!”. As pessoas andavam na rua, aqui em Ipanema e você encontrava os artistas normalmente. Bethânia que sempre foi muito reclusa, ficava muito em casa, mas Gal ia para praia. Sábado e domingo na praia era Angela Ro Ro, Gonzaguinha, Zezé Motta, era “a família”. Hoje não vejo ninguém na praia, nem eu vou à praia.
Você estava falando sobre as imagens serem intuitivas, mas em alguns retratos, como o de Caetano, as pessoas parecem vestidas para a ocasião. Alguns retratos eram planejados?
TE: Vou explicar como foi feita aquela foto. Como eu via as fotos feitas em estúdio, tinha vontade de ter um, mas morava num quarto e sala no Horto e trabalhava em enfermaria e não tinha peito para alugar um estúdio, como Antonio Guerreiro. Então comprei um flash, daqueles que tem uma sombrinha, e montei um fundo infinito na parede. Caetano morava no Jardim Botânico. Eu disse “Caetano, você vai lá em casa que eu quero fazer umas fotos suas”. Ele chegou, vestiu aquela roupa de pierrot que ele tinha saído no carnaval, em 1979, e comecei a fotografar. Tinha uma pluma de pavão na parede – ele já tinha cantado aquela música sobre a pluma de pavão –, ele pegou, colocou no rosto e fiz uma série dele.
O estúdio era sua casa então. E você que revelava seus próprios negativos?
TE: Era um apartamento pequeno no Horto, no térreo. Era um quarto e sala e na cozinha era o laboratório. Eu revelava e copiava. Tanto que às vezes revelava demais porque não tinha ar-condicionado na cozinha e, quando estava quente, o revelador super revelava o filme. Dava uma foto sem detalhe, normalmente, um preto e branco e perdia os tons cinza.
No seu livro, além da foto de Caetano posando ao lado do lambe-lambe, também há uma foto de Gal segurando uma câmera, que parecem autorretratos.
TE: Exatamente. Eu fui fotografar Gal, ela morava na época no Tambá que era o local que morava todo mundo porque era baratinho, eram uns [apartamentos] duplex. Eu tinha mais de uma câmera, tinha uma Nikon e aquela Nikkormat, da Nikon, mas mais barata. E aí Gal ficou segurando aquela câmera e disse “eu vou lhe fotografar” e eu fiquei fotografando ela. Não tinha nem filme, era uma brincadeira.
Como é para você ver essas imagens circulando hoje, após décadas?
TE: Através do Instagram conheci quase todo mundo com quem me dou hoje. Os jovens todos me seguem. Por exemplo, ontem fui a Niterói, no MAC e no parque. Quando cheguei lá, um cara falou comigo “oi, você é Thereza? Eu adoro seu trabalho! Eu sou videomaker e quero fazer um filmezinho com você. Quando você vier em Niterói, me fale”. Quando estava em São Paulo, fui ver Marina no Bluenote e, dois rapazes na fila, “oi, Thereza”. Algumas pessoas já me reconhecem graças ao Instagram. Claro que, quando lancei o livro, dei muitas entrevistas, para a Folha de S.Paulo, o Estadão, O Globo, TV Globo… No dia que Gal morreu, no outro dia a Globo News me ligou e deu um minuto mais ou menos no ar falando sobre Gal. Acho que nisso também minha imagem aparece.
Olha, eu até botei no Instagram que quem reproduzir as minhas fotos e não botar os créditos, eu bloqueio e já bloqueei muita gente. Tem uma foto de Canô com Bethânia que fiz em Santo Amaro em 2007 – era centenário de Dona Canô –, e o cara reproduziu a foto e colocou no nome de outra pessoa. Eu fui lá e esculhambei com o cara e bloqueei ele. Eu faço muito isso. Outra coisa é quando alguém coloca algo desagradável sobre a personagem [em alguma foto que publicou em seu perfil]. Quem não gostar, não curta.
E qual o lugar da fotografia para você, hoje?
TE: Atualmente ando um pouco com preguiça. Estou com 83 anos. Não é fácil você ter 83 anos, mas, de vez em quando, eu começo a olhar os negativos e resolvo escanear uma nova foto. Mas eu acho que o melhor eu já fiz. Não tenho mais nada maravilhoso para fazer. Acho que o que eu mais gosto, acho mais interessante, já está escaneado. Mas eu gosto muito de retratar o pôr do sol, eu gosto do óbvio.
Alguma imagem específica te marcou profundamente?
TE: Tem uma foto que nunca coloquei no Instagram, que não é nem de artista. É uma que fiz quando era enfermeira. Eu entrei na sala de parto e estava aquela bunda enorme com um pé saindo da vagina. Quando entrei e vi aquela imagem impressionante, que eu nunca tinha visto, fotografei e guardei. Em 1984, fiz uma exposição e o convite era essa foto, mas a grande maioria era de artistas. Algumas pessoas, jornalistas, disseram que eu fiz isso para chamar a atenção, mas fiz porque acho que é uma imagem que vocês nunca viram. Um dia desses vou botar no Instagram e contar essa história. ///
+
Fotos gentilmente cedidas por Thereza Eugênia © Thereza Eugênia
Daniela Fonseca Moura é fotógrafa e pesquisadora baiana, mestre em Comunicação. É professora convidada da pós-graduação de fotografia do Centro Universitário Belas Artes (SP) e de cultura visual da Unicap (PE). Atua como curadora e mediadora do ciclo de conversas do Festival Imaginária.