Entrevistas

Seu pedido está a caminho

Gustavo Dias-Vallejo, JC Candanedo & Gabryella Roque Publicado em: 13 de novembro de 2025


Seu pedido está a caminho, de Gustavo Dias-Vallejo e JC Candanedo, 2025


Segundo estimativa do Itamaraty, em 2024 viviam no Reino Unido cerca de 230 mil brasileiros, dos quais 40 mil em situação irregular. Londres como é o principal destino, reunindo cerca de 115 mil. Desde janeiro de 2021, após o Brexit, brasileiros com dupla cidadania europeia perderam o direito automático de residir no país, e muitos passaram à ilegalidade. Além disso, os vistos são caros: o inicial pode chegar a 3,8 mil libras (cerca de R$ 30 mil) e a residência permanente custa até três vezes mais.

Foi nesse cenário de desafios e resistência da comunidade brasileira migrante que o brasileiro Gustavo Dias-Vallejo e o panamenho JC Candanedo criaram o projeto Seu pedido está a caminho (Your order is on the way). A dupla retratou a vida de motoboys brasileiros em Londres, conferindo identidade e dignidade a trabalhadores em sua maioria informais. Inspiradas nas obras modernistas de Tarsila do Amaral e Cândido Portinari, as fotografias, expostas pela Royal Academy of Arts nas ruas da cidade, deram protagonismo a uma população essencial no cotidiano londrino, mas frequentemente invisibilizada.

Os entregadores participaram ativamente do processo criativo, escolhendo como se representar: de forma autônoma, altiva e íntegra, mesmo diante das dificuldades de viver no exterior.

Em conversa com Gabryella Roque, Gustavo e JC compartilharam seus processos criativos e mostraram como suas próprias experiências como imigrantes foram centrais na construção dessas imagens.


Como surgiu a ideia para a realização do projeto Seu pedido está a caminho?

Gustavo Dias-Vallejo: Foi no final do ano passado, quando a Royal Academy of Arts convidou artistas brasileiros (ou artistas que trabalhassem com temas relacionados ao Brasil) para enviar propostas para uma espécie de mostra paralela que eles queriam fazer, algo que pudesse acompanhar “nas ruas”, em outdoors, a exposição principal sobre Modernismo Brasileiro que eles estavam montando.

Eu vinha trabalhando há um tempo num projeto multidisciplinar chamado MotoBR, com brasileiros/as que trabalham no delivery aqui em Londres. O projeto tem várias formas, entre elas teatro, audiovisual, livro… E quando eu vi essa proposta da Royal Academy, pensei que a gente poderia usar as pinturas do modernismo brasileiro como inspiração para fazer composições com os participantes do MotoBR e trazer uma discussão sobre identidade, brasilidade, imigração, trabalho e realizar essa espécie de intervenção nas ruas de Londres. Além disso, na época, o JC e eu tínhamos acabado de trabalhar juntos num outro projeto (It Happened Here) fotografando pessoas em ambientes externos, então a ideia meio que fluiu em termos de forma e conteúdo.



Motoboy, de Gustavo Dias-Vallejo e JC Candanedo, 2025

Vocês dois são artistas multidisciplinares com outras vivências profissionais além da fotografia. Como isso se conecta com o projeto Seu pedido está a caminho?

GDV: No meu caso tem uma conexão direta. Como falei, este projeto meio que foi um desdobramento de outro e que também segue uma linha de investigação de questões de identidade e relações entre micro/macro através da performance e intervenção no espaço social, incluindo participação do público e aquela ideia antiga de escultura social. Neste caso, as imagens em grande escala do Seu pedido está a caminho apareceram como uma possibilidade de irromper no cotidiano, surpreender as pessoas com algo inesperado, não só estético, mas algo que interpela os passantes: o olhar daqueles trabalhadores que (nas palavras deles) se sentem invisibilizados e que de repente estão ali, olhando pra todo mundo.

JC Candanedo: No meu trabalho, utilizo fotografia, multimídia e performance para explorar questões de identidade, migração e deslocamento, que são temas centrais deste projeto. Meu trabalho é socialmente engajado e busca responder à pergunta de como podemos usar as artes para promover transformação social. Nasci no Panamá, em uma família de imigrantes, e quando deixei meu país, no início dos meus 20 anos, tornei-me imigrante também. O fato de ter sempre vivido na diáspora me dá uma perspectiva única de como nós, imigrantes, preservamos nossa identidade quando estamos longe de casa. Para mim, era fundamental que esses retratos não fossem apenas uma mera documentação, mas uma celebração da identidade dos imigrantes brasileiros que trabalham no setor de entregas no Reino Unido.




Como a experiência pessoal de vocês como imigrantes em Londres contribuiu para a produção?

GDV: Acho que todo imigrante sente um pouco, às vezes mais e às vezes menos, essa sensação de habitar ou transitar por um espaço que não é o espaço em que ele se formou como pessoa. E com o passar do tempo, a gente vai negociando constantemente diversos aspectos da nossa identidade e moldando sentidos. Acho que isso foi fundamental pra pensar essa ideia de reconstruir as imagens modernistas usando referências tipicamente inglesas como pano de fundo (as casas todas iguais, os ônibus de dois andares, o cartaz do fish & chips…) e representar essa coisa da identidade híbrida. Além do mais, tem todo o aspecto de como o imigrante muitas vezes se sente escanteado (e infelizmente muitas vezes, discriminado), o que fez a gente querer “ocupar” os outdoors com aquelas imagens. 

JCC: Não é fácil ser imigrante no Reino Unido hoje em dia. Estamos vivendo um período de políticas de imigração cada vez mais hostis. As conversas nacionais sobre imigrantes, tanto na política quanto na mídia, estão carregadas de conotações negativas e mensagens pouco acolhedoras. O que é irônico para países como o Reino Unido, que devem tudo à imigração. Queríamos que esses retratos refletissem que somos participantes ativos na sociedade, que somos famílias, vizinhos e construtores da nação. E que cidades como Londres são prova de que todos se beneficiam quando os imigrantes são tratados com dignidade.


Como foi o processo de direção de arte para as fotografias selecionadas?

GDV: Bom, depois de escolher as fotografias, houve toda uma discussão de como a gente podia criar algo entre o documental e o onírico para que houvesse um diálogo entre aquelas peças icônicas (com todo o universo estético que elas trazem) e elementos contemporâneos que rodeiam aquelas pessoas – já que, desde o começo, a ideia era usar as obras modernistas pra provocar reflexões acerca de identidade e representação, imigração e trabalho, etc. Em outras palavras, a questão era como dialogar com essas referências originais (sem tentar simplesmente copiar), realçando a realidade dos personagens, e isso envolveu todo um trabalho no sentido de pensar a composição, cores e paletas, objetos e, claro, a cidade como pano de fundo. 

JCC: Como o Gustavo mencionou, a Royal Academy of Arts estava procurando artistas para enviar trabalhos em resposta a Brasil! Brasil! O Nascimento do Modernismo, uma exposição com mais de 130 obras de artistas brasileiros que atuaram entre as décadas de 1910 e 1970. Através do Gustavo e deste projeto, descobri a força do trabalho de artistas do Modernismo brasileiro, como Candido Portinari, cujas pinturas de migrantes refletiam as realidades do deslocamento e do movimento de pessoas dentro do Brasil (e para o Brasil) nos anos 50; e Tarsila do Amaral, cujo legado é uma celebração das paisagens urbanas e rurais do país.

Ambos os artistas exploraram questões relacionadas à identidade, ao trabalho e à migração em suas obras, o que nos inspirou a fazer o mesmo, mas sob uma perspectiva contemporânea. Nosso objetivo era nos afastar da estética de lamento presente em algumas das pinturas e adotar uma abordagem mais celebratória, fotografando esta comunidade de brasileiros que trabalham no setor de entregas com suas motos e acessórios, mostrando-os orgulhosos de quem são, do que fazem e de como conseguem consolidar suas vidas familiares em Londres.


(esq.) Seu pedido está a caminho, de Gustavo Dias-Vallejo e JC Candanedo, 2025. (dir.) Retirantes, de Candido Portinari, 1944. Reprodução fotográfica João Musa.
(esq.) Motoboy, de Gustavo Dias-Vallejo e JC Candanedo, 2025. (dir.) Vendedor de Frutas, Tarsila do Amaral, 1925. Reprodução fotográfica Romulo Fialdini.

Por que decidiram incluir no projeto obras de artistas modernistas brasileiros – Portinari e Tarsila do Amaral – para dialogar com as fotografias?

GDV: No começo, tínhamos uma seleção bem ampla de possíveis artistas e obras (incluindo Djanira, Di Cavalcanti, Anita Malfatti). Mas, com o passar do tempo, foi preciso escolher aquilo que pra gente parecia ser mais significativo, fértil e viável – num sentido prático mesmo. Nesse sentido, a série do Portinari sobre os imigrantes e o trabalho da Tarsila do Vendedor de Frutas, ambos com essa linguagem tão original e poética e ao mesmo tempo remetendo a coisas muito concretas da cultura e dos problemas do Brasil, nos pareceram ideais. 

JCC: Há muitas interseções entre a obra de Tarsila do Amaral e a de Candido Portinari em termos de propósito e impacto cultural, com um foco no próprio povo, nas paisagens e nas realidades sociais do Brasil. Enquanto Tarsila do Amaral elevava a figura do brasileiro, Portinari se dedicava a enfatizar as injustiças sociais. Ambos eram orgulhosos, críticos e conscientes da diversidade cultural e das contradições do Brasil daquela época. Da mesma forma, nossos retratos pretendem ser um comentário sobre as realidades dos imigrantes no Reino Unido em 2025, ao mesmo tempo em que buscam dar notoriedade a comunidades invisibilizadas e destacar sua participação na sociedade. Trata-se de gerar um diálogo entre disciplinas, tempos e geografias, e levar esse diálogo ao espaço público, onde muitas vezes somos levados a nos sentir indesejados.


Sobre a perspectiva dos próprios imigrantes retratados, Como os trabalhadores retratados se viram nas fotografias ao final do projeto? 

GDV: A gente conversou muito com os participantes antes, durante e depois de realizar o trabalho e toda a equipe ficou muito satisfeita com o resultado. O pessoal fez vários posts e comentários. A mulher que aparece no centro da foto do grupo, a Naira Brandão, conta que “participar dessa experiência para mim foi muito significativo, me fez sentir orgulhosa e também carregar uma grande responsabilidade que é representar quem deixa seu país em busca de uma nova vida movida a lutas, tristezas e alegrias. Acredito que é um modo de nos dar voz e visibilidade.”



Quais são suas principais referências nas artes visuais trazidas para este projeto?

GDV: Em termos de referências nas artes visuais, no meu caso, acho que tem muita coisa diluída dentro da arte contemporânea em geral – até porque o meu trabalho evoluiu através do teatro e da performance pro campo da arte contemporânea com intervenções, instalações e projetos multidisciplinares. Neste caso específico, por trás do elemento visual, eu pensei muito nos trabalhos da Cao Fei que tem toda uma série de projetos com trabalhadores na China. Tem também um grupo aqui na Inglaterra, chamado Common Wealth, que fez um trabalho lindo com retratos enormes de pessoas numa comunidade em Cardiff – eles encheram o bairro com imagens daquelas pessoas, uma coisa linda. E no fundo, pra mim, tem toda uma linha de trabalho de teatro documentário contemporâneo que constrói imagens e situações muito férteis trabalhando com várias “camadas de sentido” – como o trabalho do Rimini Protokoll ou da Lola Arias – que foram muito inspiradores pra desenvolver a ideia do Seu pedido está a caminho. 

JCC: Londres tem uma longa história de coletivos de fotógrafos socialmente engajados que, desde a década de 1960, têm defendido a fotografia como uma ferramenta para a mudança social. Como membro de um desses coletivos, o Four Corners, meu trabalho foi influenciado por outros integrantes, como Jo Spence, Peter Kennard e Paul Trevor, que, na década de 1970, documentaram como os membros da comunidade local bengali enfrentavam abusos racistas como um fator constante da vida cotidiana, e que registraram o momento em que se mobilizaram contra a violência racista e o racismo institucional da polícia. Outra das minhas maiores influências tem sido a artista britânica Lucy Orta, radicada em Paris, que colabora com comunidades marginalizadas e vulneráveis, incluindo migrantes, refugiados e requerentes de asilo, para explorar os efeitos das mudanças climáticas na migração e o valor dos ecossistemas interligados. Todas essas influências orientam o meu trabalho e a forma como abordo meus projetos.


E quais são os principais desdobramentos desse projeto? Existe outro em andamento que se relacione?

GDV: Então, como eu falei antes, o Seu pedido está a caminho faz parte de um trabalho muito maior: a gente acabou de filmar uma espécie de curta/documentário que está em processo de edição. A filmagem foi dentro de um dos maiores teatros do West End de Londres, aquela coisa bem pomposa com cadeiras de veludo vermelho e aqueles lustres de cristal, e a gente gravou uma série de entrevistas lá dentro e isso está em processo de edição. Além disso, estamos preparando um espetáculo teatral com os participantes que deve ficar pronto em 2026. Tem também um livro que estamos querendo publicar, um Guia de Londres feito pelo pessoal do delivery e todo um outro material de galeria que está sendo desenvolvido em paralelo, com uma combinação de imagens, textos e áudios. É um projeto bem amplo. /// 


Gabryella Roque (2001, São Paulo, SP) é designer, pesquisadora e graduanda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.  Em 2025 passou a integrar a equipe da Revista ZUM como estagiária.



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