A artista Rosa Luz e a representação trans no mundo das artes
Publicado em: 24 de janeiro de 2020Para além de seu rap, de letras ferinas e diretas, onde questiona o status quo de uma sociedade heteronormativa, elitista e racista, o trabalho da artista Rosa Luz com a fotografia também tenta romper com os paradigmas impostos, alargando os limites entre o autorretrato e a ficção. Saída de Gama, cidade satélite da periferia de Brasília, Luz entrou pela primeira vez em uma galeria de arte há apenas seis anos, em 2013. E, de lá pra cá, em muito pouco tempo já ocupou diversas outras com seu trabalho e seu corpo político.
Você pode me contar um pouco do que já fez com fotografia?
Rosa Luz: Comecei fazendo autorretratos em 2014 e essa foi minha pesquisa na faculdade durante a graduação. Por um ano desenvolvi o projeto Autorretratos de ninguém – você conhece essa pessoa? mesclando arte e tecnologia ao utilizar o Tumblr como suporte para exibir meus trabalhos. Nos anos seguintes da graduação, continuei pesquisando a intersecção entre fotografia e performance, pensando identidade de gênero e montação como elementos do meu processo criativo. Algumas fotos estão online atualmente e outras foram impressas em um livro de três edições: uma que vendi para um colecionador e as outras duas que estão no meu acervo pessoal. Também participei de exposições utilizando a fotografia como linguagem em galerias e instituições culturais como o Paço das Artes no Museu da Imagem e do Som (SP), o Museu da Diversidade Sexual (SP), a Casa de Cultura da América Latina (DF), a Sede da ONU (DF), e o Museu da República (DF), entre outros. Além de ter sido capa de uma edição da Revista Select em 2018 com a fotografia E se a arte fosse Travesti?, resultando em um convite da SP-Arte em 2018 para um debate sobre arte e gênero, apresentando minha pesquisa em fotografia em uma mesa com o artista Ariel Nobre e a curadora Paula Alzugaray. Além das artes visuais, atualmente também tenho utilizado a fotografia como elemento de comunicação enquanto criadora de conteúdo na internet, utilizando o Instagram como linguagem.
Como começou a usar a fotografia? Por que escolheu esse meio especificamente para alguns trabalhos?
RL: Comecei a utilizar a fotografia como linguagem artística na época da faculdade porque não tinha dinheiro para investir em tintas, telas e pincéis. Mas fazia uma fotografia mais acessível, porque ao me desprender da técnica eu tinha liberdade criativa para criar com qualquer câmera ou celular, o que não desvaloriza a criação final dependendo do conceito da obra. Depois de um tempo, a fotografia se tornou um meio para registrar as minhas performances e atualmente não consigo distinguir as fronteiras de criação entre a fotografia e outras linguagens artísticas como o vídeo e a música, que também fazem parte do meu processo criativo.
Seu trabalho com fotografia é sempre composto por autorretratos?
RL: Em 2019 tive o prazer de fotografar a capa de um single de uma artista travesti chamada Ayani. E foi uma experiência incrível e diferente, porque minha pesquisa em fotografia era voltada para pensar o autorretrato de maneira expandida e até que ponto eu precisaria aparecer em uma fotografia para identificá-la como autorretrato. Para mim, a natureza, por exemplo, ou uma fotografia que te remeta diretamente a uma questão que envolva sua identidade e autopercepção pode ser considerada um autorretrato.
Aquela sua foto onde está escrito em seu peito E se a arte fosse travesti? é de 2016, certo? Pode nos contar como surgiu, o que representa, o que significa, onde já foi exposta?
RL: Sim, pensei o conceito da fotografia e pedi pra Lyvia Emanuelly, minha irmã, que atualmente é uma tatuadora, desenhar a frase no meu corpo. Daí pensei o ângulo e como seria a foto. E pedi assistência de uma amiga travesti chamada Madu Krasny para clicar. Ela foi feita inicialmente com o intuito de questionar o espaço das travestis nas artes, pois este era o tema de uma mesa de debates que participei em um dos anfiteatros da Universidade de Brasília ao lado da musicista Aria Rita e da professora Amara Moira, que na ocasião lançava seu livro E se eu fosse puta?. Para mim, é uma fotografia muito simbólica que dialoga com a invisibilidade das travestis e pessoas trans da sociedade, o que reflete na nossa cultura e, por sua vez, nas artes. É um absurdo pensar que ao digitar “travesti e artes visuais” no Google uma das obras mais destacadas seja O Travesti, feita pelo artista Siron Franco, uma pessoa que não é trans e cuja obra deslegitima e desumaniza nossa identidade ao nos tratar no masculino. Para mim, esse título deveria ser mudado por violar os direitos humanos de pessoas trans e travestis, igual aconteceu com o quadro Mulata quitandeira, do Artur Ferrigno, que foi alterado para Preta quitandeira (é só visitar a Pinacoteca para ver), já que mulata é um termo racista que evoca a mula, animalizando corpos negros. Esta minha obra viralizou na internet, foi capa da Revista Select e integrou a exposição Plural 24H no Museu da Diversidade Sexual, além de ter sido exposta na Temporada 2017 do Paço das Artes no MIS-SP em uma exposição com curadoria de Jota Mombaça e Thiago de Paula Souza. Fez parte dos stands da Select na Art Rio e SP Arte e integrou a exposição Limiar de Lugar Algum no Museu da República (DF), entre outros. Além disso, também já vi a fotografia exposta em ocupações e centros culturais LGBTs de resistência, com artistas que fazem adesivos dela. Então acho engraçado os desdobramentos de uma imagem para outras formas que não previ, é uma das faces da criação que acho fascinante.
Achei interessante, dentre uma das exposições por onde essa foto passou, uma que chamava Não podemos construir o que não podemos imaginar primeiro. O que significa esse título? O que queremos construir? O que deve ser imaginado? O que a Rosa Luz quer construir enquanto artista, performer e fotógrafa? O que quer ver de diferente no mundo?
RL: Na minha opinião, essa exposição chama atenção para a importância da cultura na construção de novas narrativas onde todos os corpos e pessoas possam de fato ser inseridas, já que o sistema da branquitude historicamente nos excluiu.
Gostaria que você falasse um pouco sobre autorrepresentação e visibilidade de pessoas trans e travestis, sobretudo no mundo das artes. Há espaço? Qual seria o Limiar de algum lugar, que dá nome à outra exposição?
RL: Eu conheço muitas artistas que são pessoas trans, travestis ou não-binarias. E nós estamos produzindo em todas as áreas. O problema é que historicamente nunca fomos visibilizadas. Está para além das exposições e ainda acredito que o espaço para as pessoas trans e negras nas artes é pouco e insuficiente. Estou falando de uma reparação histórica que dê conta da nossa expectativa de vida, que gira em torno dos 36 anos. Ainda tem muito trabalho para ser feito.
Como foi pra você participar dessas exposições, ocupar com seu trabalho instituições como o MAM, o Masp, a SP-Arte e o Paço das Artes? Alguma coisa já mudou desde que você começou a trabalhar com arte?
RL: Muitas coisas mudaram desde que comecei a trabalhar com arte, sobretudo eu mesma. Eu poderia estar me vendendo e lucrando mais, falando menos. Mas simplesmente não me importo. Participar das exposições nas instituições citadas era o que a Rosa Luz de 17 anos sonhava. Foi tanta violência institucional e perrengue pra sobreviver na vida que a Rosa Luz de 24 anos está mais preocupada em ter qualidade de vida, sem precisar da validação de qualquer instituição. Um fato é que se eu não fosse figura pública não teria o mesmo espaço. Vejo travestis que atualmente estão criando no campo do sonhar e penso que facilmente poderia ser uma delas, pois artistas trans vivendo de arte parece lenda para a maioria de nós.
Li em uma entrevista na qual você afirma que a fotografia e o autorretrato foram substanciais durante sua transição. Pode me contar um pouco sobre isso?
RL: Como eu pesquisava autorretrato, pude me conhecer melhor a partir dos elementos visuais que eu trazia pra cada fotografia. Isso foi importante para que eu entendesse minha autopercepção e quais eram as fronteiras entre o que foi imposto pela sociedade e o que eu realmente era.
Vi seu vídeo sobre a SP-Arte (Por que tão branca?). Pode me falar um pouco mais desse corpo político, do corpo como esse instrumento que causa “tensão” nesse sistema transfóbico e heteronormativo que está posto? Como você coloca seu corpo para tensionar as relações sociais impostas?
RL: Quando fui convidada pra SP-Arte eu não tinha nem 40 reais sobrando, o que para muitos burgueses é sinônimo de relapso. Mas quando somos travestis negras, a falta de grana na maioria dos dias não é opcional. Só o fato de eu ser convidada para performar em um evento majoritariamente branco onde eu não tenho dinheiro para entrar já demonstra o racismo e a transfobia institucional presentes na tradição. Muitos podem argumentar que esse é o mercado e é assim que ele funciona e ponto. Mas eu discordo, o correto seria dizer que estamos falando de um mercado de arte de brancos que ainda se colocam como seres ideais, uma herança da colonização. É óbvio que também não podemos generalizar e entender que a organização do evento está se esforçando para diversificar o público da feira. Afinal de contas, diversidade pode significar mais lucro. Mas infelizmente essa crítica não se encerra na SP-Arte, é importante tensionar esse debate em todos os espaços das artes visuais no Brasil, historicamente racista e elitista.
De onde surgiu a ideia e o que você queria dizer com a sua série Autorretratos de ninguém ?
RL: Foi meu primeiro projeto de pesquisa na faculdade, desenvolvida com uma bolsa de pesquisa da CAPES chamada Jovens talentos para as ciências, com orientação da prof. dra. Ruth Sousa. Na época eu participava de um grupo de pesquisa sobre arte e ficção e também estava passando pelo processo de compartilhar com a sociedade que eu era uma mulher trans/travesti. A série Autorretratos de ninguém brincava com essas fronteiras entre arte, tecnologia e identidade. E o que mais me interessava era entender como cada indivíduo do Tumblr se relacionava com cada fotografia de uma maneira pessoal, já que elas podiam reblogar cada fotografia em seus blogs pessoais, ressignificando o contexto da obra, adicionando textos, etc. Foi meu primeiro trabalho que postei na internet, antes do meu canal no Youtube, e tive alguns seguidores já na época (risos).
E a série em que você usa o vestido de noiva? Da residência que você fez na Inglaterra. Pode falar dela?
RL: Fiquei quinze dias em silêncio usando um vestido de noiva na Inglaterra. Foi uma ação que fez parte do projeto Tanteo, organizado pela Mileskm. Um dos objetivos da residência artística era criar uma escola de arte nômade que rompesse com as fronteiras da sala de aula para entender como isso impactaria na criação artística do grupo. Foi um projeto independente, onde todos os artistas selecionados tiveram que arrecadar grana pra poder participar. Na ocasião visitamos cidades na Inglaterra, Escócia e País de Gales e fiquei três meses no total. Foi uma experiência única e radical, pois minha ideia era investigar outras formas de linguagem para além da fala, além da pesquisa geral do grupo que buscava entender a dinâmica dessa escola/grupo de pesquisa de artistas viajantes e os desafios para que funcionasse. O dinheiro do projeto acabou no meio e para seguirmos viagem para as outras cidades tivemos que organizar eventos em organizações, galerias e instituições culturais que abriam seus espaços para que pudéssemos desenvolver nossas pesquisas. No fim deu tudo certo e foi uma experiência incrível. Se eu soubesse que voltando pro Brasil enfrentaria mais perrengues teria até ficado por lá (risos).
Pode me contar um pouco da foto E então, ela nasceu?? Vi você falando dela no vídeo da fala na SP-Arte de 2018. Achei interessante que você relacionar autorretrato e ficção. Pode me explicar um pouco sobre isso? Quais os limites entre um e outro na sua fotografia? Você usa da ficção para falar da realidade? No caso do vídeo você fala do papel da mulher na sociedade…
RL: A foto aconteceu em um momento em que minha autoestima estava morta. Mas naquele dia específico me senti bonita por causa da maquiagem, então me refiro à autoestima quando digo que ela nasceu. Mas ao mesmo tempo por eu ser uma travesti e por ainda existir muita exotificação dos nossos corpos trans, o título acaba tendo um significado duplo para os preconceituosos que entendem pessoas trans como “nasceu homem e virou mulher”. É aí que entra a ficção neste trabalho.
Você acha que seu trabalho de fotografia é menos conhecido do que o de rap? Se sim, por quê?
RL: Eu acho que essa é uma pergunta mais subjetiva, principalmente porque vivemos em uma era tecnológica onde muitas vezes os algoritmos nos prendem em bolhas. Então acredito que algumas bolhas conhecem mais minha fotografia do que meu rap, mas de um modo geral acredito que o rap tem mais visibilidade nas plataformas digitais, porque consigo saber quantos streamings tive no último ano, por exemplo (mais de 40 mil). Ao mesmo tempo, é difícil quantificar o impacto que um rap ou uma fotografia pode ter na vida de alguém. Então para mim não é sobre visibilidade e sim sobre relevância.
Você continua trabalhando com fotografia? Está realizando atualmente algum projeto novo?
RL: Eu continuo criando fotografia no Instagram enquanto comunicação, mas ultimamente tenho me dedicado mais na criação de vídeo e música. Não estou fechada com a possibilidade de desenvolver futuros projetos fotográficos, para mim a linguagem depende do projeto e atualmente tenho gostado de mesclar as linguagens, como, por exemplo, no intercâmbio chamado IVLP que acabei de participar a convite do Departamento de Estado dos Estados Unidos, onde pude desenvolver tanto um projeto de comunicação e arte com a web-série #RosaViaja, como pude trabalhar meu lado ativista ao visitar diversas organizações não governamentais e instituições culturais para entender suas estruturas de funcionamento e como estão trabalhando para promover os direitos humanos da comunidade negra e LGBTI. ///
Rosa Luz é cantora, compositora, artista visual e ativista da visibilidade LGBTQIA+.
Paula Sacchetta é documentarista. Formada em jornalismo pela ECA-USP, escreveu durante algum tempo sobre fotografia para o caderno Aliás, do Estadão, e colaborou com outras publicações da área, além de ter mediado mesas de debate no festival Paraty em Foco.
Tags: Arte e ativismo, Ativismo trans, LGBTI