Entrevistas

Rosa Gauditano e as lésbicas do Ferro’s bar e da boate Dinossauros

Luana Navarro & Rosa Gauditano Publicado em: 18 de agosto de 2023

Rosa Gauditano, Ferro’s Bar, 1978-1979 © Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

Em novembro de 1978, a fotógrafa Rosa Gauditano, então com 23 anos, descia a rua Frei Caneca à procura do Ferro’s Bar. Conhecido na noite paulistana por ser frequentado por lésbicas e sapatões, o bar, localizado na rua Martinho Prado, era um dos poucos espaços para socialização, flerte e diversão entre mulheres.

Incumbida de realizar uma pauta sobre as lésbicas em São Paulo, Gauditano iniciava ali o seu primeiro trabalho como freelancer para a grande imprensa. Suas fotografias seriam algumas das raras documentações do ambiente interno do bar.

Hoje, o Ferro’s é um ícone na história do movimento lésbico no Brasil. Foi ali que, no dia 19 de agosto de 1983, ao reivindicar o direito de distribuir o boletim ChanacomChana dentro do bar, um grupo de lésbicas realizou um levante público contra os episódios de lesbofobia e repressão ocorridos no estabelecimento, marcando a data como o dia do Orgulho Lésbico. Sua história foi recentemente contada no documentário Ferro’s bar, com direção coletiva do Cine Sapatão (Aline Assis, Fernanda Elias, Nayla Guerra e Rita Quadros).

Além do Ferro’s, Gauditano documentou a boate Dinossauros, em um momento em que as pessoas tinham sua liberdade constantemente cerceada e seus desejos reprimidos por um regime autoritário, moralista e violento.

De lá para cá, Rosa Gauditano se consolidou como um dos grandes nomes do fotojornalismo brasileiro, realizando uma extensa documentação das greves do ABC e dos movimentos sociais dos anos 1970 e 80. Nos anos 70, Rosa integrou a equipe do jornal Versus como fotógrafa e editora, trabalhou para veículos como a Folha de São Paulo e arevista VEJA e, desde o final dos anos 80, dedica-se a realizar trabalhos com os povos indígenas. Suas obras integram importantes acervos, como o do Conselho Mexicano de Fotografia, o do Museu de Arte de SP, a Coleção Pirelli/Masp e o Museu da Solidariedade / Fund.Salvador Allende, no Chile.

Agora, 44 anos depois, as imagens da série Vidas proibidas serão expostas pela primeira vez no Brasil na 35a Bienal de São Paulo, com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel.

Rosa Gauditano, Boate Dinossauros, 1978-1979 © Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

Você poderia me contar como foi o processo de produção dessas fotografias? As fotos fariam parte de uma reportagem a ser publicada na revista Veja, é isso?

Rosa Gauditano:  Foi uma encomenda para a revista Veja. Eu era freelancer e já tinha feito um trabalho sobre as prostitutas. Eu tinha feito aquele trabalho no começo de 1978, aí surgiu essa pauta lá na revista e o Pedro Martinelli, que trabalhava na revista, falou para o Sérgio Sade, que era o editor, “tem uma fotógrafa, a Rosa, que acho que pode fazer. Ela fez um trabalho na São João com as prostitutas, talvez ela consiga fazer”. E aí eles me ligaram e me chamaram, e eu fui lá fazer o meu primeiro freelancer para a grande imprensa. Nessa época, a revista tinha sucursais em todo o Brasil, em Belém, Manaus, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador, Rio Grande do Sul e Paraná, tinha equipes de fotógrafos contratados pela revista em todos esses lugares. Eram uns 20 fotógrafos, eles pediram a pauta para todos os fotógrafos homens e pediram para mim. Eu fui a única que conseguiu fazer, ninguém mais fez. Eles me deram o endereço do bar e eu fui lá. Eu morava perto da Avenida Paulista, e esse lugar era perto da Praça Roosevelt, então, eu lembro que eu desci a pé lá da rua Frei Caneca até lá.

Esse bar era o Ferro’s?

RG: Sim, era o Ferro’s. Eu fui lá a primeira vez um dia de tarde, tinha umas meninas lá e eu comecei a conversar com elas, expliquei que arevista estava fazendo uma matéria sobre as lésbicas em São Paulo e disse que gostaria de saber se eu poderia fotografá-las e se elas poderiam me apresentar outras pessoas. Eu falei para elas, “olha, quem não quiser ser fotografada, está tudo bem, a revista tem uma penetração muito grande, então, se vocês não quiserem sair nas fotos, se vocês tiverem problema de família com seus pais, vocês não saiam nas fotos, porque vai dar uma grande repercussão essa matéria. Eu só vou fotografar quem me autorizar”. E aí uma delas falou, “tudo bem, você pode fotografar, quando a gente não quiser, a gente sai de perto, a gente fala pra não fotografar”. Eu fiz poucas fotos nesse dia. Elas me levaram para a parte de trás do bar e mostraram a mesa de bilhar. Fiz amizade com elas e cada dia eu fotografava um pouco. Um dia, uma delas me perguntou se eu conhecia a boate Dinossauros. Essa boate era na mesma rua do Ferro’s, quase na esquina. Era uma porta cinza, não tinha nada escrito fora. Uma delas me falou “você pode vir aqui a partir das onze da noite e ficar até às seis da manhã”. Eu tinha 23 anos, nem conhecia a noite de São Paulo, aí me introduziram lá e eu fui algumas vezes. A revistame deu uns filmes, a gente usava o Tri-x puxado para 1600 e no máximo 3200 ASA. Eu tinha uma máquina Pentax SP2 com uma lente normal e um flash, porque a boate era muito muito escura, então, não dava para fazer sem flash. Os filmes tinham muito pouca latitude, não é igual hoje, com o digital, que você consegue usar um ISO muito alto e fotografar em condições de pouca luz.

Rosa Gauditano, Ferro’s Bar, 1978-1979 © Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

Nesse período de produção das imagens, teve algum direcionamento da revista sobre o que fotografar e como fotografar?

RG: Não, nada, eu fiz o que eu queria fazer. Eu não sei quem propôs essa pauta, eu não entendo quem fez essa pauta, porque era plena época da ditadura, onde as lésbicas eram super perseguidas e também escondidas, né? As pessoas não apareciam. Eu nunca entendi. Eu tentei saber com o editor, mas nunca tive resposta, porque eles fizeram essa matéria e, depois, nunca publicaram. Nunca publicar tem tudo a ver com o tempo que era aquilo. Então, quando eles falaram “não vai publicar”, eu falei, “ah, tá. Muito estranho foi terem feito a pauta, entendeu?

Quanto tempo você ficou fotografando?

RG: Dois meses. Não ia muita gente, às vezes eu chegava lá e não tinha ninguém. Isso foi no final de 1978 e começo de 1979.

Por isso que o trabalho aparece, às vezes, com duas datas?

RG: Sim,é porque eu não sabia exatamente a data.

Um ano depois de você fotografar, em 1980, houve uma invasão policial bem violenta no Ferro’s. Foi um episódio explícito de violência e repressão, várias mulheres foram agredidas e presas, depoimentos sobre esse momento estão no documentário sobre o Ferro’s, lançado em 2023.

RG: Eu não acompanhei isso. Eu não tinha ideia disso naquela época, era muito jovem. Mais recentemente, eu ouvi relatos de lésbicas que foram torturadas, presas e perseguidas.

Nesse período, 1978 e 1979, você está fotografando também as greves do ABC e os movimentos sociais que estavam ocupando as ruas…

RG: Então,eu fiz um livro, em 2021, A mesma luta, que é um recorte desse material da época do jornal Versus, que é entre 74 e 85. Eu tenho um material maior, mas no livro é um recorte das mulheres nos movimentos sociais. O livro ganhou o prêmio de melhor livro autoeditado no PhotoEspaña, em 2022. Esse material todo é dessa época. E esse material, se você procurar na grande imprensa, você não acha. No Versus, às vezes tinha um freelancer ou outro que vinha trazer trabalho, mas quem fazia as principais coisas era eu.

Rosa Gauditano, Boate Dinossauros, 1978-1979 © Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

Olhando para as fotos do fotolivro A mesma luta, você sempre estava fotografando muito perto, assim como nas fotografias da série Vidas proibidas. Isso me chama a atenção.

RG: Sim, porque inclusive, nessa época, eu tinha uma Pentax SP2, que foi a minha primeira máquina com uma lente normal. Então, eu sempre ficava no meio do povo e, até hoje, é assim.

Tem um livro seu, anterior ao A mesma luta, que é o Elas por elas. Nele você publicou dois ensaios, Prostitutas e Lésbicas. Você retomou esses dois ensaios no mesmo momento em que estava retomando as imagens do seu arquivo e que foram publicadas no fotolivro A mesma luta? Como foi isso?

RG: Este livro são quatro exemplares, foi nesse mesmo período. Eu pedi para a Mayra, minha sobrinha que trabalhava comigo, escanear o material das prostitutas. E aí, nesse período, eu pedi para a [editora] Abril me emprestar o material das lésbicas. A Abril não tinha falido ainda e, como eu fui fotógrafa contratada da Veja, e eles me conheciam… o grupo Abril tinha um respeito muito grande pelos fotógrafos. Eu escaneei com o meu scanner, que era um Nikon, mas que dava para fazer só um 30x40cm, não era muito poderoso. Eu escaneei e devolvi, aí eu fiz as cópias. Eu falei para Mayra,vamos fazer um protótipo de um livro”. Só que eu fiz esse protótipo e juntei as prostitutas e as lésbicas. A impressão ficou legal, eu paguei uma grana e fiz só quatro, porque eu não tinha dinheiro, mas era para ver se eu conseguia. Mas para todo mundo que eu mostrei, as pessoas falaram “não, você não pode juntar as lésbicas e as prostitutas no mesmo livro”. Para mim, eu podia, inclusive, eu poderia fazer um livro com as lésbicas, as prostitutas e o material das mulheres do livro A mesma luta. Porque, para mim, é tudo mulher, entendeu?

São grupos à margem.

RG: Sim, são grupos à margem, como eu me sentia também. Porque eu fui uma pessoa que saí de casa com 18 anos, também com problema na minha casa e, então, para mim, era todo mundo igual, entendeu? Eu mostrei para o meu curador na Inglaterra, o Stephan Schimid, que editou o Forbidden lives, e ele me disse que eu não poderia juntar as lésbicas com as prostitutas, porque as lésbicas ficariam bravas. Aí eu fiquei meio desanimada. Fiz esses quatro exemplares do Elas por elas e acabou que eu não toquei o projeto pra frente por causa disso. Eu pensei, “acho que tem que rever e refazer, né?”. Aí o Stephan quis fazer lá em Londres e imprimiu esse livrinho, o Forbidden lives. Eu editei o material, mas não participei junto.

Então, foi a partir do Elas por elas que Stephan viu o material e teve a ideia de fazer a exposição online e publicar o Forbidden lives?

RG: É. Ele adorou esse trabalho quando viu. Ele disse “Rosa, esse trabalho é demais”. E aí ele me convidou para fazer parte da galeria dele, a Albumen Gallery, em Londres. Esse livrinho tem uma tiragem pequena, que ele imprime quando as pessoas pedem.

© Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

Quais são as imagens do Ferro’s e quais são as da boate Dinossauros?

RG: Então, no livro, está tudo misturado. Essas do show são da boate Dinossauros, no final da noite tinha sempre um show diferente. Essas duas moças que aparecem em um lugar diferente, eu as conheci no Ferro’s bar e elas me convidaram para ir no apartamento delas, que era lá perto da Praça da República. Elas tinham adotado um neném e me perguntaram se eu não queria tirar foto do neném.

O público da Dinossauros era só de mulheres?

RG: Sim, só tinha mulher. Às vezes tinha uns caras, mas não era uma boate para gays, era uma boate para lésbicas.A boate era delas, eu não sabia quem era a dona, eu ficava lá fotografando, porque era escuro pra caramba, e ficava tentando entender. Eu só descobri o nome da boate agora. Eu pedi para olharem nas especificações do arquivo da revistase não tinha o nome da boate e aí tinha lá o nome, Dinossauros.

Rosa Gauditano, Boate Dinossauros, 1978-1979 © Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

O que você descobriu fotografando o Ferro’s, a boate Dinossauros e a comunidade lésbica ?

RG: Eu mostrei esse trabalho lá em Arles e me perguntaram se eu era lésbica, eu disse “não”, aí me perguntaram porque eu fui lá fotografar. Eu falei “porque me falaram pra fotografar e eu fui fotografar”. Para mim, qualquer coisa é natural, entendeu? As pessoas têm um filtro com as coisas, eu não tenho esse filtro. Com 20 anos, meu amigo Airton de Magalhães me chamou para ir com ele fotografar as prostitutas na avenida de São João, eu falei “se meu pai souber, eu fico de castigo”. Na época, eu morava com a minha família. Eu tinha acabado de ganhar minha Pentax da minha mãe, e ele também, aí a gente foi. Nunca tive, assim, essa censura, “ah, não vou lá porque elas são lésbicas”. Para mim, era uma curiosidade ver como elas namoravam entre elas, para mim, era um aprendizado, assim como encontrar as prostitutas também foi. As prostitutas eram mulheres muito pobres, elas não queriam que a gente fotografasse. Nós ficamos lá sem fazer nada de foto, conversando. O Airton estava seco para fotografar, eu acho que ele me levou lá porque ele sabia que eu abriria um espaço com elas, porque eu era mulher. Aí veio uma moça e me disse que queria mandar uma foto para o pai, perguntou se eu não poderia fazer um retrato para ela. Eu fiz as fotos dela, revelei no banheiro da minha casa e, no dia seguinte, a gente levou lá para ela. Quando a gente chegou e mostrou as cópias, as outras mulheres acharam muito legal e começaram a pedir para serem fotografadas. Muitas delas eram jovens, mães. Algumas diziam que trabalhavam ali e que a família não sabia.

A fotografia é um aprendizado para você? Como é isso?

RG: Sim, fotografia, para mim, foi um canal para eu aprender a viver. Porque eu tive que sair de casa com 18 anos. O meu pai era uma pessoa muito restritiva com a gente. Eu tenho quatro irmãos. O meu pai era um italiano muito simples, de Nápoles, ele era camponês numa família pobre, no pós-guerra. Ele teve uma vida difícil. Só que o meu pai conheceu a minha mãe na Praça de São Marcos, em Veneza, e ela era uma mulher à frente do tempo. Minha mãe tinha ido viajar para Itália com as suas tias, ela era de classe média alta, os dois se conheceram, minha mãe voltou para o Brasil e depois meu pai veio para se casar com ela. Minha mãe queria ser médica, ela era independente, tinha carro já na década de 50, era de uma família liberal e lia muito. Eles tinham uma visão de mundo diferente. Meu pai queria que a gente ficasse em casa fazendo enxoval com 15 anos, eu não podia fazer nada. Ele não queria que eu estudasse fotografia. Aí chegou uma hora que eu falei “tchau” e fui embora. E quem deu uma câmera para mim foi a minha mãe, na época, ela trabalhava e ganhava bem. Minha mãe incentivava a gente a estudar e a fazer o que a gente quisesse.

Rosa Gauditano, Ferro’s Bar, 1978-1979 © Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

Como está sendo para você participar da Bienal de São Paulo especificamente com a série Vidas proibidas?

RG: Eu te confesso que eu levei um susto quando o Hélio Menezes ligou me convidando para participar. Eu perguntei, “mas com esse trabalho?”, aí ele me disse, “sim, esse trabalho é  importantíssimo”. Eu fiquei muito feliz e honrada com o convite. Esses dias, eu estava vendo a lista que saiu com os nomes dos artistas e eu vi que também o Eustáquio Neves participará, ele é um amigo meu, achei muito legal. Por outro lado, tem toda essa coisa de entender um pouco aonde você está entrando, né? Mas eu tô muito feliz de ter sido convidada. Para mim, é um reconhecimento do meu trabalho, aqui, no Brasil. É tão difícil a gente ter reconhecimento, tem tanta gente importante que é esquecida, que quando tá numa posição todo mundo badala e aí, a pessoa sai daquela posição, e todo mundo esquece dela. O Brasil tem essa coisa esquisita, né? Eu fiquei muito contente de poder estar representando como mulher fotógrafa, ainda mais com esse trabalho das lésbicas. Mostrar esse trabalho é poder trazer o Brasil da década de 70 para cá, é poder trazer um pouco da vida dessas mulheres. Eu falei para o Hélio que estou me sentindo abrindo uma gavetinha que estava fechada dentro do armário, esquecida, e, de repente, entrou luz na gaveta. Essa é a sensação que eu tenho, de repente, entrou uma luz nesse trabalho. Porque estava guardado, nunca tinha parado, na verdade, para olhar direito ele. E aí, poder contribuir com a divulgação dessas informações e dessas imagens para todo o grupo das mulheres lésbicas, para o povo LGBT, sabe, eu acho que a gente tem que ir junto. Tem espaço para todo mundo nesse mundo, eu acho que as pessoas têm que ser respeitadas, as pessoas têm que ser amadas, e viver e curtir o Brasil que é um país tão bom, tão grande e tão ensolarado, né? A gente tem mais é que ocupar os espaços.

Rosa Gauditano, Boate Dinossauros, 1978-1979 © Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

Esse trabalho já foi exposto online, em 2018, na Albumen Gallery. Depois, ele foi publicado no Elas por elas e também no Forbidden lives, agora ele será exposto fisicamente na Bienal, ou seja, são três suportes diferentes. Como você está pensando o material agora? Para você, ter o trabalho impresso e na parede te move a repensar a edição, o sequenciamento das fotos?

RG: Eu tentei fazer exposição com esse material antes, mas para todo mundo que eu propus, eu nunca tive um sinal verde para fazer. Não é um um tipo de material que as pessoas abrem muito espaço. O trabalho poder logo estar justamente no maior espaço, que é a Bienal de São Paulo, é demais. Eu falei para o Hélio Menezes, “vamos fazer uns folhetos com as fotos para distribuição”, mas eu não tinha pensado que pela Bienal circulam milhares de pessoas, não seria viável. Aí eu pensei “que coisa boa, muita gente vai ver esse trabalho”, e ter um material montado é uma coisa também palpável.Você tem a foto ali para olhar. É uma oportunidade para as pessoas abrirem a gaveta junto comigo, abrirem a gavetinha escura e olharem lá dentro e o trabalho sair. Eu acho que o trabalho está nascendo de novo, na verdade, porque todos esses movimentos que eu fiz, publicando os livros, eles têm poucos exemplares. Na verdade, eu não mostrei esse material ainda como deveria mostrar. Para a Bienal, eu fiz uma divisão, de um lado, estarão as fotografias do Ferro’s bar e, do outro, as fotografias da boate Dinossauros, que estarão em uma sala provavelmente com classificação indicativa para maiores. Diga-se de passagem, eu não gostava muito dessas imagens do show na boate Dinossauros.

Rosa Gauditano, Boate Dinossauros, 1978-1979 © Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

Por que você não gostava?

RG: A impressão que eu tinha é que isso aqui é imagem para homem olhar, entendeu? Aí eu ficava pensando, “eu não vou mostrar, porque os homens vão achar o máximo, mas não sei se as mulheres vão gostar muito”. Então, é uma coisa que me incomodava nesse material aqui. Plasticamente eu gosto das imagens, mas essa coisa do nu e da bunda em primeiro plano, eu não gosto. Mas as mulheres iam lá para assistir isso, elas curtiam, e era um monte de gente. É um outro lado que a gente não conhece.

Você manteve contato com algumas das mulheres?

RG: Não, mas estou tentando localizar algumas. Eu fiz contato com a Rita Quadros, que é desse tempo do Ferro’s, eu vi ela em um vídeo no Instagram, ela participa em um documentário recente sobre as lésbicas em São Paulo. Eu gostaria de encontrar essas mulheres.

Rosa Gauditano, Ferro’s Bar, 1978-1979 © Rosa Gauditano/StudioR. Foto gentilmente cedidas pela fotógrafa.

Essas fotografias são muito únicas, não há muitos registros do Ferro’s bar, nem da boate Dinossauros. Você conhece alguém que tenha fotografado a comunidade lésbica neste período?

RG: Não.Acho que ninguém fotografava porque você tem que ter paciência para fazer um trabalho desse. Eu fiquei dois meses fotografando, eu ia das onze da noite às seis da manhã. Eu me pergunto, “como é que eu ficava fotografando?”. Porque eu gosto de dormir cedo, eu sou uma pessoa que dorme 10 horas. Para você fazer um trabalho que é difícil as pessoas se colocarem, você tem que ter tempo, você tem que conviver com as pessoas, tem que conhecer as pessoas, tem que entender. Entender como é que o negócio funciona, não pode chegar fotografando. Se eu chegasse lá, com flash, fotografando na primeira noite, elas teriam me mandado embora. Eu acho que, na primeira noite, eu nem fotografei. Eu fui lá e só fiquei olhando, aí eu pensei “gente, como que eu vou fazer nesse escuro?”. Então, assim, em um trabalho como esse, às vezes você vai e faz uma foto num dia, você faz duas fotos em um outro dia, é um trabalho de costura, sabe? De bordado. Com os indígenas, é a mesma coisa. Eu fiz um trabalho sobre os rituais Xavantes em que eu fiquei 13 anos fotografando. Para você fazer um negócio direito, você tem que ter tempo. Porque as coisas não são assim, né? Para você conseguir imagens diferentes, especiais, você tem que chegar nas pessoas. As pessoas têm que se sentir à vontade até o ponto em que elas não te enxergam mais e que você começa a fazer parte do grupo delas, aí que as fotos começam. Isso é uma coisa que as pessoas não entendem muito, porque hoje eu vejo essa moçada jovem fotografando com celular e é tudo igual. Porque o celular já tem aquela coisa que ele equilibra toda a luz, ele equilibra tudo, se está contra a luz, ele acerta a luz, ele já te deixa um negócio pronto. E outra, as pessoas não têm um tempo de convivência para fazer uma coisa diferente, para você usar uma luz diferente. Antigamente, quando a gente fotografava com filme cromo e preto e branco, ou era de manhã cedo, até às onze da manhã no máximo, ou depois das três ou quatro da tarde. Senão o material ficava uma porcaria, você não conseguia editar nada porque a latitude do filme era muito curta. Fotógrafo é aquele cara que tem que ter paciência. Pelo menos fotógrafo antigo é aquele cara que observa, que não liga de ficar cinco horas esperando o sol subir para fazer a foto em cima da cruz da igreja do jeito que ele pensa que atende. Então, você tem que ter paciência.

Olhando para os seus trabalhos dos anos 70 e para os seus trabalhos mais atuais, como a sua linguagem fotográfica e a sua relação com a fotografia se transformaram?

RG: Não sei, às vezes eu olho esses trabalhos e penso que meu trabalho, visualmente e fotograficamente, é mais potente nos anos 70 do que agora. Eu acho que porque a técnica foi mudando, fui mudando de lente, fui mudando de máquina, fui mudando o filme, parei de fotografar PB e aí comecei a trabalhar com revistas e a usar flash… aí você começa a fazer uma coisa mais empastelada, né? Fazer cromo, fazer cor, mudava totalmente, até chegar no digital. Mas eu me sinto ainda aquela dos anos 70. ///

Rosa Gauditano (São Paulo) trabalha com projetos de fotografia, exposições e livros que documentam, sobretudo, populações marginalizadas. Participou de inúmeras exposições individuais e coletivas no Brasil, Londres, França, México, Itália, USA e China. Entre suas publicações estão Elas por elas (2017), Povos indígenas no Brasil (2011), Raízes do povo Xavante (2003) e A mesma luta (2021).

Luana Navarro é artista visual e professora nos cursos de Artes Visuais e Jornalismo na PUC-PR. Estudou fotografia no Núcleo de Estudos da Fotografia, em Curitiba, Fotografia Contemporânea no Centro de la Imagen, na Cidade do México, e é mestre em Processos Artísticos Contemporâneos, pela UDESC, em Florianópolis.

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