Entrevistas

Romina Ressia: ironias e absurdos para desarmar cânones

Renata Martins & Romina Ressia Publicado em: 14 de julho de 2023

Afresco III, de Romina Ressia

Uma das mais destacadas representantes da fotografia contemporânea argentina, Romina Ressia cria com seus retratos imagens refinadamente absurdas e anacrônicas. Nelas, seus retratados ganham protagonismo numa engendrada narrativa que justapõe a estética clássica da pintura europeia, a técnica moderna da fotografia e a inserção de objetos lúdicos contemporâneos. O resultado dessa perspicaz simbiose tecno-temporal é revelado através da soberania irônica de seus personagens, que desestabilizam nosso olhar tanto pela austeridade e rigidez postural típica de retratos régios do passado, como pelo humor na intervenção de objetos atuais, capazes de ativar nossa memória coletiva.  

O embrião dessa pluralidade artística de Romina Ressia pode ser identificado já em sua infância através do exercício precoce de seu olhar, de seu fascínio pela fotografia e de sua introdução mundo das artes:

“Meu primeiro contato com a arte foi aos seis anos na casa de uma tia, que tinha uma reprodução de As meninas, de Diego Velásquez. Ainda me lembro como aquela imagem me impactou e gerou muita curiosidade. Queria saber quem a tinha pintado e quem eram aquelas meninas retratadas. Desde pequena me interessei pelos ‘grandes mestres’, como Rembrandt e Da Vinci. Quando me levavam a museus, por exemplo, eram obras da pintura clássica europeia as que mais me atraíam. É como se, desde pequena, tivesse um vínculo natural com a pintura de estilo barroco e renascentista. Com o passar dos anos, mesmo apurando meu interesse por outros movimentos da arte, nunca deixei de me sentir atraída por aqueles períodos. Por outro lado, a fotografia também sempre me fascinou. Quando tinha uns oito anos, pedi à minha mãe para fazer cursos de fotografia. Naquele momento, há mais de 30 anos, não era algo tão comum estudar fotografia, ainda mais sendo criança e em uma cidade pequena como a minha”, relembra Romina.

Mesmo que o Barroco e o Renascimento sejam os períodos da história da arte que mais marcaram a formação da artista e, consequentemente, influenciaram suas criações artísticas posteriores, a temática de suas obras aponta para o presente.

Cada projeto artístico de Romina Ressia aborda de forma subliminar questões atuais da sociedade, do indivíduo, assim como seu comportamento social e, sobretudo, sua evolução sociocultural. Para a fotógrafa, “somos um conjunto de acontecimentos que foram somados ao longo de nossas vidas: conhecimentos, ideias, pensamentos. Num determinado momento pensei que uma forma interessante de abordar isso seria mesclar passado, presente e futuro. Assim, poderia retratar essa evolução e a passagem do tempo em uma única imagem.”

Por isso, desde 2013 a artista desenvolve o projeto How would have been? (Como teria sido?) como uma estratégia para questionar e tematizar imageticamente temas atuais, como: quanto o ser humano evoluiu com o passar dos séculos ou como a tecnologia vem nos ajudando (ou não) a evoluir individual e coletivamente. Sobre essa série, Romina diz: “A mescla temporal em que incorporo objetos modernos a imagens de pessoas que evocam uma referência ao barroco ou ao classicismo foi um experimento que resultou em um projeto muito interessante e no qual venho trabalhando já há dez anos.”

Porém, engana-se quem considera que a incorporação de objetos lúdicos modernos a imagens de estética renascentista tenha surgido somente de uma demanda meramente estética da fotógrafa. Tendo como ponto de partida o referencial clássico europeu, a artista faz uso de construções absurdas e irônicas para revelar uma ácida crítica à vida social e cultural contemporânea, como a busca insana pela perfeição estética. Nessa trama de justaposições emerge a dúvida: Será que o projeto civilizatório ocidental foi realmente bem-sucedido? Cada objeto atual utilizado nessa série pode ser igualmente interpretado como uma ferramenta necessária para desarmar os cânones artísticos europeus que marcaram a formação cultural não só argentina, como também de toda nossa região.

“É necessário ver além da simples função que um determinado objeto cumpre para as pessoas. Por isso, e em muitos aspectos, os objetos têm um papel fundamental para lidar com as mudanças que passamos ao longo do tempo. Mas não me refiro à função primária que exercem na vida cotidiana. A função de objetos lúdicos acaba revelando, por exemplo, como nos relacionamos e podemos interagir com os outros, além de terem a capacidade de nos abstrair de certas realidades. Essas funções, não óbvias à primeira vista, são o que também me interessa analisar e incorporar em minhas criações fotográficas. Claramente, por trás disso, está minha intenção de ressignificar o cânone europeu, especialmente do ponto de vista argentino (temos uma forte influência das artes espanhola e francesa). Essa mescla me interessa e, até o momento, é a forma mais efetiva que encontro para concretizar esses pensamentos”, declara a fotógrafa.  

Em meio a um jogo de múltiplos olhares (das pessoas retratadas que são observadas, das pessoas espectadoras/nós que olham as retratadas e da operadora/fotógrafa que foi uma testemunha ocular da cena que compôs) trama-se uma narrativa visual provocativa que, através de um olhar mais profundo, revela observações e análises da fotógrafa sobre nossa contemporaneidade. “Interessam-me questões do tipo: Como as pessoas vêm se comportando de forma individual, interagindo entre si e com seu entorno social ao longo dos séculos? Quais coisas continuam iguais e quais mudaram com a passagem do tempo? Observar as atitudes, ações e evolução das pessoas é um hábito que me fascina e, justamente através do retrato, encontro a melhor forma de trabalhar esse meu interesse. Afinal, qual seria a melhor formar de analisá-las e tratar de entendê-las se não através do retrato?”, questiona Romina.

Ao fazer uso do suporte da fotografia, a artista encontra a forma mais cômoda para expressar o que deseja e obter resultados imediatos. Em seu estúdio, Ressia é capaz de construir uma realidade particular a partir de materiais, cenografia, vestuário e moldada pelo que elege revelar.  Esse é o poder que a fotografia lhe confere. Justamente porque “se comparada à pintura e à escultura, a fotografia é um meio novo e menos explorado que essas duas linguagens. O que me interessa na fotografia é poder explorar todas suas possibilidades”, declara.

Explorar todas as possibilidades que a fotografia lhe permite é também buscar o não convencional e fazer com que essa técnica dialogue, por exemplo, tanto com a estética da pintura clássica como com a sobreposição de imagens fotográficas sobre um fundo de pintura a óleo. “Tenho a tendência a não aceitar as coisas como são e sempre procuro modificá-las. Inclusive, busco uma forma para que saiam do normal.”. Não é de se espantar que a Vênus de Ressia tenha um nome “nosso” (Eliana) e seja uma mulher “real”, que rompe com o padrão mercadológico de beleza.   Quando questionada sobre o que pretende provocar nas pessoas com suas criações, declara taxativa: “Não busco provocar nada em particular nas pessoas que observam minhas fotografias. Quando crio, estou tratando de expressar o que tenho, o que sinto ou alguma curiosidade que tenho. Uma vez que a obra está concluída e exibida, se torna um indivíduo à parte e, nesse momento, cada pessoa passa a criar seu vínculo particular com ela.” ///

Romina Ressia (Olavarría – Argentina, 1981) é formada em Ciências Econômicas, mas se dedica integralmente às artes, especialmente à fotografia, desde a conclusão de sua graduação. Realizou exposições individuais na Alemanha, Argentina, Espanha, EUA, França, Inglaterra, Itália e México.

Renata Martins (1980) é educadora, crítica de arte e curadora independente natural de São Paulo e residente em Bonn, Alemanha. É mestre em Literatura Alemã pela USP e especialista em Curadoria de Arte pela Universidade das Artes de Berlin. Foi residente do programa Vila Sul do Instituto Goethe de Salvador (2020-2022), onde concebeu e organizou o Catálogo Arte Mais – Panorama de Artistas Transvestigeneres nos Brasil @catalogoartemais.