Entrevistas

Mari Katayama: o corpo fotográfico

Mari Katayama, Daniel Salum & Lucas Gibson Publicado em: 1 de novembro de 2023

Mari Katayama, bystander #14, autorretrato, 2016. Cortesia da artista.

Mari Katayama ( 片山真理, 1987-) é uma artista japonesa multidisciplinar que usa largamente o autorretrato como forma de expressão. Utilizando linguagens como a fotografia, a escultura e a costura, ela confecciona objetos autorais e os une em composições fotográficas complexas, inserindo-se nas cenas e posteriormente produzindo instalações. Nascida com hemimelia tibial e apenas dois dedos na mão esquerda, teve as duas pernas amputadas aos nove anos de idade e passou a utilizar próteses que a acompanham durante toda a vida. Sua obra propõe reflexões entre as idealizações e a realidade material, tensionando sentimentos ambivalentes entre verdade e ficção na fotografia. Coloca seu próprio corpo como elemento central de suas produções.

A entrevista a seguir foi realizada em dois momentos distintos no outono de 2022. Pegamos um trem de Tóquio até a prefeitura de Gunma, onde reside a artista, para entrevistá-la. Na época, estávamos no Japão como bolsistas de pesquisa em arte japonesa pela Fundação Japão e a Fundação Ishibashi; ambos brasileiros e contemplados com a bolsa em anos diferentes (Lucas em 2022 e Daniel em 2020). Uma série de coincidências, impedimentos e desencontros pandêmicos nos trouxeram ao Japão no mesmo período para a realização de nossas pesquisas relacionadas à fotografia e fotolivros japoneses.

Ao tomar o trem que saía da região metropolitana da capital para o Japão rural, adentrando lentamente em um território conhecido por suas fontes termais, fomos arrebatados por uma sensação semelhante à evocada na primeira frase do romance O País das Neves (publicado pela primeira vez em 1937) de Yasunari Kawabata (1899-1972): de repente estávamos em outro país, percorrendo um trajeto preenchido de casas bucólicas e plantações, sem a presença marcante das lojas de conveniência, dos letreiros brilhantes e do ritmo frenético típicos de Tóquio.

Recebidos por Mari em seu ateliê, em um clima descontraído e rodeado por diversos indícios de suas produções, conversamos sobre sua obra, sua inserção na cena artística japonesa, seus pensamentos em torno da fotografia como linguagem, suas publicações, seu processo criativo, seus devaneios e desejos para o futuro.

Essa entrevista marca o início de nossos esforços conjuntos em potencializar a série de conversas realizadas no Japão, individualmente, nos meses finais de 2022. Esta conversa busca contribuir nesse sentido, auxiliando na expansão desse campo e tornando esse conhecimento em português mais acessível para leitores interessados.

Páginas do fotolivro Gift de Mari Katayama. Foto por Lucas Gibson. Mari Katayama, White legs #001, 2009. Esses são alguns dos primeiros autorretratos de Mari, realizados com a ajuda de sua irmã (com apenas 4 anos na época) e postados na plataforma Myspace.

Daniel Salum e Lucas Gibson: Vamos começar do começo. Você é uma artista multidisciplinar que utiliza diversas linguagens artísticas em suas obras. Quando você decidiu que seria artista? Como a fotografia apareceu nesse processo e o que ela representa para você?

Mari Katayama: Inicialmente eu não tinha a intenção de me tornar uma artista. Comecei primeiro com a linha e a agulha, construía objetos experimentais que, em um primeiro momento, não tinham uma forma ou função específicas, mas eu era movida por um grande desejo de fazê-los. Há muitos tipos desses objetos que construo, como instalações que faço dentro de pequenos jarros com diversos tipos de materiais orgânicos e artificiais, usando por exemplo restos de comida. Eu também realizo interferências em objetos funcionais, como as pinturas que faço nas próteses que me acompanharam ao longo da vida. Quando era adolescente, redes sociais como o Myspace começaram a surgir; eu estava estudando programação na época e usava HTML para personalizar minha página. A fotografia é, para mim, apenas mais um jeito de se expressar, uma mídia. No início do meu trabalho, criei e desenvolvi objetos e as fotografias eram mero suporte de registro. Meu primeiro portfólio tinha a intenção de mostrar esses objetos e usei da fotografia e do meu próprio corpo, como um manequim, para isso. Não via, naquele momento, minhas fotos como um trabalho de autorretrato, mas apenas uma ferramenta para explicar esses objetos inventados. Comecei a fotografar os objetos com uma câmera digital simples e colocava as fotos no Myspace, mas as pessoas não entendiam o que eram esses objetos. Por isso, comecei a adotar algumas estratégias, como fotografá-los próximos à minha mão, para que pudessem ter uma noção do tamanho, por exemplo.

LG: Curioso você já mencionar esses objetos, porque esse é um assunto que eu já estava planejando abordar na conversa. No seu fotolivro Gift (2019) é possível encontrar registros de alguns deles. Eles são muito interessantes e misteriosos, dá para ver que você mistura diversos materiais para produzi-los. Você pode detalhar mais o processo criativo por trás deles?

MK: Conforme fui fazendo mais desses objetos, senti uma necessidade de me incluir nos registros que fazia deles, criando assim meus autorretratos fotográficos. Se você olha apenas para eles de forma solta, não consegue muito bem dizer o que é. Mas se pego um deles e coloco na cabeça, por exemplo, e me fotografo, as pessoas podem visualizá-lo de uma forma mais interessante. Outra curiosidade é que eu nunca vendi nenhum desses objetos.

Mari Katayama. Oil work, 2011. Instalação em pequeno jarro de vidro composta de óleo de cozinha, areia, contas de plástico, unhas falsas, hijiki (alga marrom) e frutas secas.

LG: É uma escolha pessoal não vendê-los? Eu imagino que você já tenha recebido boas propostas por eles.

MK: Sim, é uma escolha pessoal. Mas a vida de artista é difícil e nós precisamos ganhar dinheiro de alguma forma. Então a solução que achei foi vender fotos deles, em vez dos próprios objetos.

LG: Talvez um dia você possa abrir o “Museu Mari Katayama” com eles, eu visitaria com certeza [risos].

MK: Considero que foi a partir daí que me tornei uma artista, quando tomei essa decisão de vender produções minhas.

DS: Vejo que você tem uma borboleta desenhada em uma das próteses. Você se vê em constante processo de metamorfose?

MK: Quando fiquei três meses em Dusseldorf, na Alemanha, ganhei esse apelido, pois não encostava minhas pernas no chão, como as borboletas, que se locomovem apenas voando. Fui para lá muito jovem, com 18 anos, e nessa época não pensava em ser fotógrafa. Fui estudar História da Arte e achava que me tornaria professora.

Enquanto conversávamos, Mari mostrou alguns desses objetos. Ela colocou espontaneamente uma delas em sua cabeça com a intenção de demonstrar que havia tentado fazer algo funcional no início de suas produções. Foto: Lucas Gibson.

DS e LG: Podemos dizer então que a fotografia apareceu primeiramente na sua obra como uma necessidade de criar um arquivo desses objetos? Você considera a fotografia apenas uma das suas ferramentas de expressão?

MK: Sim, ela aparece inicialmente dessa forma, mas entre 2014 e 2015, com meu projeto you’re mine, passo a me inserir com mais frequência nas imagens junto com as esculturas e objetos. Foi a partir desse trabalho que passei a considerar minha fotografia como a obra em si e comecei a produzir mais trabalhos fotográficos. Existem vários meios de expressão que me identifico, mas no momento me vejo realizada no meio fotográfico. Eu era minha única modelo, meu próprio “manequim”, então foi a forma mais fácil de começar a produzir integrando meu corpo com os objetos que confeccionava. Depois, essas próprias fotografias geradas com meu corpo são impressas e passam a integrar instalações maiores, fazendo parte de um outro todo com os próprios objetos.

DS: Esse trabalho que surge a partir dos objetos e usa a fotografia como meio também tem um caráter performático. Você se considera uma performer?

MK: Acho que sim, pois há sempre uma figura humana nas imagens, uma personagem que crio de mim mesma. Sinto que existe constantemente uma história dentro da fotografia, embora seja diferente de uma performance que acontece em um palco. Os objetos não envelhecem, mas as pessoas sim e isso muda por completo a narrativa da imagem.

LG: A série you’re mine marca esse segundo momento de integração da fotografia com a sua prática artística. Podemos dizer que há um terceiro momento?

MK: Sim, que é marcado pelo nascimento da minha filha em 2017. Nesse momento, a única coisa que pensava era como eu deveria evitar utilizar linha e agulha pois tinha medo de feri-la acidentalmente. Além disso, produzir esses objetos leva muito tempo, e eu não tinha esse tempo disponível. Mas acredito que meu receio principal era que ela acabasse engolindo alguma agulha sem querer. Acho que esse medo também veio do fato de que eu também não tinha muito espaço para produzir, eu costurava dentro do meu quarto, não tinha ainda esse ateliê, que abri apenas em 2019. Sem poder costurar, o que me sobrou foi apenas a câmera [risos], que bem ou mal também é uma linguagem mais rápida.

DS: Seu corpo é sua principal matéria para os seus trabalhos. Como foi seu processo de criação ao longo de sua gravidez, quando o corpo passa por transformações tão marcantes?

MK: A partir do nascimento da minha filha, comecei a pensar como ela vê meu corpo. Desde a gravidez tento manter uma certa separação entre o meu corpo e meu trabalho e o da minha filha. Me perguntava: “como posso/consigo registrar esses momentos para o futuro?”. Passei a ter um outro tipo de relação com a fotografia.

DS e LG: Na sua opinião, quais são os desafios de conciliar maternidade e carreira artística na sociedade japonesa?

MK: No começo foi muito difícil, principalmente porque fui mãe solteira, no início era só eu e minha filha. Meus problemas de mobilidade também tornaram as coisas mais complexas. Embora eu conseguisse viver, ainda que com dificuldades, da minha arte, tive que informar algumas autoridades locais sobre os apertos que estava passando para sustentar minha filha sozinha. Apliquei para um auxílio assistencial que pudesse me ajudar a criá-la, mas não me foi concedido. Aqui no Japão, ainda que haja muito apoio financeiro do governo, inclusive para minhas próteses, ao mesmo tempo há muita coisa que não muda e um conservadorismo vigente muito forte. Quase tive um colapso nervoso nesse processo. Agora que me casei somos três, então as coisas melhoraram e fez uma enorme diferença para mim. Muita gente me aconselha a ir para fora do país, mas sinto uma certa impossibilidade devido a minha condição física.

DS: O que sua filha acha do seu trabalho?

MK: Ela é a primeira a ver, é a crítica, dando conselhos nas minhas composições [risos].

LG: Antes de abrir o ateliê em 2019, como era seu processo de confecção das fotos?

MK: Eu fazia tudo na minha casa em um espaço mais limitado, em algumas fotos você consegue ver até o ar-condicionado [risos]. Eu dormia, costurava e fotografava no mesmo espaço.

DS: A fotografia é sempre um marcador de tempo. Dentro do processo desse fazer, como você vê a passagem do tempo e transformação das coisas e de você mesma?

MK: Sinto que existe um mesmo eixo nos meus trabalhos, como um todo. Uma mesma narrativa que se desenvolve ao longo do tempo. A música, por exemplo, é uma expressão de tempo também, tem um fluxo. Vejo um fluxo semelhante nas minhas imagens.

Mari Katayama, you’re mine #002, autorretrato, 2014. Cortesia da artista.

LG: Em um dos textos do seu fotolivro Gift, o curador Simon Baker faz uma analogia do seu trabalho com a brincadeira “cama de gato”, destacando como sua obra consegue mesclar diferentes linguagens artísticas ao mesmo tempo que as mantém conectadas de forma muito coerente. Há muitas camadas dialogando em algumas de suas imagens, mas ainda assim tudo se conecta com harmonia. Você pode falar mais das suas preferências pelo autorretrato e como organiza seus enquadramentos com os objetos?

MK: Apesar de concordar com o Simon sobre essa ideia da conexão, gosto de pensar que meus objetos selecionados para o enquadramento atuam também de forma independente. Claro que o objeto final é uma fotografia e nesta fotografia está contida essa união de obras, que funcionam de forma harmônica. No fim, os objetos perecerão e os corpos também, mas acredito que a presença de uma pessoa nas imagens facilita a perpetuidade da história.

DS: Suas imagens possuem um certo rebuscamento, muitos elementos e informações. Você sente que existe alguma influência barroca no seu trabalho?

MK: Acho que sim, desde criança vejo muitos trabalhos de pintura. Isso se reflete não só nas imagens que crio, mas também nas molduras que utilizo, sempre há muita informação. Eu me inspiro muito na pintura moderna para pensar a construção das minhas cenas.

LG: Você pode mencionar alguns desses pintores que te inspiram?

MK: Na pintura japonesa, gosto muito de Kaoru Yamaguchi (1907-1968) e Yasuo Kazuki (1911-1974). De nomes europeus, gosto especialmente de Edvard Munch (1863-1944) e Gustav Klimt (1862-1918).

DS e LG: São pintores que trabalham de fato com uma quantidade considerável de informações e símbolos expressivos em suas composições, mas que trazem uma coerência marcante e bastante singular nas obras, como vemos no seu trabalho. Por mais que sejam fotografias, usando um plano bidimensional, há uma tridimensionalidade nas suas imagens, uma presença do objeto.

MK: Sem dúvida, eu também me inspiro muito no tipo de luz que preenche essas obras. A influência da pintura está sempre presente.

DS: O que é o belo para você? Você acha que isso é importante na arte?

MK: Essa pergunta é difícil [risos]. Para mim a beleza está muito relacionada com os sentimentos comuns/simples das pessoas, uma aura [1] presente nesses momentos. Na arte há dois polos que caminham juntos, a beleza e a não beleza. Pessoalmente prefiro criar pensando na relação com o belo. A beleza em si possui uma aura, a meu ver, e sempre tento entender se sinto essa beleza nessa aura ou no objeto, nas coisas em si.

Registro de instalação na exposição individual you’re mine de Mari Katayama. Foto por Takeo Yamada. TRAUMARIS, 17 de dezembro de 2014 a 15 de fevereiro de 2015, Japão.

DS: Em algumas molduras você se utiliza de conchas e várias imagens suas são realizadas perto do mar. De onde vem essa proximidade?

MK: Como você pode ver, aqui em Gunma não tem mar perto [risos]. Tem um verso do Jean Cocteau que me marcou muito, que diz: “minhas orelhas são pedaços de conchas”, e ele demonstra sentir falta do mar. Vejo uma semelhança e um tipo de conexão entre nosso corpo e sua forma e essa simetria das conchas e sua proporção áurea, isso sempre me encantou, desde criança. Há uma beleza no formato das conchas, as vejo como possíveis pentagramas, e procuro buscar essa conexão entre o ser humano e esses objetos.

LG: E na fotografia, quais são suas referências?

MK: Ninguém! [risos]

LG: Continuando nossas reflexões sobre processo criativo, quando falamos de fotografia, palavras como “realidade”, “verdade”, “mentiras”, “ficções” são expressões comuns, e com frequência nos perguntamos sobre a natureza e o estatuto que as imagens fotográficas ocupam. Falando de seus projetos, você acredita que suas fotos representam sua vida de um jeito ou de outro? Você acha que a fotografia pode ser uma forma de reinventar a vida?

MK: Particularmente eu penso que tudo na fotografia é uma mentira, especialmente as que colocamos nas redes sociais. Porém, o que acontece de frente para a câmera é real, ainda que a imagem resultante disso não seja. A fotografia é apenas uma possibilidade de representação do real. Minha vida diária influencia muito meu trabalho e minhas obras, mas não penso que meus projetos representam minha vida.

DS: Somos então todos mentirosos [risos]?

MK: Falar que a fotografia é a realidade será sempre uma mentira [risos]. Sinto que me aproximo mais das realidades a partir do filme analógico, cheguei nessa conclusão com o tempo.

DS: O que você vê de diferente entre as possibilidades do filme e a fotografia digital?

MK: O filme para mim consegue comprimir o que tem na atmosfera, no ar, a umidade, em um único momento. Além dessa atmosfera que o filme traz, me interessa uma certa falta de controle que ele proporciona e seu tempo de espera da imagem. O digital é um código formado por zeros e uns. Estudei na universidade mídia e tecnologia… eu não acredito na tecnologia [risos]. Tenho esperança que essas sensações vividas são momentos que passam e podem perdurar para sempre em uma imagem. Sinto que a maneira que “enfrento” a fotografia, minha relação com as imagens que construo, onde a figura desse personagem-manequim existe, e a minha própria pessoa tem mudado aos poucos, ao longo do tempo.

Mari Katayama, I have child’s feet, autorretrato, 2011. Cortesia da artista.

DS: Você é sempre protagonista do próprio trabalho. Onde termina a Mari da “vida real” e começa a Mari dos projetos?

MK: Eu sinto como se fosse outra pessoa, não sou eu ali nas imagens. Às vezes estou em um evento e as pessoas não associam a minha imagem com a minha pessoa. Me sinto como um boneco, um objeto material, de certa forma. Desde que iniciei meus projetos me sinto assim.

DS: Como você vê os limites entre o que é natural e o que você considera artificial? Do mundo natural e desse mundo inventado por você.

MK: Acho que é meio uma mistura das duas coisas. Na hora da criação e no desenvolvimento das ideias, acabo escrevendo primeiro, ou desenhando. Quando saio com a câmera, aí opero de uma maneira mais intuitiva.

LG: Gostaria de falar um pouco sobre os fotolivros na sua produção, especialmente o livro Gift, publicado em 2019 pela United Vagabonds. O livro é uma espécie de retrospectiva do seu trabalho desde 2005, reunindo imagens que atestam suas mudanças e desenvolvimentos como artista. Como foi o processo de edição, de escolha de imagens, sequenciamento e construção do livro?

MK: Quando publiquei Gift em 2019, a editora inicialmente não queria que fosse um “fotolivro”. Na verdade buscava mais fazer um “livro de artista”, com algumas experimentações no formato. Mas eu queria muito ganhar o prêmio Kimura Ihei, e só consegui porque de fato acabamos fazendo um fotolivro. A editora sugeriu chamar outro fotógrafo para fazer fotos dos objetos que confecciono, mas fui contrária a essa ideia porque queria que todas as fotos do livro fossem minhas. Então eu mesma acabei produzindo outras imagens dos meus objetos, além de ter escolhido todas as imagens e decidido o sequenciamento. Outro ponto que presto atenção e valorizo muito é a qualidade da impressão. No fim isso foi importante para mim, pois queria que o livro tivesse essa ordem que conta a história dos meus primeiros trabalhos até os dias de hoje, mostrando como as próteses e os outros artefatos participaram da minha vida em momentos específicos. As únicas imagens que não escolhi a ordem são os autorretratos em preto e branco.

DS: Como você vê as diferentes possibilidades do seu trabalho quando apresentado em um livro e em um espaço expositivo?

MK: A fotografia, para mim, é algo bastante físico, porque ela vem da minha experiência real transmitida pelo meu olhar e meu corpo. E ela sempre consiste na relação entre meu corpo e uma máquina, a câmera. Quando participei do Paris Photo em 2019, eu estava de cadeira de rodas e minha experiência em ver os trabalhos expostos ali foi um tanto limitada. No último dia, resolvi colocar minhas próteses e isso mudou completamente minha perspectiva e minha experiência de visualizar os trabalhos expostos. Hoje vejo a fotografia com uma força física/corporal enorme. A experiência com o livro é outra, a fisicalidade muda por completo. Escolhi inicialmente a fotografia para registrar e descrever os objetos que criava, então essa noção da fisicalidade da matéria é muito importante para mim. Tento achar um equilíbrio entre detalhes e imagens mais gerais, de plano aberto.

LG: Você mencionou que fotografar é um ato bastante físico para você. Uma vez uma escritora brasileira chamada Clarice Lispector escreveu a seguinte frase: “não sou um intelectual, escrevo com o corpo”. Quando reli essa afirmação depois de muitos anos, na hora associei a seu trabalho e seu processo artístico, foi a faísca que eu necessitava para escrever o artigo sobre seu trabalho [2]. Como você conecta mente e corpo quando produz suas obras?

MK: Sinto que meus trabalhos são a materialização de muitos pensamentos e questionamentos que vou acumulando mentalmente. Eu conecto as coisas que experiencio, que vejo, e que sinto quando pego a câmera. Fotografar e produzir os objetos são de fato atos muito físicos para mim porque preciso organizar um conjunto de ações para chegar aos resultados, como por exemplo ativar o disparador da câmera com um controle remoto. Meu corpo é minha principal matéria-prima, não apenas porque estou presencialmente em boa parte das fotos, mas porque necessito dele para confeccionar os objetos que compõem a cena.

LG: Podemos dizer então que seu trabalho tem uma espécie de autoria expandida que vai além da autoria fotográfica? Afinal, é você quem faz a maior parte dos objetos que compõem o cenário das imagens.

MK: Sim, acredito que é possível dizer isso.

DS: Você então trabalha de uma maneira mais intuitiva?

MK: Minha pessoa e meu corpo são um só, para viver e para criar. Estou constantemente vivendo e pensando meus trabalhos, o dia a dia e o cotidiano me influenciam o tempo todo nas minhas criações.

DS: Você acredita que a arte tem que ter um propósito?

MK: Sinto que a obra que acaba decidindo isso, o artista é controlado pela obra, e não o contrário. O artista não define esse propósito. Não me interessa quando há muito controle do artista no processo de criação.

DS: Se é a obra que dita seu propósito, você acredita que a partir do momento que você realiza um trabalho e ele está no mundo, você perde o controle sobre isso?

MK: O artista definitivamente não define a obra, o público é que vai decidir. O galerista e o curador também têm papel importante nesse aspecto.

LG: Atualmente você está trabalhando em algum livro novo?

MK: Eu quero muito publicar um livro de maneira independente agora. Há algumas imagens da série Bystander que não foram publicadas no Gift, então penso em incluir mais delas em um eventual próximo livro. Também quero incluir fotos de trabalhos mais recentes que ainda não foram publicadas.

DS: Quando você sabe que um projeto está terminado?

MK: Eu vejo como se fosse um quebra-cabeças, as peças vão se encaixando e fazendo cada vez mais sentido. Parte dessa compreensão se dá não só no fazer, mas também em pesquisa e leituras. Eu sinto que por conta da pandemia a dinâmica de trabalho mudou muito, praticamente parou, mas agora as coisas estão voltando e estou mais feliz, sentindo essa energia retornar.

DS: Como você vê a fotografia japonesa nesse momento?

MK: Às vezes sou convidada para ser jurada de concursos de fotografia. Vejo uma facilidade e qualidade técnica nos trabalhos, acho que não só no Japão, mas sinto que há uma falta de conceituação e propriedade sobre o próprio trabalho.

DS: Você vê diferenças na recepção do seu trabalho no ocidente e aqui no Japão?

MK: Sinto sim. No Japão, vejo meu trabalho ser tratado de uma forma mais superficial, dentro de alguns estereótipos como a deficiência, o fato de ser mulher, mãe, “jovem que batalha” e não nos conceitos e ideias do trabalho em si, acho que há muito preconceito. Aqui, às vezes, sinto que acabo sendo vista dentro de uma categoria e não como artista. No ocidente, sinto que existe um olhar mais voltado para meu trabalho em si.

DS: A arte pode mudar o mundo?

MK: A arte torna a vida mais leve, é uma linguagem que nos ajuda. Minha língua materna é o japonês, depois aprendi programação e depois, por conta da internet, inglês. Vejo minha filha neste momento, com cinco anos, uma idade de formação, na qual se vivem sentimentos às vezes extremos, de raivas e alegrias… acho que a arte pode ajudar muito, é uma maneira de expressar e traduzir as muitas maneiras de ver o mundo.

DS: O que ficou da Mari Katayama do início da carreira e o que mudou?

MK: Criar é um treino cotidiano. Achar um modo próprio de expressão não é algo fácil, é uma busca constante, por isso acho que experimento muito, constantemente. Não só com a fotografia, mas na costura também.

LG: Recentemente tivemos uma grande retrospectiva sobre o trabalho de Daido Moriyama (1938-) no Instituto Moreira Salles de São Paulo. Penso que foi uma grande oportunidade para que o público brasileiro conhecesse mais da fotografia japonesa e suas diversas manifestações. Com essa entrevista e outras produções, também estamos trabalhando para divulgar e desenvolver mais este campo de conhecimento no Brasil. Seria igualmente maravilhoso se conseguíssemos expor seu trabalho em algum festival ou instituição brasileira. Como você acha que podemos expandir esse intercâmbio entre artistas japoneses e brasileiros, possibilitando mais trocas e difusões fotográficas?

MK: Eu adoraria expor um dia no Brasil. Eu cresci na cidade de Ota, em Gunma, e próximo a ela há a cidade de Oizumi, onde vive um grande número de brasileiros. Eu cresci rodeada por eles, e acabei ficando muito próxima de artistas brasileiros que viviam em Oizumi. Apesar de nunca ter visitado o Brasil, me sinto muito próxima ao país e à cultura.

LG: Não tenho dúvidas de que no futuro teremos Mari Katayama no Brasil, penso ser apenas uma questão de tempo.

MK: Assim espero! ///


Daniel Salum (1978) é professor, pesquisador e curador independente. Há mais de dez anos, vem se dedicando ao estudo e pesquisa sobre fotografia japonesa, com ênfase no período iniciado no pós-guerra até os dias atuais. No ano de 2020, foi contemplado com a bolsa de pesquisa da Japan Foundation/Ishibashi Foundation para aprofundar sua pesquisa em Tóquio. Realiza periodicamente cursos e palestras sobre o tema.

Lucas Gibson (1992) é fotógrafo, professor e pesquisador. Mestre em Artes Visuais pela EBA-UFRJ e pesquisador do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) da USP/Unifesp. Foi bolsista da Fundação Japão/Fundação Ishibashi em arte japonesa em 2022, realizando pesquisa sobre fotolivros japoneses em Tóquio.


[1] “Aura” se refere ao termo usado por Walter Benjamin em seu trabalho “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936).

[2] Fotografando com o corpo: processo, imaginação e materialidade na obra de Mari Katayama: https://portaljaponi.wordpress.com/2022/02/26/fotografando-com-o-corpo-processo-imaginacao-e-materialidade-na-obra-de-mari-katayama/

 

 

 

 

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