Entrevista: Laia Abril fala sobre Do Estupro, novo capítulo da sua série Uma história da misoginia
Publicado em: 7 de março de 2020Desde a sua primeira exibição no festival de Arles em 2016, On Abortion (Do Aborto), primeiro capítulo da série A History of Misogyny (Uma história da misoginia), da espanhola Laia Abril, já percorreu mais de dez países. Agora a artista dá prosseguimento à sua pesquisa sobre o controle sistêmico dos corpos das mulheres ao longo da história em diversas culturas com a abertura da exposição On Rape (Do Estupro), segundo capítulo da série. Laia conta para a ZUM como constrói suas narrativas, destaca o papel do texto no seu trabalho e pontua as mudanças pelas quais o projeto vem passando a partir de evoluções pessoais e da sociedade.
Você acabou de inaugurar a exposição On Rape, segundo capítulo da série A History of Misogyny, na Galerie Les Filles du Calvaire, em Paris. Como você construiu essa narrativa?
Laia Abril: Da mesma maneira que em On Abortion inconscientemente foi relevante para mim o momento em que o governo espanhol quis fazer uma lei mais restritiva, dessa vez foi também através de um acontecimento local que surgiu On Rape. Como em On Abortion, em que falo das restrições de não ter acesso ao aborto e não realmente sobre o aborto, On Rape não fala sobre estupro, mas sobre as injustiças institucionais. O caso que provocou essa indignação da minha parte, e da parte da sociedade espanhola, foi quando a primeira sentença apenas acusou de abuso cinco homens que violaram uma jovem mulher e gravaram tudo [trata-se do caso La Manada]. Foi um momento de insegurança institucional, de sentir que os poderes judiciais e a sociedade estavam falhando com essa vítima, que poderia ser eu, poderia ser você e poderia ser em qualquer lugar do mundo, porque essa problemática é global. As instituições não estão só falhando com as vítimas, mas também abrindo a porta e normalizando a violência sexual para que aconteça de forma pandêmica e sistêmica no mundo todo. Foi dessa maneira que decidi começar On Rape e também como decidi focar na investigação.
Inicialmente o projeto tinha um foco mais centrado na cultura do estupro e todos os mitos em torno da violação e, nesse caso, a diferença com o primeiro capítulo foi que, ao invés de comparar o passado com o presente, uso ferramentas da história para entender a origem dos mitos. Por que um juiz determina que se a mulher não aparentava sinais de resistência então não era uma violação? Isso, por exemplo, tem origem em crenças de séculos atrás. Por que a lei Marry Your Rapist (Case com seu estuprador) ainda é usada em vários países e com ameaças de retornar na Turquia? A quem se destina essa lei, de onde sucede? Se olhamos pra trás, vemos que é uma lei bíblica. Para mim é importante entender de onde surgiram esses mitos absurdos e leis incapacitadas. A história é o que me ajuda a compreender tudo isso. Cada capítulo, assim como em On Abortion, é criado a partir de séries. A primeira é o que chamo de “Retratos Institucionais”, porque os vestidos não representam as vítimas, mas representam a instituição que permitiu que essa violação acontecesse. Os testemunhos [que acompanham cada retrato] não são sobre a violação, são sobre a luta que cada uma teve que enfrentar depois do estupro. Na escola, por exemplo, a mãe quer que haja um julgamento para esse professor. Ou quando a mulher trans está em uma prisão masculina, ela quer que lhe ofereçam uma situação mais segura. Ou nos países onde o estupro não é criminalizado e as mulheres são obrigadas a casar com quem as violou e, quando casadas, não podem fazer nada, nem mesmo se divorciar. São essas instituições que impõem complicações e barreiras às mulheres que sofreram agressão e estão buscando alguma paz.
Assim como em On Abortion, em On Rape você fez uma pesquisa profunda e extensa. De que maneira você trabalhou nessa pesquisa e na abordagem com as vítimas que dividiram as suas histórias com você?
LA: A investigação para mim é a parte fundamental de cada projeto. É onde entendo qual é o meu papel, o que estou buscando, o que quero contar e também encontro a maneira de visualizá-lo. Neste caso, eu acho que dei um passo adiante e esse capítulo tem um apelo mais visual. Isso porque é pessoal, é uma coleção de reações que eu tive diante dessas informações. Com os testemunhos, durante esses dois anos, eu estava especificamente buscando essas historias nesses lugares que estavam conectados a uma lei, ou a uma situação da sociedade, ou a uma estatística particular. E era muito importante para mim que esses retratos fossem em tamanho real e que te obrigassem a olhar, a encarar essas instituições que estavam falhando com todos. Tem uma série histórica; uma sobre a construção da virgindade; uma sobre punição; uma sobre a cultura do estupro… e em cada caso eu reagi de uma forma e criei imagens que, junto com os textos, nos ajudam a ver diferentes camadas de informação, diferentes elementos que traduzem minhas reações diante dessas informações que eu estava consumindo pela primeira vez.
Imagino que você ficou diante de fatos pavorosos para chegar até esta edição final. Você se colocou algum limite durante a pesquisa? Como delimitar o que será finalmente compartilhado com o público?
LA: Foi um processo um pouco diferente do anterior. Mas é verdade, eu tive que me expor a coisas muito duras constantemente. Por exemplo: para mim o mais doloroso eram sempre as estatísticas. Cada vez que lia me custava muito ainda ter fé na humanidade, porque é um problema tão sistêmico e tão massivo que era difícil ver uma luz no fim do túnel. Em On Abortion as repercussões de não ter acesso ao aborto eram muito possíveis de solução, existe uma possibilidade real. Neste caso, não me interessei no porquê aconteceram os estupros, mas sim em questões mais factíveis de solucionar: como ter um julgamento justo, como ter um suporte por parte da sociedade, um suporte psicológico, médico. Ou, da parte dos meios de comunicação, não vitimizar ainda mais a vítima. Para mim, foi importante me concentrar nos aspectos que têm alguma possibilidade de mudança.
Os textos fazem parte da sua obra, sendo às vezes peças autônomas com destaque e relevância tanto quanto as fotografias. Como decidir o que vai ser apresentado enquanto imagem?
LA: O texto para mim é a base de tudo. Chamem de texto, informação, conteúdo, histórias… a partir do texto eu reajo: escrevendo e visualmente. Às vezes reajo também com peças de áudio e vídeo. Ou, como aconteceu dessa vez, e como você comentou, o texto é a própria obra. Assim, são as citações que estão dispostas por cima da exposição fazendo referência às figuras autoritárias que ainda estão submergidas na cultura do estupro e mostram como esses mitos estão mais vivos do que nunca. Podem ser a citação do Bolsonaro ou a do Trump, representando vozes do poder máximo, como constatações da minha pesquisa, de que ainda vivemos em culturas que naturalizam e inclusive promovem a violação sexual.
De que forma On Rape, que foi apresentado primeiramente no formato exposição, vai se tornar um livro?
LA: A verdade é que a experiência de fazer primeiro a exposição e depois o livro On Abortion, com mais de um ano de diferença entre os dois, foi positiva porque me deu tempo de digerir e entender o que eu havia criado e ver que tipo de conteúdo extra necessitava pesquisar para fazer a publicação. Desta vez vou fazer da mesma maneira e estou começando a pensar no livro agora. Iniciei um brainstorming de que tipo de personagens, textos e profissionais poderiam me ajudar a dar sentido, assim como fiz da vez anterior. Tem um lado meu que gostaria de fazer o livro bastante diferente da exposição, porque em On Abortion os dois são muito similares. Mas obviamente isso implica em muito mais trabalho, dentro de uma temática que já estarei trabalhando por provavelmente três anos quando tiver acabado o livro e que é realmente dura de estar presente todos os dias. É diferente quando exponho ou falo sobre elas, ainda que as entrevistas me drenem emocionalmente e as palestras também. Mas como falava, ver o espaço e a exposição me ajuda muito. É uma espécie de alquimia entre a reação visual, como comentei antes, que eu tive com as informações e o que finalmente chega ao espectador. Se produz uma mudança de forma que eventualmente também muda a mim. Por isso a experiência expositiva é tão importante nesse projeto.
Você acabou de inaugurar On Abortion no Museu do Sexo em Nova York, sendo apresentada pela primeira vez nos Estados Unidos durante um ano eleitoral. O que isso significa? Qual tem sido a repercussão de On Abortion quatro anos após o seu lançamento em Arles?
LA: Foram muitos anos para conseguir levar On Abortion aos Estados Unidos e também fico muito feliz de ter levado ao México, onde o aborto é ilegal, com exceção da Cidade do México e de Oaxaca. É simbólico que seja durante o ano das eleições. E que Trump possivelmente seja presidente de novo. Isso é curioso, porque quando eu estava fazendo o projeto de On Abortion justamente durante a pré-campanha de Trump. Quando ele foi eleito presidente estávamos montando a exposição em Arles. É muito simbólico e também é relevante que seja em Nova York, mas que viaje a outros lugares nos Estados Unidos, onde os direitos das mulheres já eram atacados e, desde que Trump chegou ao poder, estão sofrendo mais ainda. Eventualmente gostaria de levá-la à América do Sul, onde nunca expus e, como bem sabemos, o tema é muito relevante para os dois projetos.
Na exposição On Rape você não só dá voz às vítimas, mas também aos agressores e às instituições de poder que, ao invés de coibir, figuram como co-responsáveis pela manutenção da cultura do estupro. De que forma você se posiciona entre a arte, o ativismo e o jornalismo?
LA: Com o meu passado em jornalismo e minha prática artística, juntamente com meus temas políticos e sociais, essas diferentes facetas sempre vão se misturar. Eu prefiro o rótulo de arte política ao de ativista, porque eu respeito muito o trabalho dos ativistas e não acredito que é o que eu faço, mas sim que é político. Tudo é muito orgânico. Eu comecei On Abortion em 2015, agora estamos em 2020 e não só eu mudei, mas a sociedade também está mudando muito. É muito provável que isso se desenrole de outra forma se voltar a me fazer essa pergunta em dois anos.
Na sua passagem pelo Brasil em 2016 você falou com a ZUM sobre On Abortion, antes mesmo do livro ter sido lançado. O que mudou de lá para cá e qual foi a influência do movimento global #metoo na construção de On Rape?
LA: Suponho que muitas coisas mudaram. Mudou minha visão e minha política sobre a maneira de falar sobre as temáticas. O #metoo na Espanha foi o caso La Manada e a nível global o #metoo mudou a forma como eu me sinto, me deixando mais livre para falar de alguns assuntos. No entanto, às vezes é uma faca de dois gumes, porque as pessoas acreditam que isso resolveu os problemas, quando em algumas situações eles foram até agravados pelo efeito rebote. Em 2016, era pré #metoo, você se lembra daquela cena que as mulheres se levantavam no teatro? Isso era algo impensável [No Festival Valongo 2016, após a palestra de Laia Abril, da plateia, a artista Aleta Valente pediu às mulheres que já tinham realizado aborto que levantassem as mãos]. Hoje em dia isso mudou. Ainda seria muito forte, mas tem um antes e um depois do #metoo e o projeto atravessou esse antes e depois com a minha evolução como artista, dos países com relação à lei do aborto e da sociedade quanto ao movimento. Meu conhecimento sobre a temática é obviamente mais amplo e ainda pude estar em diferentes países. A criação é um constante processo de aprendizagem, mas tenho, por exemplo, muito mais claras as minhas visões filosóficas e políticas do que quando estava trabalhando no livro, em que haviam situações que eu ainda não tinha construído um pensamento ao redor. E o processo de On Rape é bastante similar. É diferente no sentido de ser menos filosófico e moral quanto à reflexão das perguntas que tenho que fazer a mim mesma. Mas são muitas perguntas, observações e aspectos que eu nunca havia pensado antes de começar esse projeto. Acredito que no processo do livro é onde vou encontrar respostas e posicionamentos mais concretos.
O próximo capítulo de A History of Misogyny será On Mass Hysteria (Da Histeria Coletiva). O que você pode nos contar sobre essa pesquisa? Esse será o último capítulo da série?
LA: O próximo capitulo é On Mass Hysteria. E na realidade não é o terceiro, mas sim o gênesis, o princípio, pois creio que neste vou encontrar um processo de entendimento de muitas questões que falo no corpo do trabalho e nos capítulos. Estou investigando a possibilidade de que estes eventos sejam uma espécie de proto-linguagem que as mulheres usaram, e continuam usando, para expressar a repressão social de maneira inconsciente. É uma visão de novo global e conceitual, que vai investigar as diferentes injustiças e normas sociais que as mulheres tiveram que enfrentar de forma sistêmica durante a história. Paralelamente estou trabalhando em séries como Menstruation Myths (Mitos da menstruação) e Feminicides (Feminicídios), que ainda seguem evoluindo e têm a sua própria vida no projeto todo. Imagino que finalmente tudo se fechará em um terceiro capítulo. Ou como uma série de peças que, de certa maneira, unirá tudo.
Quais são as maiores barreiras e dificuldades em tratar de temas tabus que você normalmente aborda nos seus trabalhos?
LA: As barreiras são todas. Não sei porque eu fui ingênua em pensar que On Rape seria mais fácil de mostrar, falar ou publicar, já que On Abortion era mais político e incômodo. Mas com On Rape estou me dando conta de algo que deveria ter percebido e que é muitíssimo mais incômodo para todo mundo. Enquanto o aborto é incômodo para uma parte da população, o tema da violência sexual, de uma forma ou de outra, nos toca um pouco a todos. Sempre falo que as vítimas do patriarcado não são só as mulheres especificamente. Com On Rape os sobreviventes são mulheres, homens e pessoas não-binárias. Mas não é só isso. É o sistema que está danificado, é a cultura. A violação é um problema cultural e é algo que está muito profundo em nossos pensamentos, em nossas crenças, nas piadas, na maneira como nos relacionamos. Então se torna muito mais incômodo para um número muito maior de pessoas. É mais complicado de mostrá-lo, de falar e discutir, porque tudo é muito mais.
Você é uma comunicadora e, como tal, imagino que seja curiosa, contestadora e colecionadora de histórias…
LA: Sim, na verdade eu acho que minha capacidade de pesquisa é simplesmente uma reação à curiosidade inata. Quando criança já me dedicava a acumular e analisar toneladas de informação, sobre qualquer assunto que me interessasse naquela semana. Até me lembro que com a primeira câmera que meus pais me deram fiz um pequeno fotolivro sobre o povoado da minha mãe no País Basco, um povoado bem pequeno e abandonado, onde, como uma arqueóloga, retratei os lugares mais relevantes.
A fotógrafa Susan Meiselas e a curadora Marta Gili são citadas por você como suas mentoras. Como são essas relações, o que você tem aprendido com elas?
LA: Susan Meiselas tem sido para mim, acima de tudo, uma referência e uma aliada. Alguém que lutou com o seu trabalho para que muitas de nós pudéssemos estar onde estamos hoje. E é um grande apoio através da Fundação Magnum. Outras mentoras, e amigas, como Mónica Allende, que há anos me aconselha, passo a passo, num caminho difícil, porque para estar ao meu lado é preciso muito investimento emocional. Marta Gili foi a minha mentora para On Rape – graças ao Prêmio Visionary da Fundação Tim Hetherington – uma peça chave no desenvolvimento deste ensaio visual, para torná-lo mais pessoal, para que mantivesse uma coerência e uma estrutura política e filosófica em uma das questões mais complexas que eu já enfrentei. ///
Laia Abril é artista multidisciplinar que usa fotografia, texto, vídeo e som. Publicou os livros Thinspiration (2012), Tediousphilia (2014), The Epilogue (2014), Lobismuller (2016) e On Abortion (2018), com o qual ganhou o prêmio de melhor livro pela Aperture/Paris Photo em 2018 e foi finalista do Deutsche Börse 2019.
Marcella Marer é mestranda em Artes e Linguagens na EHESS, Paris. Contribui com instituições culturais nacionais e internacionais e com projetos de diversos artistas visuais. Colaborou com os festivais FotoRIO, Paraty em Foco, Valongo e ZUM.
Tags: Estupro, exposição internacional, Feminicídio, Misoginia