Ficções arquivísticas
Publicado em: 16 de julho de 2025
Perguntar algo ao trabalho de Gabz 404 é retornar com certezas embaralhadas. Não por conta de uma confusão ou falta de clareza, mas pelo modo como suas imagens chacoalham determinados modos de afirmar.
Nascido em Porto Alegre, Gabz atualmente vive e trabalha na capital paulista. Começou a fotografar em 2018 e logo passou a compreender a fotografia como um dispositivo de invenção de espaços possíveis. Suas séries são emaranhadas entre si por um desejo comum de investigar narrativas cristalizadas. Nelas, concebe diferentes arquivos, caminhando entre ficção e realidade para questionar o estatuto de verdade atribuído às imagens.
Com um olhar cirúrgico em direção ao modo como se forma e se reproduz a concepção hegemônica de gênero, seus trabalhos passam pelo som, imagem e palavra para responder ao modo particular de apresentação de cada discurso e criar um imaginário alternativo e mais plural .
No projeto ser trans, por exemplo, parte do testemunho individual de pessoas trans para tecer uma narrativa não linear e tensionar a expectativa normativa sobre a experiência trans. Já na na série 2384, ficcionaliza imagens de uma infância outra, de modo a escancarar a fragilidade da construção de gênero. Ao mesmo tempo, no trabalho Terapia Hormonal Autóloga para Pessoas Transmasculinas também lança mão da ficção, mas para questionar a falsa neutralidade de materiais científicos, que tendem a objetificar ou ignorar pessoas trans.
Nesta entrevista, acompanhamos as reflexões que cercam esses e outros projetos de Gabz, além de sua trajetória artística e as várias afirmações que desvela em sua produção.
Você se lembra do que te fez se interessar por fotografia? Quando você produziu suas primeiras imagens?
Gabz: Comecei a fotografar ali por 2018, quando comprei uma câmera usada pra fazer uns testes – eu queria, no início, ser videomaker. Levava a câmera pro rolê, fotografava amigos, o cotidiano… foram minhas primeiras imagens. Mas diria que minhas primeiras imagens enquanto fotógrafo vieram em 2019, num momento em que a câmera virou uma espécie de extensão do corpo, uma forma de escrever algo que eu ainda não sabia dizer. A fotografia entrou na minha vida como uma espécie de contradispositivo. Um modo de disputar e questionar as narrativas, mas também de inventar espaços onde fosse possível existir de forma complexa, contraditória, não legível. Ainda hoje, quando crio imagens, sinto que estou tentando voltar a essa pergunta original: o que é que não está sendo visto – e por quê?
Em seu trabalho, você faz uso de diversos recursos, como a fotografia, o vídeo e a palavra, para investigar os modos de construção de verdades que permeiam o imaginário normativo, como a concepção hegemônica de gênero. Quais verdades te interessam abordar nesta pesquisa? Quando você percebeu a imagem como um meio de se questionar a forma como se estabelecem?
G: De certa forma, enquanto artista, sempre trabalhei com a produção de verdades. O ser trans inclusive foi pensado desde o início como um espaço de contradições, de tensionamento da expectativa (de uma narrativa única e linear do que é ser trans) em oposição ao que é: pessoas são um caos, uma confusão, conceitos humanos são sempre subjetivos e relativos. Conforme fui avançando em meus projetos, uma linha de pesquisa foi se costurando. É até difícil entender quando um projeto começa e outro termina, ou entender as fronteiras da minha vida com a arte que produzo. De fato, no momento em que passei a questionar o documental a partir do lugar do artificial, ou seja, quando iniciei o que chamo de projeto-maior (por abrigar outros subprojetos) insurgência de aquário, em que trabalho com inteligência artificial, foi que questionei de forma consciente o papel da fotografia enquanto ferramenta de produzir verdades. Nisso nascia o projeto 2384 – que desenvolvi parcialmente na residência do Pivô e hoje costuro outra parte dele –, consistindo em investigar um dos pilares da verdade da nossa sociedade: a construção de gênero desde a infância. Abordo, de forma material e direta, essa narrativa, mas, por baixo, me interesso em entender os processos pelos quais optamos, por vezes de forma inconsciente, a aceitar algumas coisas como inquestionáveis e “naturais”, sem nos perguntarmos de onde vem o conceito de natural – e como ele foi construído. A verdade é uma imposição feita através de imagens, símbolos, palavras, sons, objetos, paisagens, arquiteturas. As imagens me interessam, pois podem carregar muitos desses outros elementos consigo. Por exemplo, em uma fotografia posso analisar as roupas, os gestos, as ações, a luz, a cena, as escolhas feitas por um fotógrafo que por vezes parece onisciente, mas escolheu para onde apontar e quando apertar o botão da câmera.
Na série ser trans você elabora um arquivo visual e sonoro de pessoas trans, travestis e não-binárias. Como se deu esse trabalho e de que maneira ele se torna um arquivo? Quais questões se apresentam com os diferentes relatos de cada fotografade?
G: Sempre falo que o ser trans não era, mas se tornou um arquivo. Comecei o projeto por conta das questões sem solução no meu próprio processo de transição. Não achava as referências que eu procurava, então decidi que iria atrás delas, documentando e deixando público para que servisse a outras pessoas também. Não tinha o intuito de ser educativo, nem artístico, mas já entendia que era sobre memória. Inclusive sinto que a primeira fase do projeto foi muito mais documental. Ou que eu estava mais preocupado em documentar uma espécie de verdades (no plural, pois já entendia que verdade não era exclusiva e universal). Aos poucos, a quantidade de pessoas fotografadas e entrevistadas foi crescendo e me dei conta que eu estava criando um arquivo de pessoas trans vivas, pessoas que escolhiam o que e como queriam falar e serem fotografadas. Isso foi muito importante, porque embora seja necessário resgatar as vivências anteriores de outras pessoas trans, elas muitas vezes não tiveram esse direito. É mais fácil encontrar arquivos (passados e atuais) que resgatam a violência do que a vivência banal desses indivíduos, e isso reforça um estereótipo e uma narrativa única em que ser trans se resume a querer parecer cis. Quanto mais faço o projeto, mais percebo as contradições, e isso me anima muito! Amo essa multiplicidade de vivências e, talvez, o que mais se destaque para mim é que, apesar de o projeto se chamar ser trans, na real ele discorre para muito além do esperado.
A ciência e a medicina são temáticas que aparecem em algumas de suas produções. No trabalho Terapia Hormonal Autóloga para Pessoas Transmasculinas você elabora um artigo científico, com imagens, linguagem e comprovações da ordem da ciência para um procedimento fictício. Por que ficcionalizar um material desta natureza? Como as diferentes ciências transitam por seu trabalho?
G: Em Terapia Hormonal Autóloga para Pessoas Transmasculinas busco mostrar a ciência enquanto ficção normalizada. Nossas premissas modernas partem da ciência e, embora eu acredite na ciência, também sou cético. Precisamos ser. A ciência opera através de consensos e epistemologias que moldam e catalogam corpos, que define o que é normal e o que é desviante, anormal, patológico. Quando falamos de pessoas trans, existe uma fricção entre a autonomia corporal e o controle biomédico sobre esses corpos. Essa mistura de ficção e realidade na obra é uma mistura a partir do real, não do inventado. A ficção é real. Existe uma aura de legitimidade no formato científico, e eu procuro mimetizar isso – através das imagens realistas e do texto acadêmico, além do formato da publicação. Há ainda o jogo com uma questão um pouco mais profunda, que me interessa e incomoda: a testosterona utilizada na harmonização de pessoas trans é fabricada para homens cis, os testes e resultados foram largamente documentados para esses corpos. Mas o que acontece a longo prazo quando injetamos periodicamente essa substância sintética? O interesse com a saúde de pessoas trans parte sempre do controle, e não do cuidado, então não interessa à ciência buscar essa resposta.
Na série 2384, atualmente em desenvolvimento, você discute o valor factual das fotografias de arquivo, em especial da infância e adolescência, ao repensá-las por meio da inteligência artificial. Quais os processos de coleta e manipulação dessas imagens? Como esse trabalho pensa os valores que nos moldam na juventude?
G: A série 2384 se iniciou de uma inquietação, que resumo em duas perguntas: “se somos colocades em um regime cisheteronormativo desde crianças, como poderiam as fotografias de infância nos representar?” e “se essa fotografia não me representa, ao usar IA para modificar um elemento e deixar o eu-criança mais próximo de como me sentia à época, seria essa imagem menos verdadeira do que a original?”. Embora desde o início a série tenha contado com algumas imagens minhas, me propus a modificar fotografias de outras pessoas trans conhecidas que me enviaram suas fotos ou então fotografias antigas compradas. Então eu passei a modificar ou não as imagens e a gerar outras imagens completamente do zero por IA. Colocando todas juntas, sem conseguir apontar quais eram as fotografias originais, quais eram modificadas e que imagens eram inventadas, não só o questionar da ficção de gênero enquanto construção de verdade ganhou força, mas também o questionar da ficção da fotografia – ou a fotografia enquanto manipulação.
Os chás de revelação revelam as expectativas que recaem sobre crianças antes de elas nascerem. E essas expectativas se resumem a duas cores.
Com o tempo, e com algumas vivências mais recentes na minha vida, resgatei meus próprios arquivos de infância e adolescência e comecei a fazer outras perguntas. Como a grande maioria dos meus trabalhos, isso não era um projeto, e sim um processo pessoal. Aos poucos entendi que se tornou uma pesquisa, e atualmente tenho me dedicado a ela.
Seu trabalho tem circulado bastante em exposições nacionais e internacionais, além das residências no Pivô (2024) e na FAAP (2025). Como você tem percebido a recepção e os discursos sobre seu trabalho?
G: A recepção tem sido múltipla — às vezes generosa, às vezes capturadora. Acho que há uma curiosidade crescente em torno de trabalhos que atravessam questões como dissidência de gênero, inteligência artificial e memória. Mas também percebo como certos discursos tentam domesticar ou enquadrar o trabalho dentro de categorias que o tornem mais inteligível para os circuitos institucionais. Por isso tomo cuidado.
As residências do Pivô e da FAAP foram e tem sido, no caso da FAAP, muito importantes de formas distintas, pois são dois formatos bastante diferentes. Tive a oportunidade de estar em São Paulo, ter um ateliê espaçoso e reservado para trabalhar, trocas com artistas, acompanhamento curatorial.
A circulação em exposições e residências me dá acesso a interlocuções importantes, mas também me coloca diante da fricção entre o desejo de experimentação e os enquadramentos do sistema da arte. Percebo ao longo da minha trajetória artística que algumas leituras tentam reduzir meu trabalho a uma produção sobre identidade ou sobre gênero, quando na verdade o que me move é uma investigação sobre realidade, linguagem e poder — o gênero aparece, mas como sintoma, como superfície de algo mais profundo. Compreendi que para estar inserido de forma mais incisiva no sistema artístico eu teria que mudar a forma como produzo, e foi importante perceber e pensar nisso para me posicionar, para entender que para mim isso é inegociável. Existe um motivo muito nítido para eu fazer a arte que faço, e desviar disso está fora de questão para mim. Porém, de forma alguma isso significa que há rigidez. Pelo contrário, acho que meu trabalho por vezes provoca certa confusão, exatamente pelo movimento constante em que se encontra.
Quais arquivos têm te mobilizado hoje? Quais projetos estão por vir?
G: Hoje me encontro em uma encruzilhada. Não sei o que está por vir, mas sinto muita coisa se movendo dentro de mim, conexões entre diversas temáticas que trabalho de forma mais sutil ou mesmo invisível emergindo e convergindo. Impossível saber daqui o que está por vir, mas tem lava viva correndo nas minhas veias. Tenho aprendido que criar também é parar, que ser artista é ter momentos de reclusão, que envolve desaparecer um pouco e escavar para dentro. E enquanto trabalho outros projetos da vida, tenho vivido com o corpo experiências que antes não cabiam – ou que eu adiava em nome da produção contínua. Talvez esse adiamento fosse parte do problema. Nesse sentido, tenho pensado muito no papel da arte contemporânea, na atual produção frenética e excessiva de imagens, na superficialidade da produção artística, como se o valor estivesse na velocidade com que algo pode ser consumido, reagido, compartilhado. Às vezes me pergunto se ainda há espaço pra demora, pra densidade, pra coisas que não se resolvem. Talvez meu desejo agora seja esse: habitar a pausa, a confusão, a incomunicabilidade. e ver o que emerge daí. ///
Laura Sapucaia (2002, São Paulo, SP) é pesquisadora, educadora e graduanda em Artes Visuais na ECA-USP. Desde 2024, integra, como estagiária, a equipe de Arte Contemporânea do IMS.