15 anos de história da Escola de Fotógrafos Populares
Publicado em: 28 de janeiro de 2020Criada há 15 anos na Favela da Maré (RJ), a Escola de Fotógrafos Populares (EFP) foi não apenas uma importante porta de entrada para a fotografia de muitos jovens das comunidades cariocas, mas também uma forma de “criar um comunicador popular com uma noção grande de política, de direitos humanos, que fosse capaz de veicular uma imagem de favela em contraposição à visão estigmatizante com que a favela era veiculada na grande mídia”, como conta o professor e fotógrafo Dante Gastaldoni, ex-coordenor pedagógico da EFP.
Gastaldoni conta a história do surgimento da escola e a riqueza dos frutos de tal experiência. Leia abaixo a entrevista.
Desde os tempos do Observatório de Favelas e Imagens do Povo, como se conectaram esses projetos/associações até o surgimento da Escola de Fotógrafos Populares?
Dante Gastaldoni: O Observatório de Favelas foi fundado em 2001 por Jaílson de Souza e Jorge Barbosa na Favela da Maré, mais especificamente na Nova Holanda. Era uma ONG e pouco depois assumiu o status de Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), centrada na questão dos direitos humanos, com ênfase na letalidade de jovens negros por conta da falta de oportunidades. A fotografia entrou no Observatório de Favelas em 2004 quando convidaram o [fotógrafo] João Roberto Ripper para fazer as fotos de um livro, assinado pelos dois fundadores e chamado Favela, Alegria e Dor na Cidade. O Ripper, com aquele espírito visionário e generoso que o caracteriza, propôs no lugar dele fazer as fotos pegar o dinheiro do financiamento, que era de Furnas, e dar um curso para capacitar jovens da favela a se tornarem fotógrafos e comunicadores populares com uma visão crítica da própria favela.
Esse primeiro curso se chamou Escola de Fotógrafos Populares e junto com ele nasceu a ideia de uma agência, a Imagens do Povo, que seria não só um banco de imagens mas também uma central de pautas, venda de serviços, etc. Então a coisa já nasceu nessa integração entre uma escola de fotografia que criava mão de obra para uma agência de fotógrafos na periferia. Isso em 2004. Esse primeiro curso teve uma duração de quatro meses, era uma carga horária de 40 ou 50 horas, e foi o meu primeiro contato com esse projeto, uma vez que o Ripper convidou muita gente para ir lá dar uma palhinha, dar uma força, conversar com as pessoas. Dessa primeira fase, eu me lembro que desde a minha primeira aula fiquei encantado com o projeto. Voltei várias vezes e senti um interesse incomum dos alunos, uma vontade de aprender, um ambiente que muito diferia do que eu conhecia das universidades federais onde eu dava aula. Aquilo me encantou muito, confesso, e voltei muitas vezes. A coisa nasce assim.
A EFP, além de ensinar e profissionalizar jovens para o mercado fotográfico, também funciona como agência. Quão importante é dar condições para estes fotógrafos recém-formados entrarem no mercado de trabalho da fotografia?
DG: Talvez essa ideia da simbiose entre uma escola de fotógrafos criando mão de obra para uma agência de fotógrafos tenha sido o aspecto mais visionário da criação do Ripper, porque não é só para garantir a sustentabilidade e trabalho para esses jovens. O fato de a agência existir independente do financiamento da escola nos permitiu continuar sobrevivendo mesmo quando a escola não foi financiada. É preciso deixar claro que a última versão da escola começou em 2012 e acabou em 2013, não existe mais desde 2013. E o Observatório de Favelas mantém a agência Imagens do Povo. Não tenho ideia de como eles vão reconfigurar a EFP, ou mesmo se vão reconfigurar a escola. No período que eu acompanhei de, 2004 a 2013, a escola aconteceu em anos sazonais: teve em 2004, 2006, 2007, 2009, 2010 e 2012. Em alguns anos não teve. Mas a chama continua acesa por conta da agência.
É óbvio que uma característica importantíssima dessa agência é dar uma sustentabilidade mínima e uma grande visibilidade para os trabalhos desses alunos. Fomos acolhidos por inúmeras instituições, muitas histórias pra contar de apoios diretos ou indiretos, de contratações que existiam por causa do conjunto. Vários trabalhos da escola foram conhecidos via o banco de imagens organizado por Francisco Valdean e vários convites também para profissionalizar fotógrafos chegaram por aí. Alguns deles inclusive ganhando, como parte do pagamento, equipamento profissional. Mas sem dúvida nenhuma o caráter mais revolucionário do projeto era criar um comunicador popular com uma noção grande de política, de direitos humanos, que fosse capaz de veicular uma imagem de favela em contraposição à visão estigmatizante com que a favela era veiculada na grande mídia. Era um projeto contra-hegemônico, de contrainformação. E foi encantador participar disso, acompanhado pelo Ripper, pelo Bira Carvalho – fotógrafo cadeirante da Nova Holanda que era o nosso guia e nosso salvo conduto pela comunidade – e pelas três coordenadoras que tocaram a agência entre 2006 e 2015: Kita Pedroza, Joana Mazza e Rovena Rosa.
Existe uma “fotografia popular”? No que a formação oferecida pela EFP se diferencia de outros centros de formação?
DG: Essa pergunta me parece ao mesmo tempo curiosa e difícil de responder porque hoje essa expressão “fotografia popular” assumiu o status de um conceito. Já vi usado em dissertações, em teses e matérias. Mas ela não foi criada com essa finalidade. O Ripper vinha de uma história de agências, já tinha integrado, quando saiu da grande imprensa, a F4, que era a maior agência brasileira de fotógrafos independentes. E de 1991 até 1999 ele fundou e atuou numa cooperativa de fotógrafos chamada Imagens da Terra que fotografava o trabalho e as populações tradicionais pelo país afora, documentando as comunidades pastorais de base, o surgimento do MST, o trabalho escravo junto ao carvão, as aldeias indígenas, os quilombos, etc. Ele já vinha nessa pegada com os fotógrafos do Imagens da Terra durante toda a década de 1990. Quando veio o convite do Observatório de Favelas a ideia da agência veio quase que instantaneamente. E o Imagens da Terra se transformou em Imagens do Povo. Uma nova agência para atender os formandos da Escola de Fotógrafos Populares. Isso acabou virando um conceito.
Agora, o que eu diria que é a especificidade dos formandos da EFP, era a intensidade do curso e o solo fértil onde ele foi plantado. Vale lembrar que, depois dessa primeira experiência de 2004 com a turma original de quatro meses de duração, em 2005 fui convidado para ser coordenador pedagógico do projeto. O Ripper e eu escrevemos um projeto muito mais alentado de um curso que duraria um ano inteiro, praticamente com 10 meses de aulas, execução de um trabalho final, um ensaio autoral. O curso tinha 540 horas-aula e três linhas de trabalho: uma delas era a Linguagem fotográfica, a parte técnica da fotografia; uma segunda parte era Informática aplicada à fotografia, centrada basicamente no Photoshop; e uma terceira era Fotografia documental e olhar autoral.
O curso possuía uma carga horária que nenhuma universidade ou Sesc tinha. Contava com o apoio da classe fotográfica em peso, principalmente nesse terceiro módulo no curso Fotografia documental e olhar autoral. Recebíamos diversos fotógrafos, pesquisadores. Quando dou um curso em uma universidade federal, boa parte dos alunos estão ali por que é uma disciplina obrigatória, um crédito, tem que fazer. É diferente a paixão com que os alunos da favela se debruçavam sobre o tema. As aulas eram muito inspiradoras, a relação que se estabelecia, a participação era muito grande. As aulas eram aplaudidas e isso eu não tinha visto ainda. Essa interação, os traços de afeto e de solidariedade são muito raros.Em 2007, no segundo ano em foi oferecida na versão ampliada, a Escola de Fotógrafos Populares recebeu o prêmio Faz Diferença do Jornal O Globo, entregue em março de 2008 no Golden Room do Copacabana Palace. Na ocasião, Sebastião Salgado, agraciado como ambientalista, dividiu o palco com a rapaziada da Escola. Foi uma festa e tanto.
O olhar dos fotógrafos formados na EFP obviamente se diferencia no nível pessoal, nas escolhas estéticas de cada um deles. Mas é possível destacar algum traço comum?
DG: Não resta dúvida que cada um é um, que a sua personalidade vai se manifestar no produto final, desde a escolha dos temas até os arroubos estéticos. Alguns são muito mais transformadores, outros são mais documentais. O próprio conceito de documental foi muito ampliado na sequência do curso. Em 2013, por exemplo, o Observatório de Favelas ofereceu o curso Fotografia, Arte e Mercado. Uma das vantagens principais daquele projeto, ao contrário da grade acadêmica que normalmente as universidades usam em seus currículos, era a capacidade mutante, camaleônica, de ir se adaptando. Tanto que nós nem chamávamos de grade curricular, eu chamava de matriz curricular. A gente ia se adequando às características, ansiedades, verbas, e o curso ia tomando várias caras.
Tinham muitos olhares, muitas facetas estéticas diferentes convivendo ali. Mas se tinha um traço comum, e eu acho que tinha, ele estava centrado, primeiramente, na sensação de pertencimento, de ter um certo orgulho de estar ali, uma consciência de que aquele trabalho era diferenciado e era importante. Um segundo ponto, que sempre me marcou muito, foram os traços de solidariedade entre os fotógrafos ali formados. É como se… você passasse por ali, mas aquilo não sai de você. A maior parte dos fotógrafos têm muito orgulho até hoje de se associar a esse projeto. Isso é bonito, essa sensação de solidariedade, de pertencimento. E também a visão crítica, seria um terceiro elemento desse tripé: a visão crítica, o pertencimento e a solidariedade.
Nos 15 anos da EFP é perceptível alguma mudança na abordagem da profissão de fotógrafo pelos alunos? Em termos de educação visual, como chegavam os alunos em 2004 e como chegam agora?
DG: Essa pergunta remete a uma coisa que já disse de passagem e vou explicar melhor. A escola não existe mais, não é oferecida, desde 2013. Então não tem como comparar. Há como afirmar que nesse núcleo de fotógrafos formados pela Escola têm pessoas absolutamente admiráveis, como é o caso do Ratão Diniz que publicou o livro Em Foto (Mórula Editorial) para celebrar seus 10 primeiros anos de estrada; da Valda Nogueira, que teve sua trajetória brutalmente interrompida no ano passado, além de inúmeras exposições de fotografia no Brasil e no exterior, com reconhecimento no circuito de arte e no circuito da fotografia documental. Também cabe acrescentar que esse período de 2013 a 2015, em que a escola não foi oferecida, houve também um racha entre um grupo considerável de fotógrafos e o Observatório de Favelas. É um desses rachas que, na minha cabeça, não tem mocinho nem bandido. Apenas uns não se sentiram plenamente representados, o Observatório tinha suas prioridades e então várias pessoas romperam os contratos e a escola deixou de ser oferecida. É uma pena.
A agência Imagens do Povo continua e eu continuo acreditando que ela tem um trabalho notável a cumprir. Mas houve essa dissensão. Em 2015, que foi quando eu diria que esse racha já estava consumado, recebi um convite da Sandra Baruki para contar essa história dentro do FotoRio de 2015. Encantado com o convite do CCPF (Centro de Conservação e Preservação Fotográfica, ligado à Funarte), ofereci, chancelado pelo Observatório de Favelas, uma oficina para contar essa história chamada Fotografia, Periferia e Memória. Com a participação de alguns convidados, contamos essa história à convite do CCPF e a coisa teve uma repercussão fantástica. No mesmo ano, me pediram para oferecer um ciclo de oficinas sobre o mesmo tema nas regiões norte e nordeste, em oito capitais. Chamei várias fotógrafas e fotógrafos, inclusive o Ripper, a Tatiana Altberg, o Ratão Diniz, o Adriano Ferreira Rodrigues, um timaço para circular pelas capitais do norte e nordeste. E isso não parou: em 2016 recebemos outro convite do CCPF para um ciclo de palestras no Museu Histórico Nacional; em 2017 oferecemos uma oficina com 120 horas/aula, sempre com esse título Fotografia, Periferia e Memória, no Sesc de Paraty; em 2018 no Sesc de São Paulo. Nos últimos cinco anos essa história já foi apresentada em mais de 30 cidades de 14 estados brasileiros.
A história do que foi a EFP continua viva, pulsando na obra de quem passou por lá. O Luiz Baltar, por exemplo, em 2016 ganhou os dois maiores prêmios da fotografia brasileira (o Conrado Wessel e o Itaú-Porto Seguro) com dois trabalhos conceituais: Fluxos e Contrafluxos. Elisângela Leite e AF Rodrigues têm um trabalho notável sobre as festividades de Iemanjá e o Fábio Caffé sobre São Jorge. Embora não exista mais nos últimos 5 anos, tem 15 anos de história da Escola de Fotógrafos Populares. Ela continua viva, sua memória continua viva. As pessoas continuam se referindo à ela e fazendo questão de dizer “eu participei desse projeto”.
Pensando em termos da relação centro/periferia, é possível perceber como o olhar dos fotógrafos da EPF aborda a vida na zona sul?
DG: Nesse sentido é importante ressaltar que a escola, na versão ampliada de 2006 com um ano de duração, já pedia a cada aluno ao final do curso um ensaio autoral que fosse uma visão da cidade a partir da favela. Boa parte dos temas transcendiam os territórios da favela. Temas como carnaval, festas populares, iemanjá, São Jorge, bate-bolas, grafitagem. As fotógrafas e fotógrafos lá formados sempre tiveram um olhar da favela sobre a cidade. Outra coisa que vale destacar, e que é muito comovente, é a quantidade de projetos que têm uma espécie de geração espontânea, que nasceram deles para nós e que eram cativantes. A gente tem que saber ouvir, tem que saber perceber, porque são coisas geniais.
Por exemplo: o coletivo multimídia Favela em Foco nasceu por sugestão da turma de 2009. Esse coletivo surge tentando mostrar que 20 anos depois da queda do Muro de Berlim estavam construindo muros na Linha Amarela e na Linha Vermelha para esconder as favelas dos turistas que chegariam para as Olimpíadas e para a Copa do Mundo. Sendo que, na verdade, debaixo da desculpa de que eram placas acústicas, estavam escondendo a favela. E esse coletivo vem a partir dos alunos, com uma intervenção na cidade. Da mesma forma que o coletivo Folia de Imagens nasce em 2013 para documentar o carnaval pela ótica popular, que saísse da Sapucaí para os blocos, os grupos, os bate-bolas. O Cafuné na Laje nasceu no Jacarezinho para filmar roteiros de vídeos criados pelas crianças. É uma criatividade sem limites, o tempo inteiro nos oferecendo novas abordagens de leituras da cidade, do seu entorno e de tudo mais.
Esta talvez seja a parte mais bonita dessa convivência. Como é possível, pegando alguém que tem pouco e que está numa área de exclusão financeira, e dando um curso de excelência, dando oportunidade, fazer a coisa germinar. Como o solo é fértil! É só acreditar, é só investir. Estou completando agora em março 45 anos de magistério, estou prestes a pedir a minha aposentadoria da UFRJ, e digo com toda a segurança que eu nunca tive nesses 45 anos uma experiência acadêmica mais tocante, que tivesse me mobilizado mais, me encantado mais do que os 10 anos que eu passei no Observatório de Favelas. E os cinco anos que de lá pra cá têm me obrigado a conviver com essa memória, com esses fotógrafos e fotógrafas que hoje são parte da minha família, sem pieguice nenhuma. É o saldo que ficou para mim. ///
Dante Gastaldoni, 69, é professor de Fotografia na Escola de Comunicação da UFRJ desde 1983. Entre 1980 e 2016 foi professor da UFF; de 2006 e 2015 atuou como coordenador acadêmico da Escola de Fotógrafos Populares. E desde 2015 está envolvido com o projeto Fotografia Periferia e Memória.
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