Entrevista: Philippe Dubois e a elasticidade temporal das imagens contemporâneas
Publicado em: 7 de fevereiro de 2018Um dos mais importantes teóricos da imagem tecnológica da atualidade, o belga radicado na França Philippe Dubois (1952) notabilizou-se, ainda nos anos 1980, com o livro O ato fotográfico. Na época, seu objetivo era pensar o processo de realização da fotografia, do ato de fotografar à recepção, relacionando-o a formas anteriores de reprodução ou representação por meio de imagens não realizadas pelo homem. Diferentemente da pintura ou da escultura, o Santo Sudário seria um exemplo precoce desse tipo de representação: o tecido que teria coberto Jesus Cristo depois de sua crucifixão traria o registro da imagem de seu corpo, sem que ela tenha sido feita pelas mãos de um artista. Publicado em francês em 1983, O ato fotográfico foi rapidamente traduzido para diversos idiomas. No Brasil, lançado pela Papirus em 1993, está na 14a edição.
Seria um erro, no entanto, tentar circunscrever o pensamento de Dubois, limitando-o ao campo estritamente fotográfico: são as formas visuais que lhe interessam. E em particular as zonas nebulosas de fronteira entre elas. Dedicou-se, por exemplo, a pensar obras videográficas, produzidas tanto por cineastas quanto por artistas, seja para o universo da televisão como para o da arte contemporânea. Fruto dessa reflexão, o livro Cinema, vídeo, Godard (Cosac Naify, 2004) foi publicado inicialmente no Brasil e, em seguida, lançado em outros países. Na França, uma versão modificada dessa obra saiu em 2011 como La question vidéo: entre cinéma et art contemporain.
Professor do departamento de cinema e audiovisual da Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3, e professor convidado em universidades brasileiras, como a UFC (Universidade Federal do Ceará) e a Unicamp (em Campinas), o autor tem investigado mais recentemente os conceitos de “pós-cinema” e “pós-fotografia”, temas do livro que organiza em parceria com a professora da UFC Beatriz Furtado, com lançamento previsto para este ano pelas Edições Sesc. De acordo com a hipótese proposta por Dubois, como consequência das tecnologias digitais de produção e fruição das imagens, os limites entre fotografia e cinema tornaram-se pouco nítidos e, talvez, a própria distinção entre as duas linguagens seja, hoje, algo anacrônico. A oposição entre fotografia e cinema calcada no antagonismo entre imobilidade e movimento, que fez muito sentido no século 20, se revelaria, assim, menos proveitosa atualmente do que o pensamento mais amplo sobre aquilo que ele chama de “elasticidade temporal das imagens contemporâneas”.
Seu primeiro livro, O ato fotográfico, publicado originalmente em 1983, propunha-se a pensar a relação entre fotografia e realismo a partir das teorias de Roland Barthes. A inscrição da luz refletida por um referente sobre a película translúcida no momento preciso da tomada garantia uma imagem sem mediação – ou quase. Naquele momento, ainda era preciso reafirmar a importância da fotografia como um análogo objetivo do real. O famoso “ça a été” ou “isso foi”, de Barthes, condensava a ideia do estatuto indicial da fotografia, sua capacidade de gravar uma realidade objetiva, algo que de fato ocorreu na frente da câmera. A noção de impressão de uma realidade na imagem era portanto fundamental para O ato fotográfico. Com as tecnologias digitais, esse cenário se altera. Ainda é possível afirmar, como você fazia no livro, que “a imagem fotográfica é impensável fora do ato que a gera”? Em seus trabalhos recentes, você fala da passagem da “imagem-rastro” para a “imagem-ficção”. O que isso quer dizer exatamente?
Philippe Dubois: Em 1980, depois de ter concluído um doutorado em Teoria Literária, um editor me propôs que escrevesse um livro sobre fotografia. O assunto estava em voga. Eu dava um curso sobre fotografia na época e aproveitei a oportunidade de abandonar o tema de minha tese, de me distanciar da literatura, e me concentrar em outra coisa: a imagem. Me joguei no campo da teoria da fotografia. Eu não tinha uma grande cultura no assunto, mas esse campo teórico era bastante limitado à época. Barthes havia lançado A Câmara Clara; alguns outros livros estavam sendo preparados. Peguei o bonde andando e escrevi O ato fotográfico rapidamente, em 1982, e ele foi publicado em 1983. O que me fascinava, a mim e a praticamente todos os teóricos daquela época, era que nada estava verdadeiramente estabelecido até então. Havia um discurso organizado sobre as imagens na pintura e sobre a teoria do cinema, mas a teoria da fotografia se limitava a uma dezena de livros, se tanto. E todos mais ou menos recentes. A fotografia oferecia uma imagem imediatamente constituída. Como dizia o slogan da Kodak: “basta um clique: eles fazem o resto”. Ou seja, a tecnologia cuida do restante. A fotografia era pensada como uma imagem de coisas que estavam lá, presentes, como algo que não foi construído, elaborado, mas que se instituía “espontaneamente”. Esse era o fenômeno que eu tentei conceituar, com base em um semiótico da época, Charles Sanders Peirce (1839-1914), e nas teorias do index.
A ideia dominante do livro era a de rastro: a imagem é o registro do mundo, com pouca mediação. Havia, é verdade, as mediações técnicas: a imagem podia ser em preto e branco ou em cores; ela era plana. É verdade que já existiam textos anteriores de Siegfried Kracauer (1889-1966), André Bazin (1918-1958) e Rudolf Arnheim (1904-2007) evidenciando que a fotografia não é de fato algo totalmente imediato. Mas, em comparação com a pintura, que oferecia o grande modelo teórico existente até então, ela trazia a diferença de não ser fabricada ponto por ponto, elemento por elemento.
Esse discurso dos anos 1980 evoluiu muito pouco no campo da teoria. Houve progressos importantes no campo da história da fotografia, no da sociologia dos usos da imagem, mas pouca novidade surgiu nas reflexões sobre a natureza da imagem fotográfica. Em 2015, o Centro Pompidou abrigou um colóquio intitulado Onde estão as teorias da fotografia hoje?. A pergunta subentendida era: “O que mudou desde o digital?”. A ideia de rastro, justamente, havia deixado de ser dominante. A maioria dos convidados, americanos, alemães, franceses, não havia avançado muito sobre essa questão. Ainda discutíamos o vestígio, a impressão, o “ça a été” (“isso foi”), o index, o índice e assim por diante.
É nesse momento que surge a ideia de imagem-ficção em oposição à imagem-rastro?
PD: Eu havia sido convidado para esse colóquio enquanto representante do “velho mundo” dos anos 1980, por ter escrito O ato fotográfico. Levei a demanda a sério e quis refletir sobre o que de fato mudou na teoria. Foi então que construí minha ideia. Passei a outro campo do saber, não mais aquele da semiologia ou da filosofia de Roland Barthes e Peirce, mas o da teoria dos mundos possíveis, que tem sua origem na filosofia. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) foi seu iniciador. No início do século 20, essa teoria ganhou interesse renovado, concentrando-se sobretudo na ficção literária. Um mundo romanesco é um mundo possível, que tem sua lógica, sua verossimilhança, suas regras e critérios. É como o mundo real, mas não é um mundo real, existindo paralelamente a ele. De tempos em tempos, o romance dito realista se pretende “reflexo” do mundo real, mas, por sua própria natureza de objeto literário, de pura ficção, trata-se de uma invenção, mais ou menos calcada no real. O importante é que ele tenha suas próprias regras enquanto mundo fictício possível, e pressupõe, portanto, um contrato de crença: deve-se acreditar na existência desse mundo, mas como mundo virtual, que existe apenas em pensamento. Muito se escreveu a respeito da teoria dos mundos possíveis aplicada à literatura, na Lógica e na Teoria Literária.
Tentei então interrogar se, no domínio do visual, também seria possível basear-se na teoria dos mundos possíveis. Poderia a invenção de um mundo visual ser descrita em termos de mundos fictícios? Ou seja, de um mundo possível existindo paralelamente ao mundo real e com ele nutrindo relações variadas, ora de reprodução, imitação, ora de ausência total de possibilidades do mundo real? Um mundo de pensamento, que existiria apenas na imagem. Esse campo foi um pouco explorado, não tanto nas teorias da pintura, mas no pensamento ligado à imagem, em especial ao cinema, que desenvolveu ele próprio ficções de mundos possíveis. Matrix [Lana e Lili Wachowski, 1999] é um exemplo canônico: ele traz um mundo possível, que poderia existir e que tem suas lógicas próprias.
Ninguém até agora havia aplicado a teoria dos mundos possíveis ao universo da fotografia. Pareceu-me interessante interrogar a fotografia sob essa perspectiva. Se a fotografia não se destina mais a ser a impressão do mundo, o rastro de algo que esteve ali e que foi registrado em uma imagem, se posso ter nela um animal de cinco patas e um peixe coberto de pelos [referência ao trabalho do artista conceitual catalão Joan Fontcuberta (1955), que a partir de suas mais célebres séries, como Fauna (1987) e Sputnik (1997), vem questionando a verdade da fotografia.], será que ela deixa de ser encarada como vestígio do mundo? Como rastro de algo que ocorreu? Ela pode então ser pensada como uma invenção em si, que não deve mais ao mundo outras relações a não ser a de ser um mundo paralelo, com regras próprias, e não mais a reprise deste mundo em uma imagem.
Há algo de pós-verdade nessa visão, o que nos leva a rever as funções da fotografia. Se característica indicial fazia com que ela pudesse servir de prova e de lembrança, será que hoje a função dêitica tornou-se predominante? No lugar do “isso foi”, haveria hoje sobretudo um “estou aqui” que é passível de invenção, de ficcionalização?
PD: O exemplo mais evidente do que você descreve está nos usos ordinários da fotografia. Hoje, com um celular, todo mundo tira fotos o tempo inteiro: da mulher, do bebê, dos pais, do que se vai comer no restaurante, do pôr do sol na praia… A questão é: são mesmo fotografias? Temos o impulso de classificá-las na categoria das “fotografias/rastros da vida” como nos álbuns de antes. Mas fazemos tantas que os álbuns deixaram de existir, assim como o suporte. Claro, algumas imagens podem ser impressas e afixadas na parede, mas a maioria permanecerá como arquivo digital no telefone móvel. Talvez as transfiramos para o computador para passar num slide-show como fundo de tela. É o que essas imagens fazem: circular, passar. É diferente da marca sobre o papel encarnada pela velha lógica da fotografia analógica.
Com as redes sociais, a função mais importante das fotos do cotidiano é a circulação, seja no Instagram, no Facebook ou em outros aplicativos. “Você viu? Estou aqui!”. Já não se trata mais de imagens-memória ou imagens-monumento para serem conservadas, mas de imagens que circulam para desaparecerem tão rapidamente quanto aparecem. Não há lista ou álbum. Elas sequer são inventariadas. Logo se apagam, sem uma inscrição para durar. A lógica da estocagem se opõe à do fluxo. A fotografia se torna, assim, um objeto de circulação, elemento de fluxo.
Hoje em dia, quando falo aos estudantes do autorretrato fotográfico, eles logo pensam nas selfies. Não é fácil fazê-los entender que são coisas bem distintas. O autorretrato não é apenas uma imagem de si, mas uma imagem de si no mundo. É assim tanto uma imagem do mundo em nós quanto de nós no mundo. Essa relação do sujeito no mundo é constitutiva da própria ideia de autorretrato desde suas origens, na pintura ou na literatura. O livro de Michel Beaujour, Espelhos de tinta. Retórica do autorretrato (Miroirs d’encre), trata dessa questão. O autorretrato se define pela dialética entre o sujeito e o mundo que o rodeia. O que faz exatamente quem tira uma selfie em frente à Torre Eiffel? Ele dá as costas ao monumento, direciona o aparelho para si e deixa a Torre Eiffel como pano de fundo. É a negação da relação com o mundo e a afirmação em looping do “eu me olho no meu aparelho que me olha enquanto poso e eu não olho o que está atrás”. A imagem é imediatamente enviada ao amigo que permaneceu do outro lado do mundo, como um atestado de presença: “estou em Paris”. A cidade é um pano de fundo. A relação do sujeito com o mundo se resume a uma relação de presença, e não mais de confrontação, apreensão, compreensão, intelecção. O mundo torna-se apenas cenário e a única coisa que conta é o eu frente a mim mesmo.
Mas entre os usos atuais da fotografia, a prova pela imagem permanece em vigor, apesar das trapaças…
PD: Sim e não. Já na época da fotografia analógica a função de prova pela imagem se reduzia a algumas poucas situações. Uma imagem atestava simplesmente que o que se via nela tinha de fato existido. Era um atestado de existência, não uma demonstração de sentido. Sempre se pode fazer com que a imagem diga o que se deseja. Desde antes do digital havia trucagens e manipulações. A imagem sempre foi passível de intervenções. Já se duvidava bastante do estatuto de prova. Podem-se apagar ou acrescentar coisas. Fotografias de políticos na China ou na Rússia eram retocadas, agregando-se ou subtraindo-se generais aos retratos de grupo. Hoje ocorre algo mais profundo. Além da ideia de que a fotografia pode ter sido manipulada, que sempre existiu, algo em sua própria natureza foi colocada em dúvida. Uma foto digital pode fazer com que diversos elementos intervenham, pode relacionar de mil maneiras, e com facilidade desconcertante, fundos e primeiros planos. Com qualquer programa de tratamento de imagem, faço em segundos uma selfie em frente a um monumento de Pequim – ainda que eu nunca tenha pisado ali. A desconfiança com relação à veracidade é hoje geral. Muitos fotógrafos, sobretudo fotojornalistas, usaram e abusaram. O caso mais célebre é o de Eric Baudelaire, com suas manipulações de imagens de guerra pretensamente feitas nos campos de batalha do Iraque. São imagens trucadas, compostas digitalmente e apresentadas em concursos como sendo reais, a ponto de enganarem jurados profissionais. A imagem digital, com suas possibilidades de construir mundos que não guardam elo físico com o real, está generalizada. Não há mais nenhuma certeza com relação à função de prova de uma fotografia. Mas é possível acreditar nela, como em uma ficção.///
Philippe Dubois (1952) é professor no departamento de Cinema e Audiovisual da Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e membro sênior do Instituto Universitário da França (IUF).
Lúcia Ramos Monteiro é doutora em cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e pesquisadora de pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com financiamento da Fapesp.
Tags: Entrevista, filosofia da imagem, Pós-cinema, pós-fotografia