Entrevistas

Entrevista: a dupla Mar + Vin fala sobre liberdade e criatividade na fotografia de moda

Carollina Lauriano Publicado em: 14 de janeiro de 2022

 

Pietá, de Mar + Vin, 2020

Nem Marcos nem Kelvin estudaram fotografia: um é designer gráfico e o outro jornalista. Só que juntos formam a dupla Mar + Vin, um casal criativo que desconhece fronteiras quando se trata de imagens de beleza e moda. O duo está desafiando o status quo da cena da moda brasileira pela autenticidade, empurrando a inclusão na direção do “novo normal” e criando histórias com uma forte carga simbólica. Tudo isso alinhado aos modos de circulação de imagens no mundo contemporâneo, como a foto da Anitta que fizeram para a capa do single Girl from Rio e que viralizou como meme em 2020.

A curadora e pesquisadora da moda Carollina Lauriano conversou com Marcos Florentino e Kelvin Yule sobre a atual indústria da moda no Brasil, como o racismo ainda desempenha um papel importante em todos os aspectos da sociedade e da criatividade e como eles estão lutando para criar uma nova imagem mais livre.

 

Autorretrato, de Mar + Vin, 2021

Vocês dois são fotógrafos e se uniram para formar a dupla Mar + Vin. Pelo o que pesquisei, vocês não tiveram uma formação clássica em fotografia. Gostaria de saber como era a vida antes de se conhecerem? O que faziam antes da fotografia se tornar o trabalho de vocês?

Marcos Florentino: Eu sou natural do Piauí. Nasci e me criei numa vila que tinha uns 200 habitantes, no interior do estado. Mesmo assim, sempre fui muito ligado às artes em geral. Sempre gostei muito de experimentar novos meios de fazer arte, como a pintura e a escultura. Então acho que muito da minha bagagem – e da nossa estética – vem desses lugares, sabe? A fotografia sempre me fascinou, sempre tive um grande interesse por ela. Mas por conta da minha infância precária nunca tivemos câmera em casa. Só que eu sempre fui muito de estudar, mesmo quando eu não tinha as formas de fazer aquilo acontecer. Eu já tinha um conhecimento de fotografia, de estudar e de ler sobre, daí eu fui estudar design gráfico. Na faculdade eu finalmente tive aula de fotografia. Mas não acho que foi isso que me aproximou dela, como falei, já tinha essa paixão pela fotografia. Só que eu não sabia como ou por onde começar. Até que pedi demissão de um trabalho, acabei recebendo um valor e com ele comprei uma câmera. Comecei a clicar a partir daí e a publicar no Instagram. Meu trabalho meio que começou aí. Fazendo muito autorretrato, que eu acho que é um meio importante. É uma maneira de você expressar o que está sentindo sem precisar envolver outras pessoas. Só que chegou um momento em que eu senti necessidade de envolver outras pessoas e foi aí que a fotografia de moda passou a fazer sentido para mim. E quando eu estava começando a me enveredar nesse meio da moda foi que a gente meio que se trombou, né? E aí acabou juntando uma coisa com a outra.

Kelvin Yule: Bom, sou baiano, do litoral da Bahia, de uma cidade chamada Valença, que tem cerca de 90 mil habitantes. Eu morei lá até os meus 15 anos, depois, por causa do trabalho dos meus pais, que eram representantes comerciais, eles precisaram se mudar para a região do sudoeste da Bahia, em Jequié. Meu pai sempre teve um interesse pela fotografia, mas era uma fotografia mais de registro familiar, sabe? Eu comecei mesmo a fotografar com uma câmera simples da Samsung, daquelas digitais que estavam se popularizando na época. Primeiro eram coisas e objetos pequenos, descobrindo a lente macro. E depois isso foi evoluindo com o tempo, para fotografar pessoas também.

Quando eu fui morar em Jequié prestei vestibular para jornalismo na UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia). Resolvi seguir assim, mesmo sabendo que eu não queria necessariamente exercer a profissão. Mas eu imaginava que teria ali um conhecimento sobre coisas que poderiam agregar na minha vida. Em dado momento desisti do curso por realmente querer começar a viver da fotografia. Nessa época eu também estava começando a fazer projetos autorais de autorretrato. Eu criava para meio que conseguir me expressar em relação a alguns problemas, algumas questões que eu tinha. Foram coisas muito experimentais, mas foram importantes ali naquele momento e me trouxeram uma bagagem que eu venho utilizando em nosso trabalho até hoje. Mas desde os meus primeiros trabalhos confesso que não queria trabalhar com moda. Aliás, eu não sabia exatamente o que era moda. Desde os meus primeiros trabalhos, lá antes de formar o Mar+Vin, comecei a levantar discussões sobre como uma imagem de moda pode refletir questões etnico-raciais e sociais. E foi nesse momento que eu conheci o Marcos e decidimos nos mudar para São Paulo e expandir nosso repertório.

 

Então foi assim que surgiu o Mar+Vin?

Marcos: É que eu acho que primeiro vem o relacionamento, né? Somos um casal e depois nos tornamos uma dupla.

Kelvin: A gente se conheceu e desde o primeiro dia trabalhamos juntos. Nos encontramos porque ele estava fazendo um trabalho para a marca de uma amiga dele. Eu meio que entrei e já comecei a ajudar, foi uma coisa bem orgânica. Logo que cheguei em São Paulo, não tinha muitos trabalhos aqui e geralmente eu ia ajudar nos trabalhos que ele tinha. E quando comecei a pegar trabalhos também ele começou a ir e me ajudar. A gente sempre estava junto nos trabalhos e as pessoas já começaram a nos ver sempre juntos. Até que eu recebi um convite de uma produtora que queria lançar um projeto, uma grade de profissionais para apresentar para os clientes. Eles falaram que precisavam de fotógrafo de moda e meu nome foi indicado. Quando eu fui conversar com eles no dia, levei o Marcos comigo e ele também apresentou seu trabalho e foi quando a agência falou: “Vocês já pensaram em ser uma dupla?”. A gente se olhou, eu falei já e ele falou não. Ambos éramos meio relutantes com a ideia. Mas acabamos falando vamos! Vamos experimentar. Se não der certo, a gente usa como pseudônimo. Até porque, quando começamos, não achávamos que ia dar tão certo.

Marcos: E aí o que aconteceu foi que eles falaram que a gente precisava fazer um vídeo nosso fotografando para poder apresentar para os clientes, falando sobre o nosso trabalho. E aí pensamos: “se vamos ser fotógrafos de moda, temos que fazer um editorial de moda, né?”. Resolvemos fazer um editorial assinando como dupla para ser o primeiro, para ser aquele que ia nos lançar. E aí fotografamos a Isis Maria, ensaio que depois foi publicado no site Fashion Foward (FFW). Depois abrimos uma conta no Instagram e foi muito louco, porque quando divulgamos esse editorial, um dos primeiros e-mails que recebemos foi do Cleiton Carneiro, na época o diretor criativo da [editora] Condenást e de uma outra agência de Paris. Foi muito curioso observar que aquelas imagens rodaram bastante, com pessoas do mundo todo repostando, e nós nem tínhamos tanto seguidor naquela época. Então foi muito surpreendente para nós.

 

Talvez tamanha repercussão tenha acontecido por vocês estarem criando algo muito novo e ao mesmo tempo espontâneo.

Kelvin: E foi uma coisa que fizemos da forma que aprendemos a fotografar. Pegamos um carro e fomos por uma estrada olhando onde era interessante, tudo muito orgânico. Foi tudo construído num processo de experimentação e de muita liberdade que eu acho que a fotografia também tem, de você nem sempre planejar exatamente o que vai fazer. É enxergar ao redor e ver quais lugares te interessam e onde que pode funcionar uma foto, sabe? E esse trabalho foi muito assim. Do tipo, tinha uma van no local e pedimos para a van passar para subir um pó.

 

Esse editorial é de 2017. Como vocês observam o ambiente da moda reagindo a essa imagem que vocês estavam criando há quatro anos? E como vocês observam o comportamento da moda olhando para as imagens que criam hoje?

Marcos: Naquela época ninguém via pessoas negras em campanhas de joias. Raramente víamos pessoas negras em revista de noiva. Não víamos pessoas negras em capa de revista, enfim, quando abrimos o leque fica muito pior. O ambiente era muito hostil, mesmo.

Kelvin: Havia medo. Existia o medo de sair de um lugar confortável. Sair desse padrão eurocêntrico. Nas publicações, não existia coragem de enfrentar, porque havia medo de perder cliente, anunciante, várias questões. A gente teve que bater muito pé em algumas situações para fazer o que acreditava. Mas no nosso caso, acho que foi um processo que fomos construindo. Alcançando a liberdade de poder sugerir coisas. Não foi da noite para o dia, mas eu acho que o mercado de lá para cá tem passado por algumas mudanças significativas, especialmente no que diz respeito a novos profissionais.

 

Capa do single Girl from Rio, da cantora Anitta, 2020

E vocês saíram disso para a foto viral de 2020, que é a capa do single de Girl from Rio, da Anitta. Como foi e tem sido isso para vocês?

Marcos: Engraçado você falar da foto da Anitta, porque eu faço uma relação dessa foto com a Isis Maria. Acho que os processos foram muito parecidos.

Kelvin: A gente estava ali sem nenhum roteiro. Fomos olhando o que conseguiríamos fazer e no momento que vimos o ônibus pensamos: é isso! Engraçado, porque no vídeo ele não aparece tanto, não era um protagonista. Mas quando vimos o ônibus foi algo que chamou muita atenção e acabou que rolou aquela foto. Fizemos apenas cinco cliques e tínhamos a imagem.

Pensando nesse paralelo, entre os ensaios com a Isis Maria e a Anitta, ambos são muito espontâneos, não são imagens extremamente construídas no sentido de uma roteirização prévia. Acham que isso tenha sido um fator para despertar esse interesse pelo trabalho de vocês? Porque isso é uma quebra, quando pensamos numa imagem de moda muito ensimesmada.

Marcos: Acho que a gente surge como um outro olhar para as coisas. Nosso olhar é construído através da nossa bagagem de mundo, do que a gente aprende desde que somos criança e das coisas que nos fazem ter esse sentimento de afeto e de pertencimento.

 

Nesse sentido, eu queria saber um pouco como trazem essas questões sociais, políticas e econômicas para dentro do trabalho de vocês?

Marcos: Para nós, discutir isso fazia super sentido naquela época. Obviamente que continua fazendo sentido, mas naquele momento fazia muito mais sentido.

Kelvin: Bastava olhar ao nosso redor e perceber que nós éramos únicos nos sets que frequentávamos. Depois de um tempo conseguimos uma certa liberdade de poder opinar nisso e naquilo. E, sempre que era possível, íamos tentando incluir pessoas que a gente acredita, para fazer parte e ir entrando aos poucos no mercado. Hackear o sistema. Você entra e vai possibilitando que outras pessoas também entrem a partir da brecha que foi aberta. Isso faz todo o sentido, porque não adianta a gente estar lá sozinho. O nosso trabalho é uma construção coletiva. Mas nós somos muito cuidadosos, porque queremos falar de coisas importantes para além de uma imagem bonita apenas. Sabemos que uma imagem é interpretada muito mais rapidamente do que qualquer palavra.

Marcos: Hoje em dia tentamos inserir esses assuntos de forma quase natural, como há muito já deveriam ser tratados socialmente. Um exemplo: vamos fazer uma matéria que é só com meninos negros. Há cinco anos esse era o nosso sonho. Demorou muito tempo para conseguirmos fazer essas fotos, então de que forma podemos falar sobre outras coisas também? A matéria já vai ser linda, já vai ter um monte de menino lindo, com roupas incríveis. Então podemos falar sobre a afetividade entre homens, sejam eles um casal, sejam eles amigos. De que forma a gente consegue fazer o trabalho e também fazer a sociedade olhar para esse assunto não somente através de violência, mas como construção de liberdade? É por esse caminho que vamos pensando e tentando construir esses novos conceitos.

Kelvin: Eu acho que tem que ser um processo natural e confortável. Porque eu também acho que existe uma magia de você só fazer a imagem por si só. Às vezes eu não quero falar sobre demandas que não são só nossas, às vezes eu só quero fazer uma foto bonita de uma pessoa não branca. Nesse momento queremos libertar a imagem para que ela ganhe significado próprio no mundo, porque a carga simbólica já está lá. ///

 

Carollina Lauriano é curadora independente e pesquisadora, com formação em comunicação social e curso de extensão em pesquisa de arte, design e moda pela Central Saint Martins.

 

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