Entrevista: recém-eleita presidenta da Magnum, Cristina de Middel fala dos desafios à frente da famosa agência
Publicado em: 26 de julho de 2022A fotógrafa espanhola Cristina de Middel foi recentemente nomeada a nova presidenta da agência Magnum, um processo que se iniciou em 2017, quando foi indicada e aceita na agência. “Suponho que por falta de experiência eu disse sim e também porque eu gosto de desafios e acredito que eu tenho a energia para me dedicar à agência”, comenta de Middel.
Atualmente residindo no Brasil, mais especificamente no bairro do Pelourinho, em Salvador, de Middel conversou com a ZUM sobre as semelhanças e as diferenças entre as gerações de fotógrafos da agência que acaba de completar 75 anos e seus desafios atuais, que envolvem, entre outras coisas, questões como os deepfakes. Fora da Europa há seis anos, a fotógrafa conta sobre sua vivência na América Latina, seus projetos pessoais, os 10 anos do lançamento de Os Afronautas e seus desejos de fomentar a fotografia de Salvador e de realizar intercâmbios entre o Brasil e a Nigéria.
Como se deu o processo da sua nomeação à agência Magnum, até a sua consolidação como membra no último mês, no mesmo momento em que foi nomeada presidenta?
Cristina de Middel: O processo começou após uma conversa com [o fotógrafo] Alex Majoli, no Festival Lagos Photo, em que não estávamos de acordo sobre um tema e que eu lhe disse: “Mas é claro, é normal que você pense assim, pois você é um fotógrafo da Magnum”. Ele me disse que eu não entendia o que era a Magnum. A partir daí, passamos um tempo vendo o site da agência, conhecendo todos os fotógrafos e, na verdade, eu me dei conta de que a Magnum era muito mais do que eu pensava. Eu a tinha reduzido aos grandes detentores da verdade e da fotografia documental, quando na realidade tem vários membros que são muito mais experimentais do que eu mesma sou. Então, ele me instigou e falou que queria me indicar para a agência. Tive que criar um portfólio para me apresentar e, para minha surpresa, fui nominada em 2017. De lá para cá, estive muito ativa na agência, trazendo ideias, tentando entender o seu funcionamento, suas dinâmicas, sua história.
Após os dois anos de nominada, você precisa da aprovação de dois terços dos membros para que você se torne associada. Depois outros dois terços precisam aprovar para que você vire membro. Esse processo todo acontece num espaço de, no mínimo, quatro anos. No ano passado, foi a minha avaliação para me tornar membra e eu não fui aprovada por menos de um voto. Assim, tive que preparar de novo meu portfólio para a avaliação desse ano.
Foi uma alegria ter sido aprovada como membra no último dia 23 de junho e participar dos debates e reuniões. A partir daí, por uma serie de decisões, contextos e coincidências todos decidiram que eu deveria ser a presidenta. Eu estava com Covid, em casa, participando de tudo on-line. Suponho que por falta de experiência eu disse sim e também porque eu gosto de desafios e acredito que eu tenho a energia para me dedicar à agência. Pois quando se é presidenta, tem que se afastar um pouco dos seus próprios projetos para entrar mais na gestão da agência. Então, como não é para toda a vida, vou tentar fazer o melhor que eu posso nesse período.
O que você mudou na apresentação do seu portfólio após a sua não aprovação como membra no ano passado?
CM: Eu apresentei 70% do mesmo portfolio, mas também decidi que tinha uma parte da Magnum que não entendia bem o meu trabalho e achava que eu apenas fazia ficção, quando na realidade meu trabalho é 95% documental. O que faz mais barulho são esses 5% ficcional. Então, para provar a mim mesma e também aos demais membros, decidi ir ao Afeganistão. Fui junto com o Lorenzo Meloni, um fotógrafo de guerra, um dos poucos da agência que estão cobrindo conflitos atualmente. Fui para experimentar como seria nós dois, representando os extremos das linguagens fotográficas da Magnum, trabalhando juntos. Eu não fui com uma vaidade de mostrar a eles que estavam errados, mas para entender como trabalham esses fotógrafos, quais são suas prioridades e tentar me colocar no lugar do outro para que eu tivesse meus argumentos. Foi um projeto interessante, que funcionou muito bem, e estamos editando agora para lançarmos em formato de revista. Esse projeto foi a nova parte do meu portfólio.
E como vai ser essa revista?
CM: A revista vai ser chamar The Kabuler — como The New Yorker — e estamos trabalhando nela para lançarmos antes do final do ano. Ela vai ser inteiramente documental e vai ter todas as seções monográficas que encontramos numa revista normal de um país: gastronomia, esporte, moda, notícias locais e internacionais. O Afeganistão é um lugar que só é definido pelo conflito, então tivemos a ideia de mostrar o país sob outros ângulos. Apesar de a guerra estar acontecendo há tantos anos, tem muita vida também.
Qual seria o ponto comum entre os mais antigos fotógrafos da agência, que foi criada há 75 anos com o objetivo de fazer uma fotografia dita humanista, compromissada com a verdade e a nova geração como a sua, que usa da ficção e da ironia?
CM: O compromisso com a verdade ainda está presente. Eu prefiro dizer realidade ao invés de verdade, pois verdade é um juízo de valor. A realidade uma câmera pode capturar, mas a verdade, que é uma ideia, não. Na Magnum há um compromisso com a realidade. No meu caso, a ficção é para ilustrar a realidade, não para modificá-la. Nesse sentido a Magnum sempre teve um compromisso em documentar o mundo da maneira mais séria e respeitosa possível, sobretudo, priorizando a linguagem de cada fotógrafo.
Se pensarmos nessas questões, Eugene Smith, por exemplo, não seria considerado um fotógrafo documental na sua época. E ele foi um dos grandes fotógrafos documentais que nos ajudou a entender o mundo e os Estados Unidos nos anos 50 e 60. Mas as suas fotos muitas vezes eram encenadas e todos sabemos disso. As encenações muitas vezes servem para explicar a realidade muito melhor do que capturar o instante de uma maneira neutra. Tudo depende da motivação e da intenção de cada fotógrafo. Você pode fazer uma foto para manipular e pode usar essa mesma foto para ilustrar uma realidade. O ponto em comum é o compromisso com documentar o mundo. Queremos um registro do que está acontecendo, para que as coisas não sejam esquecidas, mas também não queremos criar uma enciclopédia histórica. Na Magnum, os fotógrafos não são apenas tecnicamente bons, que usam a imagem como um dado. Eles desenvolvem uma linguagem pessoal, uma opinião que está sempre documentada e a partir disso fazem suas fotos. Esse equilíbrio entre explicar o mundo e explicar com nossa própria voz é o que se negocia internamente.
Há pouco tempo, um fotógrafo da Magnum, Jonas Bendiksen, lançou o livro The Book of Veles, que coloca uma lupa nas questões de deepfake e uso de inteligência artificial na criação de imagens. Como a Magnum percebe e está envolvida nessas questões?
CM: Acredito que o trabalho do Jonas foi magistral, pois foi como um cavalo de Tróia, que não criticou ninguém, apenas nos fez abrir os olhos para perceber que, mesmo as pessoas mais instruídas no mundo do documental puro podem cair nas armadilhas do deepfake. Ele facilitou que enxergássemos as possibilidades dessa tecnologia e os riscos que corremos. Na Magnum estamos fazendo muitas ações nesse sentido, desde a revisão de arquivos até uma colaboração com a Adobe para desenvolver uma tecnologia de identificação de deepfake. Tudo está no início ainda. Mesmo a Magnum tendo muita repercussão em tudo que faz, nós não somos tão grandes e não podemos corrigir todos os problemas do mundo. Nós sabemos de onde vem nossas imagens, pois são de nossos fotógrafos, mas é difícil controlar o uso que outras mídias dão às nossas fotos. Por isso estamos desenvolvendo parcerias nesse sentido.
A Magnum, historicamente, contribuiu para a sedimentação da representação imagética de diversos grupos da sociedade. O seu projeto Gentlemen’s club, por exemplo, ao mostrar o outro lado da prostituição (os clientes) apresenta uma nova narrativa a já conhecida representação das mulheres em situação de prostituição. Ainda hoje, sendo uma agência majoritariamente formada por homens, para além de incluir mais vozes de mulheres, existe uma intenção de revisar e reavaliar a maneira de retratar as mulheres?
CM: Desde que eu entrei na agência temos cada vez mais mulheres, mulheres jovens que tiveram sua própria experiência para virarem fotógrafas profissionais e sofreram muitas das situações que devem mudar. Ou seja: não são dogmatismos de pessoas que falam que uma coisa deve mudar porque deve mudar, mas que falam pela experiência de terem passado por isso. Além disso, os novos fotógrafos da Magnum sabem sobre a história do patriarcado.
Qualquer jornal e qualquer mídia de massa tem sua responsabilidade, é uma questão de demanda e de mercado. Cada vez existe mais audiência feminina que não está de acordo com a versão oficial das narrativas. Todo o mercado tem que se adaptar a isso. A Magnum avança no mesmo ritmo que a sociedade. Mesmo entrando cada vez mais mulheres, precisamos de muitos anos para termos uma igualdade. Temos os mesmos problemas que qualquer empresa que tem uma tradição, uma história e seus estatutos. Mas essa é a prioridade número um da agência, mesmo antes de eu entrar, e a minha entrada é uma prova disso.
Qual será o seu maior desafio sendo presidenta de uma agência tradicional, sendo você mesma uma pessoa tão inovadora e criativa?
CM: Eu acredito que vai ser encontrar o tempo, a calma e a posição neutra sem me deixar levar pelas emoções. Espero poder tomar as decisões com a cabeça fria e acredito, honestamente, que esse é o meu maior desafio. A Magnum não é uma agência tão tradicional como se pensa, claro que ela tem um legado e uma história que se deve respeitar, mas não é uma agência do passado. Os trabalhos atuais dos fotógrafos e as últimas decisões tomadas mostram essas vozes contemporâneas. Não me sinto com esse peso em ter que me adaptar à agência, porque entrei sendo quem sou e não preciso fingir ser uma pessoa mais séria. Eu me comunico bem usando a ironia, o humor e trabalhando muito, escutando os demais. Então vou fazer o mesmo que venho fazendo, mas agora terei o coletivo como prioridade. A missão da Magnum, como um todo, é fazer com que os fotógrafos continuem trabalhando, tenham a possibilidade de desenvolver seus projetos pessoais e que possam viver da fotografia.
Nesses últimos anos, quando começou a sua história com a Magnum, você estava vivendo entre México e Brasil, que são países periféricos. Sendo espanhola, você acha que sua visão de mundo mudou nesse período?
CM: Essa vivência sem dúvida me influenciou, pois vivendo no México e no Brasil você entende a periferia de outra maneira. Apesar de ser espanhola, eu nunca vivi nas capitais, eu sempre me considerei um pouco periférica por ter crescido em cidades pequenas. Meu trabalho como fotógrafa nunca foi em grandes coletivos ou nas capitais em grandes jornais. Eu cresci na imprensa local, em veículos pequenos que aconteciam às margens do mainstream.
Eu venho insistindo na Magnum, desde que eu entrei, para incluir mais e mais vozes que não venham das grandes capitais e de lugares que tomam as decisões. Ou seja: de encontrar fotógrafos que trabalhem no Brasil, no México, na Turquia, em diversos países da África. É preciso que a agência inclua essas vozes, senão ficamos para trás. Para mim essa vai ser uma das prioridades: tentar sair desse eurocentrismo e ocidentalismo do primeiro mundo que acha que tem todos os problemas e soluções.
Mais do que me influenciar, essa vivência me fez encontrar lugares em que consigo trabalhar. Antes do México e do Brasil, eu estava em Londres por três anos e não fiz uma única foto, nenhum projeto. É um tipo de lugar que não me inspira a nada. A Espanha me inspira muito porque sou espanhola, tenho muitas ideias e uma visão irônica e dura, pois considero que posso falar do meu país. Mas com os outros países da Europa não tenho nada a dizer, não me sai nada. Essa posição de ser estrangeira, de fazer um esforço extra para entender a realidade que te rodeia, é o tipo de lugar que me estimula muito a trabalhar, pois se converte em algo que tenho que investigar. E essa posição de fazer perguntas é a ideal para fotografar, muito mais do que a de compartilhar as suas verdades. Meus projetos são quase sempre sobre compartilhar minhas perguntas. Se estou em lugares como o Brasil ou o México, estou cheia de perguntas e isso é muito estimulante.
Agora que você está instalada no Pelourinho, quais são os seus projetos no Brasil nesse momento?
CM: Com todos os debates sobre legitimidade, não estou fazendo as coisas de outra maneira. Morei no México por cinco anos antes de fazer um projeto no país. Já fiz um projeto no Brasil [o livro Sharkification], que olhando para ele agora considero superficial e não o faria dessa forma. Claro que isso me permitiu conhecer meu marido e por isso estou agradecida, mas agora se tivesse que falar da realidade das favelas não faria desse jeito. Espero em breve encontrar um tema em que possa contribuir, pois para fazer ruído, prefiro estar calada.
De qualquer jeito, na casa do Pelourinho, a ideia é desenvolver um pequeno centro de fotografia. Como estou vinculada a festivais africanos como o Lagos Photo, gostaria de fazer uma residência artística de intercâmbio recebendo fotógrafos nigerianos aqui e podendo enviar fotógrafos baianos para lá. Queria solidificar essa ponte com a África que me parece muito evidente. Gostaria de incluir mais Salvador no mapa da fotografia do Brasil. A ideia é ter um lugar em que se possa consumir fotografia, ver livros, participar de palestras. Estão comigo nesse projeto o Bruno Morais e o casal Paloma Peruna e Murilo Dias, ambos muito envolvidos na comunidade fotográfica de Salvador. Queremos que seja um espaço de encontro, com uma pequena galeria, com minha biblioteca de fotolivros para consulta e um laboratório PB.
Conte um pouco sobre a sua editora This Book is True e sua relação com fotolivros no momento.
CM: Estou mais tranquila com lançamentos de livros. Estou organizando minha vida pessoal, construindo a casa de Salvador, fechando a casa do México. Fazer um livro é uma dedicação de muitas horas e não tive esse tempo recentemente. Mas tenho quatro livros para lançar, dois já estão com o designer. O Journey to the center, sobre a viagem migratória dos mexicanos, em que uso o livro de Júlio Verne Viagem ao centro da terra para apresentar os migrantes como heróis, vai ser publicado com a RM e a Textuel no ano que vem. O Gentlemen’s club, que estou aqui em Los Angeles terminando de fotografar, vou lançar uma pequena edição em setembro com a This book is True para acompanhar as exposições que vão acontecer no ICP e em Berlim. Acho que Boa Noite, Povo [projeto realizado durante a pandemia com Bruno Morais, com textos escritos por Fabiano Lemos, professor de filosofia da UERJ] vai ser lançado também com a This Book is True. Com a editora às vezes temos três projetos ao mesmo tempo, outras passa um ano e não avançamos com nenhum. Na Bahia aprendi a lidar com isso: “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”.
Porque você publicou mais duas edições do seu livro Os Afronautas?
CM: Se eu tivesse energia teria feito mais uma, pois esse ano é o seu 10º aniversário. Eu faço porque sempre se esgota, as pessoas me pedem e continuo expondo. Desde 2012, todo ano faço entre duas e quatro exposições do Os Afronautas em algum lugar do mundo. A série já foi exposta muito mais do que 30 vezes. Então, como o livro está pronto, eu produzo mais, apenas com poucas variações em cada edição.
Do que se trata o Vist Project, um outro projeto que você está envolvida?
CM: Esse é um projeto que tive a sorte de estar envolvida desde o princípio, graças ao Claudi Carreras, com uma equipe muito profissional que tem a missão de falar sobre a fotografia latino-americana de todo tipo, através de temáticas que unem os fotógrafos dessa região: drogas, gênero, meio-ambiente.
Estamos nesse projeto para compartilhar experiências e colocá-las a serviço de todos que estão começando na fotografia ou que precisam de um pouco de visibilidade e de articulação. Damos oportunidade não só de divulgação, mas de participação em grandes projetos. Eu sempre penso que teria sido muito bom quando eu estava começando que tivessem plataformas como essa.
Quando eu estava em Alicante só podia ver exposições quando ia à Madrid ou por fotos em redes sociais. O objetivo final é que esse projeto ajude a fotografia latino-americana a estar no centro e deixe de falar de um lugar periférico.
Qual projeto você ainda não fez e que você sonha em fazer?
CM: Eu quero muito viajar pelo Brasil. Fazer uma longa road trip dirigindo pelo país durante três ou quatro meses. ///
Cristina de Middel (1975) é uma fotógrafa e artista documental espanhola que vive e trabalha entre o México e o Brasil. É membra do conselho da Deutsche Börse Photography Foundation e da Vist Projects. Em 2017 recebeu o Prêmio Nacional da Fotografia (Espanha) e passou a fazer parte da agência Magnum Photos, da qual é presidenta desde 2022.
Marcella Marer é doutoranda em Artes e Ciências Sociais na UZH, Zurique e mestre em Artes e Linguagens pela EHESS, Paris. Atua como pesquisadora e curadora. Colaborou com os festivais FotoRIO, Paraty em Foco, Valongo e ZUM.
Tags: agência Magnum, fotografia contemporânea, fotojornalismo, fotolivros