Entrevistas

Sobre mulheres e fotografia: uma conversa com Nair Benedicto

Erika Zerwes & Nair Benedicto Publicado em: 9 de outubro de 2018

Nair Benedicto, Mulheres trabalhando no sisal , Bahia, 1983 © Nair Benedicto/N Imagens

A atuação da fotógrafa Nair Benedicto (1940) nunca esteve restrita somente aos limites do seu importante trabalho como jornalista na cobertura dos principais eventos políticos do Brasil da década de 1970 até hoje.

“Não importa se estou fotografando índio, se estou fotografando operário, ou se estou fotografando puta. O que importa é o que eu penso, como eu me coloco como mulher. Tem gente que acha que sou politizada demais. Dizem que politizo tudo. Mas não sou eu que politizo, a vida que é politizada”, declara Nair em conversa com a historiadora Erika Zerwes.

Combativa na reivindicação dos direitos trabalhistas da sua categoria profissional, também marcou seu nome na história da fotografia brasileira recente como fundadora da F4, uma das primeiras agências fotográficas brasileiras com modelo de cooperativa, criada em 1979 ao lado de Juca Martins, Ricardo Malta e Delfim Martins, bem como o núcleo Nafoto, voltado a eventos para o estudo e debate da fotografia.

 

Você esteve presa entre 1969 e 1970 com outras opositoras do regime militar, entre elas a ex-presidente Dilma Rousseff. Como foi esse período inicial de sua vida de fotógrafa?

Nair Benedicto: Eu já tinha a ideia de trabalhar com imagem, mas não exatamente fotografia. Pensava mais na área de vídeo, em fazer pequenos programas sobre temas que os grandes jornais e revistas não cobriam, mas não consegui estágio na área.

Eu já tinha sido presa e solta. O governo tinha criado a exigência — ilegal — de um “atestado de idoneidade moral” para trabalhar na televisão. Na prática era uma lista negra, uma forma de impedir que opositores do regime trabalhassem na imprensa. Como meu processo ainda tramitava, eu não tinha o atestado.

Fiquei uns três, quatro meses, não mais do que isso. Um dia cheguei pra trabalhar e não me deixaram entrar, até que eu entregasse o atestado de idoneidade moral.

Optei pela fotografia por necessidade. Naquela época, final da década de 1960 e início de 1970, não era possível trabalhar por conta própria com vídeo. Já a fotografia dependia apenas de eu mesma suportar o peso do equipamento.

Era uma carreira comum para mulheres?

NB: Não era comum. Eu não era a única, mas o campo era dos homens. Era uma profissão masculina.

O olhar da mulher é diferente porque nossa vida é diferente. Quando cobrimos um assunto, notamos alguns detalhes que os homens às vezes não notam. Nas greves do ABC paulista, entre 1978 e 1981, por exemplo, fiz a foto de uma mulher amamentando uma criança na porta de uma fábrica. Acho que o olhar feminino obrigatoriamente traz um universo que não é o universo masculino, é mais amplo, da vida mesmo. E quando a gente fotografa uma mulher, podemos nos enxergar na outra. Eu vejo isso.

Nair Benedicto, Índios Araras, Altamira (PA), 1985 © Nair Benedicto/N Imagens

Como foi trabalhar no projeto As Donas da bola (2014) com outras onze fotógrafas?

NB: A ideia era explorar coletivamente a cobertura de futebol, um tema tipicamente masculino, por ocasião da Copa do Mundo do Brasil. Eram onze fotógrafas, como um time. Procuramos diversificar as imagens: tem a mulher índia jogando futebol, feita por mim, a mulher jogando futebol na lama, as mulheres bonitas do Rio de Janeiro jogando “altinho”, as freiras… Essa diversidade era algo novo, ninguém tinha feito.

No fundo, voltamos à questão da mulher na fotografia. A Marlene Bergamo, reconhecida como excelente fotógrafa, por exemplo, nunca havia participado da cobertura de uma Copa. A mulher tem que disputar seu lugar em campos considerados masculinos e, quando entra, pra jogar ou fotografar, chega a bons resultados.

Você participou da criação, em 1991, do Núcleo dos Amigos da Fotografia (Nafoto), que reuniu profissionais em torno da prática e do pensamento fotográfico. Como foi essa experiência?

NB: O Nafoto foi uma iniciativa de Stefania Bril, Rosely Nakagawa, Juvenal Pereira, Isabel Amado, Rubens Fernandes Junior e Fausto Chermont. Realizamos, de 1991 a 2011, oito edições do Mês Internacional da Fotografia, um seminário para discutir as várias vertentes da fotografia nas áreas da educação, novas tecnologias, história e publicação. Além da importância dos eventos, com exposições e convidados circulando entre várias capitais, o Nafoto abriu espaço em diversos museus e galerias importantes que até então não aceitavam fotografia. Também foi muito importante para a divulgação da fotografia latino-americana, além da norte-americana e da europeia.

A primeira edição foi uma ampla exposição que cobriu a produção brasileira para além do circuito Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Também trouxe pela primeira vez não só fotógrafos como também referências de áreas afins, como Josef Koudelka, Graciela Iturbide, Mark Sealy, Douglas Ford Rea, Nathan Lyons, Pablo Ortiz Monasterio, Martín Chambi, Luis Gonzalez Palma e Lucía Chiriboga, entre outros. Em 2011, comemorando vinte anos de atividades, fizemos uma exposição retrospectiva com o resgate de entrevistas, vídeos e edições de todos os convidados.

Fizemos um trabalho incrível, trouxemos muita gente, trabalhamos muito, reunimos várias mulheres de peso, mas o Núcleo não recebe o reconhecimento devido.  Então acho que a dificuldade de reconhecer que as mulheres podem ir até onde quiserem é ainda muito grande.

Nair Benedicto, Amazônia, cabeleireiro funcionando dentro de um bar, Guritaí (PA), 1985 © Nair Benedicto/N Imagens

Você vem fotografando regularmente as passeatas do Dia Internacional das Mulheres em São Paulo há muitos anos. Você percebe alguma mudança no movimento feminista ao longo desse tempo?

NB: Acho que se houver uma mudança nesse mundo, as mulheres negras e as índias virão à frente das mulheres brancas. Atualmente, na passeata do Dia Internacional das Mulheres, por exemplo, na frente vêm as mulheres negras e as índias. Há uns dez anos, os jornais e revistas me pediam para mandar fotos de mulheres negras na passeata, e eu conseguia fazer apenas uma ou duas. Era sempre a mesma foto (eu me lembro dela de cor, eram duas mulheres lindas conversando em cima de um carro de som). Hoje você precisa procurar as brancas. É uma mudança fantástica. Elas se mobilizaram, cresceram, e não só numericamente.  A questão das cotas nas universidades foi, sem dúvida, muito importante. E é um caminho sem volta, espero.

Uma coisa visível nesses anos todos de cobertura das passeatas é a demanda pelo direito ao próprio corpo, o direito de a mulher fazer o que quiser e gozar o corpo como bem entender porque é seu. O direito ao aborto está dentro disso, mas é mais amplo.

É fácil falar, “o corpo é meu e faço o que quiser”. Fazer é mais complicado. E é maravilhoso encontrar isso na imagem, pessoas que estão desafiando a hipocrisia e a discriminação. Quando me perguntam se sou feminista, respondo que é impossível não ser.

Nair Benedicto, Tesão no Forró do Mário Zan, São Paulo, 1978 © Nair Benedicto/N Imagens

Essa noção do corpo, situado entre o gozo e o controle, lembra sua famosa fotografia em um forró em São Paulo, em 1978, Tesão no forró do Mário Zan. Ali a mulher é o centro da foto. Como essa foto aconteceu?

NB: Entre final dos anos 1970 e início dos anos 1980, eu comecei um trabalho por conta própria sobre segregação e discriminação contra nordestinos em São Paulo. Descobri que os imigrantes nordestinos iam à Praça da Árvore receber sua correspondência. Então fui e fotografei, mas eu queria também fotografar alguma coisa diferente. Perguntei para quem estava lá o que eles faziam para se divertir, e me responderam que iam ao forró. O mais conhecido era o forró do Mário Zan. Foi assim que cheguei lá.

Lembro que eu estava cheia de dúvidas com o material que tinha feito e fui mostrar para a Claudia Andujar, me desculpando porque não dava para fazer a foto sem flash, essas coisas. Ela me disse que eu não tinha motivo para pedir desculpas, que eu tinha usado o flash perfeitamente e que o mais importante era que eu havia feito a foto!

Existia alguma troca de informações e experiências com outras fotógrafas nessa época?

NB: Eu tinha muito pouca troca com quem quer que fosse. Mas a Claudia foi sempre uma referência, porque naquele período era muito raro encontrar fotógrafos com visão política. A Claudia tem uma postura política. E eu gostava muito do trabalho dela também.

Por trás da Claudia formal, tem uma pessoa muito humana. Gosto muito da Claudia, tenho uma admiração profunda por ela, por ela ter essa coisa da luta, da briga. Mas também por ela ter feito o esforço de ajudar os fotógrafos mais jovens, o que ninguém fazia na época. Não me lembro de nenhum homem que tivesse essa preocupação. Ela tinha. Tanto que a gente quase trabalhou juntas. Mas eu estava naquele momento muito envolvida com o trabalho dos operários e da cidade. Com a Maureen [Bisilliat] eu também cruzava. Mas ela e a Claudia já estavam em um patamar mais conhecido.

Nair Benedicto, Louvação a Iemanjá, Praia Grande (SP), 1978 © Nair Benedicto/N Imagens

Você busca propositadamente fotografar pautas e questões relacionadas à mulher?

NB: Hoje tem mulher em todo canto, cada vez mais. Nas manifestações elas são as mais ousadas. É tudo mais ousado. Elas não são dadas a essa hipocrisia. Acho que as mulheres pensam, “bom, já cheguei até aqui, agora é botar a boca no trombone”.

Um dos pontos altos da retrospectiva Por debaixo do pano (Casa da Imagem, 2015-2017) é a fotografia de Aurora, estudante e militante de esquerda morta sob tortura. Você escolheu representar praticamente todo o período da ditadura com uma foto só, e de uma mulher. Como essa decisão foi tomada?

NB: A Aurora foi a primeira presa política morta pela chamada “coroa-de-cristo”, que era uma coroa mesmo, com espinho, que eles iam apertando até matar a vítima. Quando ela foi pega, estava machucada, mas eles acabaram de matá-la com a “coroa-de-cristo”.

Teve um rapaz que parou nessa sala. Ele conseguiu que o pessoal desse o meu telefone, ligou pra mim e pediu para me ver. Ele disse que precisava me ver, que ficaria lá até a hora que eu pudesse ir, e eu fui. Era bem novo, por volta de trinta anos. Quando ele me viu, disse “então é verdade, você existe. Eu nunca imaginei que isso tivesse acontecido no Brasil. Você foi torturada! Deixa eu ver você! E essa menina, ela existe? Quem é ela, quem é essa Aurora?” Ele duvidou de toda aquela sala. Mas tinha outras imagens também, como a passeata do Gringo [líder sindical morto pela ditadura]. A escolha foi mais no sentido de não chocar. Ele não estava morto, estava lá na foto que a mulher dele carrega. Ela vem na frente da procissão.

Nair Benedicto, Cocaína, centro de São Paulo , 1991 © Nair Benedicto/N Imagens

As fotos mais ousadas costumam ser de fotógrafas mulheres?

NB: Não sei se eu diria isso. Seria preciso definir que tipo de ousadia é essa. Não quero ser ousada do ponto de vista de chocar as pessoas. Eu quero que minha foto seja ousada no sentido de dizer “veja bem o que você está deixando de perceber”. Muitas pessoas fazem isso. Vão à zona, pegam uma puta, fazem uma puta. Muitas vezes pedem para elas fazerem coisas, e muitas vezes elas fazem. Acho isso errado, para mim isso não é ousadia.

Foto ousada pra mim é aquela que consegue dizer coisas, com humor inclusive. O Brasil tem muitas fotógrafas maravilhosas. Eu acho que fazer política não é defender um partido, é defender um modo de vida, uma forma de ver a mulher, uma forma de ser mulher. Não importa se estou fotografando índio, se estou fotografando operário, ou se estou fotografando puta. O que importa é o que eu penso, como eu me coloco como mulher. Então eu acho que ainda fica um pouco restrito, nesse aspecto. Tem gente que acha que sou politizada demais. Dizem que politizo tudo. Mas não sou eu que politizo, a vida que é politizada. ///

 

Nair Benedicto (1940) é fotógrafa formada em Rádio e Televisão pela ECA/USP. Foi fundadora da Agência F4 (1979), com Juca Martins, Delfim Martins e Ricardo Malta e do Núcleo dos Amigos da Fotografia – Nafoto (1991), com Stefania Bril, Rosely Nakagawa, Juvenal Pereira, Isabel Amado, Rubens Fernandes Junior e Fausto Chermont. Entre suas premiações, destaca-se o 11º Prêmio Abril de Fotojornalismo, em 1985. É autora dos livros A Greve do ABC (1980), A Questão do Menor (1980), em parceria com Juca Martins, e As melhores fotos de Nair Benedicto (1988), entre outros.

Erika Zerwes é doutora em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP e pós-doutora pelo Museu de Arte Contemporânea da USP.

 

 

 

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