Ensaios

Voltaire Fraga e a baianidade

Elson de Assis Rabelo Publicado em: 11 de maio de 2023

Vista de São Félix a partir de Cachoeira, Bahia, de Voltaire Fraga. Publicada no jornal O Malho, 20 de jul. 1939. Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

O gosto de passado

Num flagrante, a baiana vendedora de acarajé comercializa no Porto da Barra, famosa praia turística de Salvador, com o edifício Oceania ao fundo, numa tarde dos anos 1940 ou 1950. Como ela, diversas outras mulheres são fotografadas trabalhando em suas bancas pela cidade, assim como os pescadores no bairro da Ribeira e as lavadeiras do Dique do Tororó. Em outras circunstâncias específicas, há fotos que mostram o vigor das festas populares que, desde o período colonial, ocupam ruas, largos e praias da capital baiana.

Nessas imagens produzidas pelo fotógrafo Voltaire Fraga, a visualidade do recorte étnico-racial, de grupos negros habitantes da Bahia, salta aos olhos, atualizando imaginários especificamente sobre Salvador enquanto cidade com maior contingente demográfico afrodescendente da diáspora negra. As fotos ilustram também uma Bahia nostálgica, ainda ambientada arquitetonicamente nos séculos anteriores, especialmente com edifícios do período do barroco, e com poucas referências do século 20.

Nos últimos anos, essas fotografias têm voltado à cena expositiva em diversos espaços do país. Tomadas nos anos 1940 e 1950, elas mostram uma Bahia predominantemente litorânea, habitada por personagens consagrados pela literatura de Jorge Amado e pelas canções de Dorival Caymmi – personagens e artistas que foram contemporâneos ao fotógrafo.

Entretanto, sabemos que todas as práticas expositivas funcionam a partir de seleções num universo de criação que se encontra materializado naquilo que se arquivou. Especialmente no caso de Voltaire Fraga, essas seleções se dão num limitado conjunto de cerca de 2.300 fotogramas, em sua maior parte inéditos, que resistiram à inundação que pôs a perder em torno de 9.000 outros fotogramas, quando o fotógrafo morava no bairro soteropolitano dos Aflitos, em 1981.

Tais imagens remanescentes apresentam, entretanto, uma diversidade temática que aponta para a amplitude dos interesses e agenciamentos da prática fotográfica de Fraga, e, por consequência, para estratos de tempo da cidade de Salvador que podem ser entendidos muito além de sua visualização atual. Entre esses tempos, o inequívoco registro das transformações urbanas, dos mundos do trabalho e das sociabilidades e festividades dos grupos afrodescendentes.

Para além do acervo familiar, a ocorrência das imagens de autoria de Voltaire em diversas instituições permite entender a demanda por sua fotografia por parte de revistas e jornais, empresas públicas e privadas, igrejas e conventos, indicando a riqueza de sua trajetória e a definição de um olhar que se foi especializando nas temáticas que despertavam o interesse de artistas e intelectuais naquele momento, como a temática das relações étnico-raciais.

Mas quem foi Voltaire Fraga? Baiano de Nazaré, ele nasceu em 1912, tendo recebido o nome de Antônio Fraga e, já adulto, conseguido mudar para Voltaire, em virtude de sua admiração pelo filósofo francês. Seu avô foi o também fotógrafo Joaquim Fraga, do qual pouca coisa se sabe, além do fato de que fotografou paisagens no final do século 19 e de quem o neto provavelmente herdou técnicas e talvez até os primeiros equipamentos.

Diz-se que Voltaire era autodidata, e que cedo compreendeu as formas e estratégias de programação visual das grandes cidades, por ter vendido anúncios na juventude e logo começado a fotografar e ver suas imagens circulando na imprensa ilustrada, no final dos anos 1920. Em pouco tempo, ele viria a se tornar um dos principais observadores a captar as contradições e tensões urbanas da cidade, na primeira metade do século 20.

Um olhar em expansão no coração da baianidade

Nos anos 1930, Voltaire se corresponde com periódicos ilustrados como a revista O Cruzeiro e o jornal O Malho. Junto a este jornal, nas edições de julho e de agosto de 1939, Fraga chegou a ser um dos únicos fotógrafos baianos a participar de um concurso fotográfico, com fotos das cidades de São Félix e Cachoeira, no Recôncavo baiano, importantes cidades históricas com população predominantemente negra e que também eram entrepostos que comercializavam com Salvador, num circuito de víveres, tripulantes, passageiros e embarcações a vela que movimentavam a Baía de Todos os Santos (Figura 1).

Nessa época também, o fotógrafo começa a trabalhar para a prefeitura de Salvador, numa experiência inédita de produção e gestão de arquivo de imagens fotográficas, preconizando seu uso para o planejamento da cidade – especialmente a partir da Semana de Urbanismo ocorrida em 1935.

Com efeito, nos anos 1940, a cidade de Salvador foi objeto da franca iniciativa de zoneamento e de transformações dirigidas pelo Estado. Em 1942, é criado o Escritório do Planejamento Urbano da Cidade de Salvador (o EPUCS), sob direção do engenheiro santamarense Mário Leal Ferreira, e caracterizado pelos estudos sistemáticos sobre a geomorfologia e as formas de ocupação, os novos meios de transportes e deslocamentos, como os automóveis, as dinâmicas de trabalho e lazer no cotidiano da cidade e de seus habitantes. Voltaire trabalha para o EPUCS, fotografando os vales onde seriam abertas grandes avenidas, os morros da urbe para onde a população negra era paulatinamente alijada e as zonas periféricas com aspectos rurais marcadas pelo legado das fazendas do século 19.

Por outro lado, o legado arquitetônico em pedra e cal privilegiado pelas nascentes políticas de patrimonialização era marcado, em Salvador, pela profunda diferença entre uma área comercial, de feiras, armazéns e trapiches, chamada de Cidade Baixa, e uma camada urbana de prédios administrativos, edifícios eclesiásticos, sobrados decadentes das camadas mais pobres do Pelourinho e solares da classe abastada da Vitória – o que foi chamado historicamente de Cidade Alta.

Vista de Salvador, de Voltaire Fraga, década de 1940. Arquivo Histórico Municipal de Salvador.

Nesse contexto, simultaneamente, Voltaire foi requisitado para trabalhar para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1937. A imagem fotográfica servia a diagnósticos de conservação patrimonial, com vistas aos preparativos para adequar os espaços para o turismo, e hoje resta como índice das escolhas técnicas e políticas sobre o que seria mantido e preservado oficialmente para a elaboração de uma baianidade que conservava parte de seu passado arquitetônico apesar das transformações.

Foi provavelmente através de uma relação mediada por José Valladares, diretor do Museu do Estado da Bahia, atual Museu de Arte da Bahia, que Voltaire se viu participando de formas de circulação ainda pouco comuns para os fotógrafos baianos daquele momento: o circuito das instituições oficiais e de ilustração de trabalhos científicos, como os estudos do historiador da arte estadunidense Robert Smith, que visitou o Brasil em sua pesquisa sobre o legado português na arquitetura barroca de diferentes espaços do país.

Fraga trabalha para essas instituições, documentando as muitas camadas de temporalidade histórica que constituíam a cidade e que se decantavam no patrimônio construído e na cultura material, para os quais ele desenvolveu uma sensibilidade particular. As coleções museológicas do próprio Museu do Estado, assim como vários edifícios de referência para o catolicismo soteropolitano, foram sistematicamente fotografados: o Convento de Santa Teresa, que se tornaria o Museu de Arte Sacra, após uma reforma dirigida pela então Diretoria do Patrimônio, em 1959, e após a gestão do espaço ter sido assumida pela Universidade Federal da Bahia; a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, cuja estrutura e ornamentos foram analisados com predileção por Robert Smith, com o apoio das imagens; o Convento de São Francisco; a Igreja do Bonfim – esta especialmente nas circunstâncias da célebre festividade da Lavagem do Bonfim.

As fotos de Voltaire também ilustraram publicações, como o livro Cultura Brasileira, lançado em 1943, de autoria do intelectual e editor Fernando Azevedo, que fora vertido ao inglês e, no contexto da política, procurava sistematizar para públicos estrangeiros os discursos formadores do Brasil, em sintonia com a construção conceitual da democracia racial, que estava na obra de intelectuais como Gilberto Freyre e Donald Pierson, e que tinham grande apelo político naqueles anos. As fotos de Voltaire no livro ilustram a arquitetura de Salvador, o fluxo de bondes, automóveis e passageiros nas praças do Centro Histórico.

Nos anos 1950, um ensaio fotográfico de Voltaire ilustra Festa de Egun, de José Lima, obra em folclore que destaca a relação entre a culinária ligada aos cultos de Candomblé e o trabalho de venda das baianas nas feiras e espaços públicos. Décadas depois, boa parte dessas imagens acabaram por ser arquivadas no Museu de Arte da Bahia, reiterando um esforço que data da gestão de Valladares e que procurava trazer a esse espaço museológico mais referências das expressões culturais afrobrasileiras.

Nessas imagens, ressalta a dignidade do ofício de baiana do acarajé, que desde o período da escravidão, tornou-se uma das formas de emancipação das mulheres negras, através da produção e comercialização de comida nas ruas, como fonte de renda, contrariando papeis e atribuições de gênero que as restringissem ao ambiente doméstico. Apesar de ainda nos restar o desafio de as identificar por seus nomes, a fim de não reduzir suas trajetórias ao estereótipo posteriormente criado pelo cinema e pelo turismo, as baianas foram fotografadas carregando banquinhos e bacias pelas ruas ou sentadas cozinhando e servindo o público, portando sua indumentária e adornos que remetem às origens rituais de vários desses pratos, como o acarajé, inicialmente uma oferenda votiva no Candomblé e um alimento coletivo.

Baiana de acarajé atendendo a cliente, de Voltaire Fraga, Coleção do Museu de Arte da Bahia. A foto também ilustra o livro Festa de Egun, de José Lima, déca de 1950.

Outra série de fotos permite visualizar o recorte étnico-racial nas imagens de Fraga: a festividade cívica do 2 de Julho, em que se comemora a Independência da Bahia, quando, em 1823 os portugueses foram expulsos pelos baianos, depois de acirrado conflito. No final do século 19, os intelectuais do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia consolidaram a memória do conflito como efeméride pública, o que se traduziu entre os grupos populares como uma festa de rua que anualmente celebra especialmente as figuras indígenas do Caboclo e da Cabocla. Além de ter fotografado o Monumento ao 2 de Julho, ou Monumento ao Caboclo, no Campo Grande, Voltaire fotografou a multidão de pessoas predominantemente negras em cortejo pelas ruas do Centro Histórico e dos bairros vizinhos. Boa parte dessas imagens foram arquivadas pelo IGHB, e nelas é possível visualizar a entronização dos Caboclos como referências religiosas – enquanto entidade cultuada nos Candomblés –, heróis cívicos e personagens históricos.

Cortejo do 2 de Julho, de Voltaire Fraga, Arquivo Histórico Theodoro Sampaio, IGHB/BA, década de 1950.

Os espaços públicos, aliás, foram abundantemente fotografados como cenários da presença dos grupos afrodescendentes, em particular nas feiras populares, como a da Conceição da Praia, em frente à igreja homônima, no bairro do Comércio, na Cidade Baixa, e as festas, fossem elas cívicas, como o 2 de Julho, religiosas ou o próprio carnaval.

Nos anos 1940, o Candomblé e seu sincretismo com o catolicismo eram objeto de análise de estudiosos como Roger Bastide, Ruth Landes e Lorenzo Turner, e iam se tornando tema para a fotografia do fotógrafo francês Pierre Verger. Até onde se sabe, pelos acervos institucionais e pelo acervo familiar, Fraga não fotografou de forma detalhada cerimônias privadas dos Candomblés, ou pelo menos essas imagens não chegaram até o tempo presente. Embora a festa de Iemanjá tenha se constituído como a principal afirmação de um culto público que tinha o nome e os ritos não necessariamente sincréticos – com a doação das oferendas à deusa das águas em pleno mar –, e também tenha sido uma festa fotografada por Voltaire, talvez a Lavagem do Bonfim fosse a ocasião privilegiada de manifestação pública do Candomblé através do sincretismo, desde a saída das integrantes da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Conceição da Praia, até o final da procissão na Colina Sagrada.

Subida da Colina Sagrada, de Voltaire Fraga, Igreja do Bonfim, Salvador, década de 1950. Acervo familiar e Alban Galeria, Salvador.

O carnaval, por fim, parecia ser outro momento privilegiado de afirmação de certo ideal de negritude vazado nas expressões da baianidade festiva e cordial – embora nessa festa também, conforme o recorte social e geográfico das fotos, possam ser identificadas tensões e desigualdades, as quais estavam longes de serem suspensas pela festa. Numa foto de Voltaire Fraga tomada num carnaval dos anos 1950, vê-se a alegoria gigante de uma baiana, da altura dos prédios, que foi erguida no Centro Histórico, como que envolvida pela arquitetura e ao mesmo tempo envolvendo os foliões. A fotografia incorporava os discursos e as práticas de constituição de uma cultura baiana, não apenas como permanência de passado, mas como confecção de um presente que se projetava a novas práticas sociais de ordenamento dos lazeres, das dinâmicas urbanas e da própria forma de trazer a expressividade negra para o centro das políticas e dos saberes enquanto a maior parte da população negra vivia em precariedade.

Multidão e alegoria de baiana no carnaval de Salvador, de Voltaire Fraga, década de 1950. Acervo familiar e Alban Galeria, Salvador.

O que esse largo espectro institucional onde se arquivaram as fotografias de Voltaire Fraga revela também é o alcance de sua prática fotográfica e os usos de uma fotografia que já se pretendia autoral, embora direcionada pelo comissionamento. Uma das marcas autorais do fotógrafo era o gesto de carimbar o verso de suas cópias impressas, o que constitui uma pista importante quando as encontramos em meio à massa documental de dossiês e coleções que têm mais de um autor, de períodos diferentes. Desnudar arquivos privados e públicos onde as imagens foram armazenadas é uma aposta para construir outras narrativas sobre a negritude, no cerne do nascimento da baianidade e para além dela. ///


Elson de Assis Rabelo é professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco. Faz pós-doutorado em História na Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do Zumvi Arquivo Fotográfico com bolsa de pesquisa do Edital Universal CNPq – 2021.


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