Ensaios

Vestígios do dia

Kaelen Wilson-Goldie Publicado em: 11 de agosto de 2021

 

Professor/Patrão, de Samar Al Summary, Líbano, 2020. Cortesia do artista.

Hrair Sarkissian desenhou o trajeto do voo de uma ave migratória e constatou que era a representação exata de um nó de forca. Construiu um modelo em pequena escala do edifício onde passou a maior parte da vida, em Damasco, e depois, durante sete horas, esmigalhou-o com uma marreta, com pausas para fotografias depois de cada golpe. Maha Maamoun recorreu à ficção literária, à história do cinema e a um cache de vídeos do YouTube documentando as invasões noturnas de prédios de segurança de Estado no Cairo (e em outros lugares do Egito) para expressar as assustadoras fantasias íntimas deflagradas pelos períodos de perturbação política. Realizou trabalhos baseados nas histórias de um homem atormentado por visões e de um traficante de drogas que se transformou num híbrido de zebra e bode. Samar Al Summary vasculhou Beirute atrás de indícios de sobrevivência e resistência num momento de colapso econômico iminente. Na cidade destroçada, convulsionada por protestos, não registrou corpos em estado de sofrimento, mas as camadas profundas e as texturas delicadas da pobreza material: um éthos de improvisação pairando logo acima da ruína.

Passou-se uma década desde o início da assim chamada Primavera Árabe, quando um movimento exigindo reformas radicais eclodiu na Tunísia e no Egito, espalhou-se pelo Norte da África e pelo Oriente Médio e em seguida se espraiou para a região do golfo Pérsico. As pessoas estavam fartas de governantes corruptos e autocráticos, fartas do desemprego, da falta de oportunidades e de mobilidade, da fome e da qualidade de vida cada vez mais precária. Desde o início, os jovens manifestantes e seus predecessores ideológicos se referiram ao movimento como sendo uma revolução. As primeiras manifestações foram detonadas por acontecimentos lamentáveis: a morte do vendedor ambulante tunisiano Mohamed Bouazizi, que ateou fogo ao próprio corpo na cidade interiorana de Sidi Bouzid, e o millennial egípcio Khaled Said sendo arrastado para fora de um cibercafé para ser espancado até a morte pela polícia, na cidade litorânea de Alexandria. Os protestos cresceram, em parte porque as imagens dos jovens fazendo manifestações e exigindo mudanças tiveram ampla circulação nas redes sociais e na imprensa. Multidões vociferantes na avenida Habib Bourguiba, em Túnis, e na praça Tahrir, no Cairo, provocaram a queda dos regimes de Zine al-Abidine Ben Ali e de Hosni Mubarak.

Independentemente do que aconteceu depois, boa parte dos registros iniciais, como a experiência física eletrizante de fazer parte daquelas multidões, foi bela, arrebatadora e corajosa. Mas, em quase todos os países onde ocorreram protestos – do fim de 2010, durante 2011 e depois, bem como nas ressurgências periódicas que ocorrem até hoje na Argélia, no Iraque, no Líbano e no Sudão –, os desdobramentos foram terríveis. A Síria entrou em guerra civil. O Iêmen e a Líbia ficaram num estado de absoluta desordem (atualmente os dois países são vistos como Estados malogrados). O Egito, hoje, está mais autoritário do que nunca. A trajetória da Primavera Árabe foi tão calamitosa que muitos de seus participantes e observadores desautorizam a afirmação de que algum dia ela tenha sido um movimento, de que a narrativa de eventos díspares concatenados uns aos outros de modo a formar uma única história guarde alguma coerência que não a de generalidades inúteis. Essa virada deixou artistas e criadores de imagens num impasse bizarro. Por um lado, a partir de 2011 houve enorme demanda por trabalhos artísticos relacionados aos acontecimentos da Primavera Árabe, em especial vinda do mercado de arte e de museus. Por outro, toda tentativa séria de tentar achar um sentido para o que havia acontecido parece ilusória e tão fadada ao fracasso quanto as próprias revoluções.

Talvez devido a essas razões aparentemente paradoxais, alguns dos conjuntos de obras mais consistentes produzidos por essa década tão longa e dolorosa são, também, os mais sutis. Eles chegam à Primavera Árabe de ângulos inusitados. Os trabalhos de Sarkissian, Maamoun e Al Summary, bem como os de Omar Imam, Kamel Moussa, Fethi Sahraoui e Katia Kameli, dão forma e significado à possibilidade fugidia, à fissura no jeito como as coisas eram, ao sentimento de abertura presente nos primeiros protestos. Se havia um viés utópico nos impulsos da Primavera Árabe, ele pode ser encontrado na noção de “espaço em suspensão”, que é como Al Summary descreve o que busca nas cenas que fotografa. Essa noção se aplica à arte de um punhado de artistas que, como ela, abordam circunstâncias difíceis com integridade, sutileza e irredutível especificidade. Em seus trabalhos, aferram-se a esse espaço em suspensão para futura referência, talvez até para eventual utilização. Ao fazê-lo, valem-se de novas formas e tecnologias de imagem para abordar uma história tristemente familiar sem recorrer a clichês.

Sarkissian trocou Damasco pela Europa em 2008, mesmo ano em que produziu um inesquecível conjunto de trabalhos chamado Praças de execução –, uma série de 14 imagens sinistras e pujantes dos locais onde ocorriam os enforcamentos públicos em Alepo, Damasco e Lataquia. As fotos mostram áreas urbanas impregnadas de história, mas completamente esvaziadas de pessoas, tomadas na refinada luz laranja-claro do início da manhã. Sarkissian não volta à Síria desde 2011. Em 2014, perguntei a ele se pensava na possibilidade de focalizar o conflito em seu trabalho. Sua resposta enfática foi: “Não”. Mais do que isso, ele não admitia que Praças de execução fosse exibido num contexto em que pudesse ser mal interpretado – em que parecesse uma ilustração dos acontecimentos na Síria depois do início do levante ocorrido no país. No começo deste ano, voltei a fazer a mesma pergunta a Sarkissian. Uma vez mais, ele respondeu: “Não”. E hesitou, antes de prosseguir: “Pelo menos não diretamente. Em se tratando de fazer alguma coisa relativa à Síria, não quero absolutamente realizar um trabalho que trate de pessoas que estão sofrendo. Porque depois esse trabalho será pendurado numa parede, e as pessoas vão dizer que ele é belo, ou talvez digam que é horrível.” Fez uma pausa e acrescentou: “Mas eu conto a história da Síria quando conto a história de um passarinho”.

 

Voo derradeiro, de Hrair Sarkissian, 2018-2019. Fotografia de Oak Taylor. Cortesia do artista.

Voo derradeiro (2018-2019) é inusitado no trabalho de Sarkissian pelo fato de não incluir nenhuma de suas próprias fotos. Em vez disso, consiste num vídeo de nove horas registrado a partir do Google Earth; na cópia de uma fotografia tomada de empréstimo de um diplomata italiano; num mapa em relevo sobre alumínio; e em nove esculturas pintadas à mão, todas moldadas em resina e osso a partir do escaneamento em 3-D de um crânio de íbis-eremita do acervo de um zoológico espanhol. A história do íbis-eremita, uma das mais raras espécies de aves do Oriente Médio, é épica e multifacetada. Para Sarkissian, “é exatamente o que os sírios enfrentaram”, sem parecer uma descarada obviedade. A história de uma ave que correu risco de extinção, foi redescoberta e depois desapareceu é uma metáfora profunda da migração e da liberdade de movimento.

Numa época em que centenas de colegas seus deixaram o Egito em busca de uma vida melhor na Europa ou na América do Norte, Maamoun ainda vive no mesmo bairro do Cairo onde cresceu. Uma das fundadoras do Coletivo de Imagens Contemporâneas e da editora startup Kayfa ta, termo que significa “como fazer”, em árabe, Maamoun desenvolveu um estilo particular, que combina materiais populares e formas literárias eruditas. Tal como Praças de execução, de Sarkissian, um de seus trabalhos mais conhecidos, o vídeo de nove minutos 2026 (2010), é muitas vezes apresentado, e provavelmente interpretado erroneamente, como obra profética. O vídeo retoma uma cena icônica do filme emblemático de Chris Marker, A pista (La Jetée, 1962), associando-o a uma passagem do romance egípcio de ficção científica A Revolução de 2053: o início (2007), de Mahmoud Osman, no qual um homem que viaja no tempo descreve uma cena tenebrosa junto às pirâmides depois de uma revolução ocorrida em um futuro remoto.

Para seu vídeo de oito minutos e meio Visitante noturno: a noite da contagem dos anos, Maamoun fez uma colagem utilizando uma sequência fascinante extraída de clipes do YouTube publicados na internet por manifestantes da praça Tahrir. Logo depois do início da revolução, esses manifestantes invadiram diversos prédios de segurança do Estado – prédios que durante o regime de Mubarak eram totalmente inacessíveis. Maamoun apagou todos os comentários que acompanhavam as imagens e focalizou os sinais de riqueza e lazer que os manifestantes encontraram escondidos nas estruturas inacessíveis do Estado. Mesmo quando as cenas são interrompidas por cartas de prisioneiros políticos, Maamoun enfatiza a linguagem poética, em detrimento de possíveis revelações bombásticas de fatos. Seu vídeo de 25 minutos Querido animal (2016) entrelaça um conto do escritor Haytham el-Wardany, sobre um traficante de drogas que se transforma num bode com listras de zebra, com as notas aparentemente inofensivas de Azza Shaaban, uma ativista que deixou o Egito em busca de cura espiritual na Índia. Mais longo e mais abrangente do que seus trabalhos anteriores, Querido animal é a expressão mais clara de Maamoun até hoje de um espaço em suspensão, criado a partir da discrepância entre materiais de origem tremendamente diferentes entre si.

 

Sem título 12, de Omar Imam, 2009. Cortesia do artista e da Galeria Catherine Edelman.

O que é espantoso nesses trabalhos evocativos provenientes do mundo árabe durante a década que se seguiu à Primavera Árabe é o fato de mostrarem tão pouco os protestos propriamente ditos. Uma das imagens surreais de Omar Imam, de uma série sem título que abrange os anos que precederam e sucederam o levante na Síria, exibe um jovem casal sentado sobre duas malas. O casal parece ter caído do céu num cenário coberto de cascalho, com o nível de devastação em que estava a Síria apenas vislumbrado por meio das tensões extremas criadas pela situação entre as pessoas apaixonadas, que talvez planejem um futuro e por isso se debatem, sem saber se decidem ficar, separar-se ou abandonar seu país. De 2014 em diante, Fethi Sahraoui se dedicou a documentar um grupo de meninos adolescentes do noroeste da Argélia – que o artista vincula à geração que agora lidera o levante popular que toma as ruas do país. Contudo, as imagens de Sahraoui, nas séries Estadiofilia e Fugindo da onda de calor – ambas de 2014-2018 – nunca vão até lá. Em vez disso, não saem dos estádios esportivos nos quais seus sujeitos desenvolveram sua consciência política por meio das canções e bandeiras das partidas de futebol, que são um dos raros eventos nos quais os rapazes argelinos podem se aglomerar maciçamente em busca de distração. Ou elas vão até os diversos locais – inclusive caixas d’água e canais de irrigação, além do mar – em que os garotos buscam alívio para o calor intenso do verão.

 

Jovens em um canal de irrigação, de Fethi Sahraoui, Relizane, Algeria, 2016, da série Fugindo da onda de calor. Cortesia do artista e do Coletivo 220.

Uma das razões pelas quais Samar Al Summary se mudou para Beirute foi seu desejo de aprender determinado método de atenção e sensibilidade com os artistas e pensadores do consolidado cenário artístico local – em especial os profissionais associados ao Programa do Espaço de Trabalho em Casa da Ashkal Alwan (Associação Libanesa de Artes Plásticas), da qual Al Summary fez parte –, que lidavam havia gerações com os problemas e perigos de fotografar em público e na rua. Nascida e criada em Gidá, Al Summary cresceu pobre na Arábia Saudita, país ao mesmo tempo celebrado e atacado por suas riquezas. Ela chegou à maturidade acreditando que “ser artista era basicamente estar à beira da criminalidade”. Quando se mudou para os Estados Unidos na adolescência, Al Summary ficou visualmente embasbacada. Começou a tirar fotografias “como um modo de viver e estar em paz” com a superabundância de detalhes do mundo que a cercava. Quando deixou o sudoeste americano (estudou no Arizona e no Novo México) e voltou para o mundo árabe, havia começado a desenvolver sua própria linguagem visual.

Os protestos que eclodiram no Líbano em 2019 e a horrenda explosão ocorrida em agosto de 2020 em Beirute alteraram muitas coisas. Contudo, nenhuma das imagens das séries profundamente reflexivas de Al Summary – Trust Beauty Bank  e Tranque a porta (ambas de 2019-20) – focaliza a atualidade desses acontecimentos. Em vez disso, Al Summary atenta para texturas, resíduos e acúmulos de imagens competitivas, indo de anúncios e pôsteres de campanhas pregressas a casas remendadas e comércios destituídos de seus letreiros. Uma das coisas importantes para ela é a presença de cores vibrantes, que não duram nada no clima quente e úmido do litoral levantino. “Num clima quente, cor é sinal de contemporaneidade”, disse-me Al Summary. “Um lugar pode parecer uma ruína, mas, se a cor for viva, é porque ele ainda é habitado. Temos tantas imagens de morte – ando em busca de uma certa vivacidade, de um senso de equilíbrio e de beleza constituída que vá além da descrição.” E prosseguiu: “Nas artes visuais, somos forçados a contemplar sem chegar a conclusões, a estar num espaço em suspensão. Para os artistas do Oriente Médio, em que a arte lida com essas questões polêmicas, em que chavões vêm à cabeça, é difícil encontrar a poesia daquele momento e ao mesmo tempo ser realista.” O fato de ela fazer isso em suas fotografias talvez seja uma das lições mais importantes dos últimos dez anos – mesmo quando as ações políticas esmorecem e os movimentos em prol de mudanças ficam escassos, os trabalhos artísticos podem se apoiar nos espaços que abriram para a memória e para o debate, mesmo que o futuro permaneça incerto. ///

 

Kaelen Wilson-Goldie é uma escritora e crítica que vive entre Beirute e Nova York. É autora de Etel Adnan (2018), editora-colaboradora das publicações Artforum, Afterall e Frieze.

 

Tradução do inglês de Heloisa Jahn

Texto originalmente publicado na edição Utopia (#241) da revista Aperture no inverno de 2020.

 

 

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