Ensaios

Ver / viver

Djaimilia Pereira de Almeida Publicado em: 4 de janeiro de 2023

Em 1972 o escritor e crítico de arte John Berger (1926 – 2017) publicou o clássico livro de ensaios Modos de ver, baseados na série televisiva inglesa de mesmo nome escrita e apresentada por ele. O livro revolucionou a crítica de arte ao apontar as estruturas de poder presentes no processo de criação de imagens. Agora, 50 anos depois, a editora Fósforo lança uma nova edição brasileira do livro. No prefácio da atual edição (publicado abaixo na íntegra), a escritora Djaimilia Pereira de Almeida lembra o quão essencial é a leitura de Berger nos tempos atuais e que devemos encarar “a visão enquanto vivificação e a observação da arte como paralela à observação da vida”.

Outro dia vi uma mulher a dormir através da janela, que deixara aberta. Observei-a ao longo de uma manhã inteira. Nunca tinha visto uma pessoa que não conheço dormir, no seu quarto, durante tanto tempo. Talvez só numa cidade em que as pessoas dormem de estores abertos isso seja possível. Ver uma mulher dormir e, depois, vê-la acordar. Vi-a mexer-se na cama, abrir e fechar a boca. Arrepiar-se. Espreguiçar-se. Por minutos, abria os olhos — e dormia de olhos abertos. Logo, fechava-os, virava-se, lançava os braços para cima da cabeça ou abria-os ao comprimento do corpo.

O mundo inteiro estava à espera de que a mulher acordasse e não apenas eu. Foi como assistir ao começo do mundo, ao começo de uma história, muito diferente de ver uma pessoa morta dormir no leito de morte. A mulher tinha longos cabelos castanhos, que por momentos lhe tapavam o rosto, se dormia de barriga para baixo. E então era como observar uma cabeça cheia de cabelo enquanto essa cabeça se espreguiçava na cama. A luz cambiando, as horas passando, o quarto indo de branco frio a dourado mel. Fumo cigarros, bebo duas xícaras de café. A mulher não se levanta. Abre e fecha os braços. Quase estrebucha. “Sonha com quê?”, pergunto-me.

A janela confere ao seu repouso uma moldura. É como assistir a um quadro vivo, em movimento, um quadro que sonha enquanto sonha, uma fotografia em transformação constante. O sono é bem diferente da morte, vida a cada minuto transfigurada. John Berger falou, em Fotocópias [1], da mulher que aprendera com a avó a contar histórias que eram como pássaros. A mulher que dorme é como uma mulher e, mesmo que não vá a lado algum, às vezes vê-la se parece com observar um pássaro na sua intimidade fugaz, pousado num ramo de árvore, saltitando, tivessem os pássaros intimidade (eu acho que têm). Podemos ver a arte — olhá-la — como olhamos uma pessoa a dormir, como observaríamos os sonhos dos outros, acometidos do mesmo pudor curioso que senti diante da mulher através da janela. Nos museus, nas galerias, pelas ruas, em quadros, fotografias, murais, apenas enquanto canais para o que somos na intimidade. Talvez o maior dos segredos seja como a mulher dormindo, que vendo as alterações da luz no seu rosto, os cambiantes dos arrepios da sua pele à medida que o corpo emerge do sono, diante da sua janela aberta, talvez, como diante do maior dos segredos, nada nos seja claro ou imediato, apesar da clareza arrebatadora com que se nos oferece.

Lembrei-me, ao ver a mulher, da afirmação de John Berger de que os animais são sempre os observados. A mulher não. Podia levantar-se e fechar a janela, como fez na noite seguinte. (À terceira noite, a janela do quarto seria tapada com uma cortina.) Podia mexer-se, cobrir-se. Dormia num quarto — não numa jaula. Mesmo que em liberdade, percebi ao observá-la que existe uma diferença cabal entre o modo de ver um quadro vivo e a natureza muda de que é feita a história da arte. Talvez Modos de ver ensine ainda, cinquenta anos volvidos da sua primeira publicação, a ver a arte como vi a mulher através da janela, exaltando a visão enquanto vivificação e a observação da arte como paralela à observação da vida. A curiosidade persegue o que está vivo e se transforma. Também fui quadro vivo ao observar a mulher que dormia, pudesse ela ter me visto como a vi. Não foi a vida que imitou a arte, ao longo de uma manhã fria. Mas só a mulher dormindo, segredo procurado, perscrutado por um sem-número de artistas, mas repetido em cada casa, todas as noites. ///

Djaimilia Pereira de Almeida é escritora. Com Luanda, Lisboa, Paraíso recebeu o Prêmio Oceanos 2019. Vive em Lisboa.

Humberto Brito é fotógrafo, professor do Departamento de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa e membro do Instituto de Filosofia da Nova. Vive em Lisboa.

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Mais informações sobre a nova edição de Modos de ver no site da Editora Fósforo.

[1] John Berger, Fotocópias. Trad. de Roberto Grey. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

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