Ensaios

Venenosas, nocivas e suspeitas

Lucia Santaella & Giselle Beiguelamn Publicado em: 7 de março de 2025

Vista da exposição Venenosas, nocivas e suspeitas, de Giselle Beiguelman, em cartaz no Centro Cultural Fiesp, SP

Nesta era da inteligência artificial é importante compreender a relação entre arte e técnica que costuma estar obscurecida por noções preconceituosas sobre a técnica. Para tal, torna-se necessário recuperar as distinções e complementaridades, que vêm do grego, entre epistéme, techné e poiésis. Epistéme denota conhecimento, o verdadeiro conhecimento, diferente da opinião, o conhecimento das causas que são necessariamente verdadeiras. Implica a mistura entre ciência e saber e envolve o esforço racional para substituir a opinião, doxa, que não passa do conhecimento acerca do contingente. Divide-se em praxis, techné e theoria.

Techné (Tékhne) “conecta-se com a raiz tekotikto – traduzida comumente por procriar na acepção de parir, dar à luz”. Assim, “teko não é o fazer e aprontar [produto], mas o conduzir alguma coisa para o desencobrimento, produzir. É trazer algo para o desencobrimento, a fim de vigorar no desencobrimento como o que foi trazido, como o que aparece a partir de…, como o que ‘é’, em sentido grego. O tékton é o pro-dutor, aquele que pro-cede a partir de… e para…: A partir do desencoberto para o aberto. O homem realiza esse procedimento pro-dutor na construção, no entalhe, na formação.” (Heidegger, 1998, p. 213)

Portanto, a techné significava não apenas as atividades e competências do artesão, mas sobretudo as artes da mente e as belas artes. Por isso, estava indissoluvelmente ligada à poiésis, essência do agir, fazer como criação, dar forma, o que propicia sentido ao fazer, o sentido último da techné que é transfigurada pela poiésis. Desde muito cedo, a palavra techné foi ligada à palavra epistéme, sendo ambas modos de nomear, cada uma à sua maneira, a própria ideia de conhecimento. Disso se pode concluir que a importância e o papel decisivo da techné não residem simplesmente no fazer ou na manipulação dos meios, pois, inseparável de poiésis e da epistéme, a techné, é forma de criação e forma de conhecimento.

Desde os gregos muita coisa mudou no modo como o trinômio da episteme, da arte e da técnica se desgarrou e passou a ser compreendido. A episteme apartou-se para o mundo da ciência. Não mais entrelaçado aos sentidos de epistéme e de poiésis, o campo semântico de techné estreitou-se, enquanto o significado de poiésis, romanticamente concebida estritamente como fiat criador, passou a ser sobrevalorizado (Santaella, 2016, p. 6). Com o desenvolvimento da tecnologia a partir da revolução industrial e sua aceleração desde a revolução digital, hoje na sua fase dataficada aliada à inteligência artificial, o sentido de techné não apenas se estreitou, mas, alimentado pelas perversas contradições das big techs proprietárias dos dados, passou a estar perto da demonização, concebida como estranha ao humano e mesmo ameaçadora de sua integridade.

Os artistas, no entanto, são por natureza ousados, assumindo a coragem da poética na sua aliança com a técnica, que, hoje na sua fase de tecnologia da inteligência, quando explorada pelo ato criador, pode converter a ideia de força em potência para o conhecimento sensível, aesthesis. De fato, historicamente está mais do que comprovado que, a cada nova técnica ou tecnologia que surgiu no horizonte socio-cultural, o artista sempre foi a primeiro a extrair da tecnologia o caráter humano que ela carrega. E esse é um ato político.

É nesse contexto que se pode ler o trabalho que Giselle Beiguelman vem desenvolvendo em um crescendo ao longo dos anos, alcançando seu ponto de condensação (dichtung) nesta obra, Venenosas, Nocivas e Suspeitas (exposta na Fiesp, com curadoria de Eder Chiodetto, a partir de 06 de novembro de 2024 e em cartaz até 20 de abril de 2025) na qual, entre outras qualidades admiráveis, a artista consegue realizar a proeza de aliar os fatores que o Ocidente infelizmente separou, ou seja, os liames entrelaçados da epistéme, da techné e da poiésis.

Não se trata aqui de um mero discurso laudatório. Basta examinar o percurso de GB ao longo do tempo para encontrar o respaldo destas palavras no tracejamento que foi se colando à realidade. Toda artista existe e persiste na continuidade coerente de suas produções. Uma obra não deveria ser vista como um fragmento solto e desprendido daquilo que veio antes, e daquilo que nela aponta para o futuro. Venenosas, nocivas e suspeitas, em sua presença soberana, corresponde ao ponto atual em que, na obra de Giselle Beiguelman, a pesquisa histórica, a técnica e a poesia se fundem em camadas justapostas. Senão vejamos.

A epistéme

Começar pela epistéme, no campo romantizado que ainda persiste na arte, pode ser visto como uma heresia. Afinal, aprendemos com Edgar Allan Poe, na sua Filosofia da composição (2011), que a arte vale pelo efeito estético em uníssono que é capaz de produzir. C. S. Peirce, aliás um grande admirador da arte de Poe, embora não haja sinais seguros de que tenha tido conhecimento da Filosofia da composição, concordaria com Poe, quando, a respeito do efeito estético, afirma: “Aventuro-me a pensar que o estado mental estético atinge seu nível mais puro quando perfeitamente ingênuo, despido de qualquer pronunciamento crítico, e o crítico de arte funda seus julgamentos sobre o resultado de se ter lançado de volta a esse estado de ingenuidade pura – e o melhor crítico é aquele que está treinado para fazer isso de maneira perfeita.” (CP 5.111)

De fato, o estado de sentir, similar àquele com que a música nos transporta, é fundamental ao crítico de arte. Entretanto, tal afirmação não pode nos levar à conclusão de que a apreciação de uma obra artística poderia parar na qualidade de sentimento que o efeito estético é capaz de produzir. Por isso, Peirce avança, em prol da episteme, ao complementar com a ideia de que, paradoxalmente, o sentimento produzido pela arte não é inconsequente. Ele reclama pela razão, pois se trata de um sentimento que quer ser compreendido, apelando à compreensão como um convite irrecusável ao intelecto.

As obras de arte são tanto mais valiosas quanto mais o sentimento é capaz de provocar a  inquietação do desejo de compreender afinal em que reside o enigma de sua potência. Venenosas, nocivas e suspeitas é um exemplar indiscutível desse desejo para o qual o sentimento não basta.

Giselle Beiguelman é sobretudo uma artista. Mas alia à sua arte uma segura formação em história da cultura que inclui, principalmente para ela, a história da arte. Ademais é uma intelectual que pensa com o tirocínio do sensível, fonte indispensável para o cruzamento da eficácia prática com os clarões de um intelecto perspicaz capaz de captar as sutilezas do real.

Ela recebeu de herança, entre outros bens do intelecto, o amor pela biologia transferido para a botânica, para a exuberância vital das plantas, estranhamente pode-se dizer, com uma visão política das plantas. Quando se ama algo, o amor impulsiona o querer saber mais. Por amar as plantas, GB pesquisa sobre elas. Este novo trabalho vem na continuidade de uma obra anterior: Botannica Tirannica, exposta de 28 de maio de 2022 a 19 de novembro de 2022, no Museu Judaico, com curadoria de Ilana Feldman, e em itinerância initerrupta desde então na 3ª Bienal de Karachi (Paquistão), Museo Sartório (Trieste, Itália), Sesc-SP, MACT (Museu de Arte e Ciência da UFSM) e Koffler Arts Centre (Toronto, Canadá).

Em prol de uma ecologia em errância no sentido deleuziano (Beiguelman, 2022), a oportunidade política dessa denúncia – esteticamente expressa em imagens recriadas das plantas por meio do uso seletivo da IA – evidencia-se neste momento histórico em que passamos a saber que as plantas sentem e à sua maneira pensam (Mancuso, 2019). Nomes não são inocentes, portanto, termos preconceituosos tornam-se um modo de feri-las.

Na linha de uma continuidade coerente, antes de tudo, a obra Venenosas, nocivas e suspeitas está baseada em uma cuidadosa e paciente pesquisa histórica, cujo parti pris encontra-se no feminino. Trata-se do resgate político do apagamento e pressão do esquecimento a que a figura da mulher foi relegada no passado. Mais do que isso, mulheres que GB quis flagrar no auge da realização obstinada e insubordinada a que chegaram na maturidade avançada. Mulheres criadoras na missão de cumprimento do seu desejo, ou seja, psicanalíticamente fieis ao seu desejo em épocas em que não havia entrada ao desejo feminino.

De modo sutil há aí uma denúncia ao etarismo, uma denúncia despojada de agressividade, pois à arte cabem denúncias brandas e subentendidas. Os fios começam a se enredar. Não são quaisquer mulheres, mas aquelas que cultivaram a paixão pela botânica, paixões duplamente proibidas não só por serem mulheres, mas por estarem dedicadas e entretidas com plantas venenosas, nocivas e suspeitas, indiferentes às proibições ao cultivo de vegetais que foram proibidos ou demonizados devido ao seu uso em rituais e por seus poderes afrodisíacos ou alucinógenos.

São sete mulheres, um número mágico, suspeitas elas mesmas, mas aderentes à teimosia de suas vontades que não se confunde com voluntarismo, pois suas subjetividades se veem objetivadas em um fazer que deixou marcas no mundo, cumprindo trazê-las à flor do presente. A obra de GB está subsidiada pela vida dessas mulheres. Portanto, o que se tem aí é uma obra que é exposta em sua potência poética, mas que guarda, aos que querem compreender, súmulas de suas fontes de pesquisa de que decorre sua natureza também epistêmica. Retomando algumas das palavras da artista, vale a pena passear brevemente por essas mulheres.

Trótula de Salerno, Itália, 1050. Data de morte desconhecida.
Retrato de Trótula de Salerno, aos 65 anos, criado com inteligência artificial, a partir de iconografia de época da artista-cientista jovem. Giselle Beiguelman, 2024.

Em Salerno, na Itália de 1050 despertou a figura de Trotta di Ruggiero, conhecida como Trótula de Salerno. Embora a história tenha tornado opaca sua autoria do compêndio de remédios à base de ervas — Sobre as doenças de mulheres — não é possível apagar seu conhecimento sobre partos, cólicas menstruais e dores mamárias que a fez conhecida.

 

Maria Sibylla Merian, Alemanha, 1647 – Holanda, 1717.
Retrato de Maria Sibylla Merian, aos 70 anos, criado com inteligência artificial, a partir de imagens de arquivo da artista-cientista jovem. Giselle Beiguelman, 2024.

Na Alemanha de 1647 nasceu a libertária Maria Sibylla Merian, naturalista e ilustradora. Aos 52 anos, depois de abandonar o marido opressor, graças à venda de suas ilustrações, financiou sua viagem junto à filha em uma expedição científica no Suriname. Publicou Metamorphosis Insectorum Surinamesium e revolucionou a compreensão das interações ecológicas entre plantas e insetos. Por sua linguagem metafórica seu trabalho recebeu críticas no século 20 de cientistas misógenos. Morreu na Holanda em 1717 doente e empobrecida. Mas as borboletas devem a ela a primeira documentação de sua metamorfose.

Maria Graham, Inglaterra, 1785-1842
Retrato de Maria Graham, aos 57 anos, criado com inteligência artificial, a partir de imagens de arquivo da artista-cientista jovem. Giselle Beiguelman, 2024.

Nascida na Inglaterra em 1785, Maria Graham, intelectual politicamente engajada, chegou ao Rio de Janeiro em 1821. Viajou para o Chile, onde perdeu o marido, o que não a impediu de voltar ao Rio e dedicar-se à escrita e à pintura. Em sua estada no Brasil, realizou coletas botânicas em Pernambuco, na Bahia e no Rio de Janeiro. Suas aquarelas com vívidas descrições da flora local foram adquiridas pela Biblioteca Nacional. Nas contribuições à Flora Brasiliensis que contou com 135 coletores, havia apenas duas mulheres, entre elas Maria Graham.

Mary Elizabeth Banning, Estados Unidos, 1822-1903.
Retrato de Mary Banning, aos 81 anos, criado com inteligência artificial, a partir de imagens de arquivo da artista-cientista jovem. Giselle Beiguelman, 2024.

Mary Elisabeth Banning nasceu nos Estados Unidos em 1822. “Bruxa, fedida, suja e `senhora cogumelo venenoso` foram alguns dos apelidos que colecionou, ao entrar nos bondes de Baltimore com os braços salpicados de terra e raízes, voltando de suas incursões na mata em busca de cogumelos”. Foi autora de The fungi of Maryland, manuscrito completado depois de vinte anos de pesquisa, obra científica considerada pioneira na investigação dos cogumelos estadunidenses.

Marianne North, Inglaterra, 1830-1890.
Retrato de Marianne North, criado com inteligência artificial, aos 60 anos, a partir de imagens de arquivo da artista-cientista jovem. Giselle Beiguelman, 2024.

Natural da Inglaterra, 1830, é Marianne North, artista botânica. O uso de cores fortes e ocupação completa do quadro desagradaram críticos e cientistas convencionais. Viajou pelo mundo e passou um ano no Brasil, onde manteve relacionamento amoroso com Amelia Edwards. No Kew Gardens de Londres construiu uma galeria com seus mais de 800 trabalhos. Segundo Beiguelman, foi a maior pintora carnívora da história, tendo uma dessas plantas nomeada em sua homenagem.

Constança Eufrosina da Borba Paca, Rio de Janeiro,1844-1920.
Retrato de Constança Paca, aos 76 anos, criado com inteligência artificial, a partir de imagem de arquivo da artista-cientista jovem. Giselle Beiguelman, 2024.

Nascida no Rio de Janeiro em 1844, Constança Paca, por suas pesquisas e desenhos,  recebeu do arquidólogo João Barbosa Rodrigues, pioneiro nos estudo indígenas e especialista em palmeiras, a dedicatória para o gênero de orquídea Constantia e para a palmeira Bactris. Ademais, Constança teve treze filhos.

Retrato de Maria Bandeira, aos 90 anos, criado com inteligência artificial, a partir de imagens de arquivo da cientista jovem. Giselle Beiguelman,  2024.

No alvorecer do século 20, 1902, nasceu a brasileira Maria Bandeira, a primeira botânica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e uma especialista em briófitas. Coletou e identificou mais de 500 espécimes, mas foi ignorada pelos círculos científicos dominados por homens. No apogeu de sua trajetória científica, por dores de perdas, enclausurou-se ou foi enclausurada pelo irmão em um convento no bairro de Santa Teresa, no Rio.

Essa é, em breve relato, a pesquisa historiográfica realizada por GB. Mas, para ela, a imaginação artística fala mais alto do que a história, que é tomada como trampolim para o salto estético, implicando a recorrência da epistéme à téchne, sem a qual a poiésis igualmente não seria possível.

Luzia Pinta Angola, ≈ 1700 – Portugal, data de morte desconhecida.
Retrato de Luzia Pinta, calunduzeira vítima da Inquisição, aos 40 anos, criado com inteligência artificial, a partir de informações coletadas em textos de Alexandre Almeida Marcussi, Laura de Mello e Souza, Luiz Mott, Mary Del Priore e um retrato imaginário de Luzia Pinta realizado por Guignard. Giselle Beiguelman, 2025.

A techné

Além de historiadora e artista, Giselle Beiguelman dispõe de uma facilidade no trato técnico com os dispositivos digitais. Desde seu premiado O livro depois do livro, sua produção artística tem navegado com desenvoltura pelas complexidades íntimas do digital, dando suporte aos insights que brotam de sua mente que respira via criação.

Suas obras em ciberarte começaram a brotar desde o alvorecer da internet, cujos sistemas de codificação Beiguelman analisou para deles extrair pílulas sensíveis — relâmpagos de sensibilidade — carregadas dos enigmas da complexidade. Seus trabalhos revelam uma capacidade ímpar de absorver os impactos das tecnologias na criação e de traduzi-los com marcas únicas de pessoalidade. No auge da novidade dos processos ciberinterativos, sua obra Egoscópio foi comentada internacionalmente.

Assim que a Inteligência Artificial (IA) começou a alcançar a primavera do sucesso, GB foi se apropriando de seus aplicativos, inclusive mantendo e orientando grupos de pesquisa e criação na FAU-USP onde tem o seu local de trabalho. Sua obra anterior sobre plantas já recorria a uma parceria sagaz com a IA, à maneira de muitos artistas internacionais que sem temores incrementam seus trabalhos em alianças com a IA. Em Venenosas, Nocivas e Suspeitas o pacto, a luta, os ajustes, os desentendimentos e conciliações com a IA ganharam em sofisticação. Os modelos de IA foram empregados tanto nos retratos imaginados de mulheres reais quanto nas plantas reais e inventadas.

De fato, para os artistas, qualquer coisa pronta que venha dos padrões da IA generativa não bastam, de resto, pouco valem. O que vale é a luta, a teimosia, a iteração, ato repetitivo e transformador de tirar da IA o que o imaginário criador da artista exige. Nesse ponto, para a arte, não há techné que possa subsistir sem a interferência sobredeterminada da poiésis. É justamente nisso que a artista assume o seu protagonismo. 

A poiésis

O poético corre pelas veias de Giselle Beiguelman e transpira nos seus atos. Em quaisquer de suas intervenções, na esteira de um Augusto de Campos misturado a um Julio Plaza, desde os jogos de palavras que inventa, palavras-valise que condensam poeticamente seu pensamento, até obras que sempre se estruturam na coesão admirável dos três princípios que o Ocidente levou à separação e fragmentação: a espistéme, a techné e a poiésis

Nesta obra, as mulheres reais pesquisadas tinham de passar pelo ato semiótico tradutório do verbal à imagem. Para isso, GB colocou a IA em ação como parceira até torná-la obediente no alcance das imagens de mulheres na velhice com garbo que a artista impôs como incumbência do seu imaginário. Não qualquer velhice ou velhices alquebradas como a IA traz como praxe, mas sim velhices altivas.

Há dois tipos de altivez, a da arrogância, de um lado, e a da dignidade, de outro. Portanto, mulheres similares na altivez digna, mas distintas, sui generis, cada uma na sua identidade. Resultaram assim, enlaçados em folhagens e flores, retratos suaves, serenos e seguros. O tratamento que a artista lhes deu é sobretudo afetuoso. As mulheres, de fato, produzem, em quem pela primeira vez as olha na exposição, um estranho sentimento de ternura misturado à curiosidade: quem são? Nesse ponto, a poiésis se abraça à epistéme, ambas trabalhadas pela techné: forja-se aí o fato estético que, segundo Jorge Luis Borges, também pode ser encontrado em rostos trabalhados pelo tempo. GB foi exitosa no seu intento.

“A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético.” (J. L. Borges, 1952)

Com as plantas não foi diferente. Mais uma vez para tranfigurá-las até o encontro poético, a artista pesquisou, inventou e animou-as em vídeo. Fiel ao parti pris do feminino, inspirada em imagens botânicas produzidas por mulheres ao longo do tempo e auxiliada pela IA, GB produziu figuras resultantes do interstício do real e ficcional. Plantas apócrifas, seria possível dizer, pois, embora tenham a marca da ficção, se exibem e se impõem na sua presença vivificada pelos movimentos videográficos. Atingido por meio de uma seleta mistura de aplicativos, o efeito coreográfico, dançante e dócil das imagens lembra ritmos melodiosos de que só Mozart foi capaz. Presta-se com isso, uma homenagem à natureza que, por meio do admirável, denuncia pelo avesso a necessária indignação, que não pode faltar, diante do capitaloceno.

Epistéme, techné e poiésis se orquestram em uma sinfonia real e imaginária, à qual não poderia faltar, bem no centro da exposição, devidemente iluminado por luzes vitais, um canteiro de plantas naturais no diálogo lado a lado com as plantas que dançam nas telas. Aí está essa exposição que nos convida a tormarmos parte dessa orquestração para nos irmanarmos com essas corajosas mulheres e, ademais, se estivermos libertos da arrogância antropocêntrica, para sentir com as plantas e, mais do que isso, pensar com elas. ///

Lucia Santaella é uma das principais referências globais no estudo da semiótica, com mais de quarenta livros publicados sobre o tema. Professora titular da PUC-SP com doutorado em Teoria Literária na PUC-SP (1973) e livre-docência em Ciências da Comunicação na ECA/USP, (1993). É fundadora do “CSGames TIDD”, Grupo de Pesquisa em Computação, Semiótica e Games do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital PUC-SP.  

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Referências

BEIGUELMAN, Giselle. Botannica Tirannica: da genealogia do preconceito às possibilidades de um ecossistema errante. Revista ClimaCom, Políticas vegetais | pesquisa – artigos | ano 9, no. 23, 2022.
BORGES, Jorge Luis. A muralha e os livros. In J. L. Borges, Otras inquisiciones. Buenos Aires: Sur, 1952.
FELDMAN, Ilana. A vida dos nomes. Catálogo da Exposição Botannica Tirannica. Museu Judaico, 2022.
HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p. 213.
MANCUSO, Stefano. Revolução das plantas um novo modelo para o futuro, Regina Silva (trad.). São Paulo: Ubu, 2019.
PEIRCE, C. S. Collected Papers. Vols. 1-6, Hartshorne and Weiss (eds.); vols. 7-8, Burks.(ed.) Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1931-58. A referência no texto foi feita sob CP seguido de número do volume e número de parágrafo.
POE, Edgar Allan. A filosofia da composição, Léa Viveiros de Castro (trad.), 2ª. ed. Rio de Janeiro, Ed. 7 Letras, 2011.
SANTAELLA, Lucia. Astúcias do design. Flusser studies 21, p. 1-10, 2016.

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