Viver (e sonhar) às margens da Transmazônica e da Belém-Brasília
Publicado em: 23 de julho de 2019“Moça pra quem você vai contá nossa história?” Essa pergunta inundou a cena no momento em que eu fazia uma fotografia posada de um grupo de cortadores de cana de açúcar, durante meu primeiro ano de viagens pela rodovia Transamazônica. Nunca soube quem foi o autor dessa indagação, e naquele tempo também não imaginava estar me movendo em direção ao que seria o meu destino. Mas a pergunta daquele homem, consciente de sua própria história e do coletivo do qual fazia parte, nos anos seguintes foi como um leme para mim. Afinal, para quem e como contar essas histórias?
Foi assim, em 1990, a partir de um desejo pessoal, que teve início o projeto de realizar um ensaio fotográfico na região cortada pela rodovia Transamazônica, um ícone do processo de ocupação e de colonização da Amazônia. Naquela época, isso representava para mim a possibilidade de escapar das reportagens apressadas que o fotojornalismo diário me exigia. Muitas etapas, recortes geográficos e temáticos se seguiram. Ao longo dos anos, a aproximação com os moradores dessas áreas e as pesquisas informais que realizei sobre a história da região, incluindo aspectos sobre a ocupação/colonização ocorridas às margens dessa grande rodovia, ampliou naturalmente minha imersão nesse ambiente. A ideia inicial foi expandida e passei a documentar também a rodovia Belém-Brasília, igualmente emblemática nesse ciclo de investimentos realizado pelos governos militares na ocupação da Amazônia, que incluia a abertura de grandes estradas entre as décadas de 1950 e 1970 para estimular a “integração nacional”, parte do plano de ocupação e exploração das riquezas naturais mapeadas na região Amazônica.
Os relatos surgiram naturalmente. Ao fotografar uma família ou uma pessoa, sempre ganhava de presente uma breve “história” sobre o seu cotidiano, detalhes sobre suas motivações para decidir viver na Amazônia, seus sonhos e suas frustrações. Passei a organizar os depoimentos pessoais/familiares e incorporei esse procedimento ao trabalho de documentação fotográfica, centrado nos aspectos cotidianos dos habitantes dessas rotas e seu relacionamento com o meio ambiente. E assim foi se constituindo um arquivo de imagens que revelam as táticas desses trabalhadores , em sua maioria migrantes, para se sustentarem nas margens das estradas, relatos que revelam suas sensibilidades. Histórias cruzadas, de vidas como as de Antônio, Severino, Maria, Cândida, Tereza, Edmilson, João, Adalto, Herculano, Carolina, Tatiane, Estácio, Domingas e seus sonhos de sorte, presentes em corpos – memórias e sugeridos nas múltiplas lacunas e silêncios que a minha interpretação desses encontros deixa por vir.
“A pedra” era um dos protocolos utilizados pelos funcionários do INCRA para demarcar os loteamentos e representava para muitos migrantes a promessa de que um dia aquela terra seria oficialmente sua.
“A testemunha da terra é a pedra… a pedra do INCRA, ela é acreditada porque ela é federal”.
Antônio Lopes, 65 anos, maranhense.
O homem de olhar perdido descansava às margens da rodovia Belém-Brasília, no município de Porto Franco (TO), misturado à paisagem. Autorizou com um leve aceno de cabeça o pedido para ser fotografado. Seu nome? Severino. De onde vem? Do Nordeste. Foi tudo que revelou sobre si mesmo. Seu Severino, andarilho, um entre muitos que vagueiam pela rodovia Belém-Brasília desde a sua construção.
“Acho que chegamos aqui lá por 1969, viemos pelo pico de cavalo, nesse tempo já se falava nessa Transamazônica. Naquele tempo já se dizia de abrir a estrada, de chegar a energia, o asfalto. Depois veio o INCRA, demarcando os lotes. Viemos do Ceará de navio, meu pai, mãe e um monte de menino. Logo uns foram morrendo, de doença, de pau que caiu em cima deles e assim foi. Acabei casando com um potiguar e tivemos sete filhos. Eu sempre acreditei que um dia esse asfalto, a energia, tudo ia chegar. Mas de tudo que passei de difícil aqui, a única coisa que não esqueço é do meu filho, Antônio, que morreu de barroada de moto, aí na Transamazônica. Porque com tudo sempre acreditei que esse asfalto que tá aí agora, ia chegar, assim também como a energia. As outras pessoas é que não botavam fé. Mas eu tenho fé, e tá aí. Agora a preocupação é só o medo de aparecer também, junto com ele, os assaltos, a violência, que já começou. Agora aqui a gente tem que fechar as portas, porque faz medo’’.
Maria Rodrigues Pinheiro, 65 anos, cearense, município de Altamira (PA), Transamazônica, 2009.
“A minha família é pobre de berço. Estudo não tive não, porque quando a gente tava aprendendo, dava a época de apanhar o arroz e ia todo mundo pra roça. Quando voltava já não sabia mais o que tava fazendo. Pra cá, nós viemos em duas carretas, trouxemos gado, tudo… Aí cheguemos aqui eu e meu marido, pra tentá a vida, até que ele morreu. Fiquei sozinha com sete filhos. Aí eu fui, casei com esse outro, o Francisco, ele que me ajudou a criar meus filhos. E sempre assim, permanecendo aqui nesse lugar velho”.
Tereza Pereira , 57 anos, Miracema do Norte (TO), Pacajá (PA), 2004.
“Eu vim pra trabalhar e ajudar a minha família, porque eles eram muito pobres. Meu pai saiu pelo mundo, pra São Paulo, pro Paraná, ficou anos andando assim. Aí morreu e ficamos sem ajuda de ninguém. Eu vim pra cá pra ajudar eles. Vim com uma família. Lavava, passava, arrumava a casa… Fiquei com eles durante sete anos, depois eu estudei aqui na Candangolândia mesmo, saí de lá e comecei a trabalhar. Trabalhei em restaurante, padaria, funerária, de vendedora ambulante, firma de limpeza. Depois que eu tive essa criança, eu tô trabalhando em casa de família de novo e continuo mandando dinheiro pra minha mãe.”
Maria do Rosário Barros, 35 anos, piauiense, Candangolândia (DF), 2004.
“Eu era caminhoneiro, carregava era muita carga pra Belém, de cimento, açúcar, farinha. Andei por tanto canto que já nem me lembro. Quando comecei a dirigir, os galhos dos cajueiros atravessavam a estrada, era uma mata só. Aqui, até visagem tinha. Uma mulher bonita, com cabelo no vento. Dizem que ela morreu de uma barroada. Na Transamazônica eu via era muito desastre, de resto não lembro muito bem não. Mas o começo dela tá aqui. Quando começaram a renovar a estrada eles botaram o marco zero dela aí.”
João Herculano Carneiro, 66 anos, paraibano, Cabedelo (PB), 2009.
“Viemos em 70. Eram seis famílias num pau de arara. Lá de casa eram dez pessoas: eu (com oito anos), sete irmãos, meu pai e minha mãe. Todos fugimos da seca. Falaram pra gente que aqui tinha terra e água.”
Jedeun Conceição Silva, 38 anos, potiguar, Davinópolis (MA), 1999.
“- Como eu estou te falando, eu andava batalhando uma terra pra mim né, que é o que eu quero, o meu sonho, que nem tu tá falando agora, é uma terra. Arrumar um pedaço de terra pra mim trabalhar e criar meus bichos. Mas até agora Paula, eu não arrumei né? Já mexi nessa inscrição, fiz, gastei, aí veio carta pra mim uma vez, aí nunca mais veio. Que esse projeto do Governo, que ele pega a gente, já leva pra terra, então parece que eu achei, encontrei um lugar. Mas se for pra invadir eu não vou invadir nada dos outros né? Pra mim invadir eu não concordo com a invasão de ninguém. Então, quero ver se consigo uma terra, agora eu tenho que conseguir trabalhando.(…) Já a olaria, ah! tem que largar porque aqui tá acabando, não tá Paula? Quando tu veio naquela época, o primeiro ano que tu veio, tu veio 1, 2 anos seguidos, não foi? A olaria era animada. Dessa vez que tu veio, tu andou na olaria?
– Andei e não vi nada.
– Não tem nada, acabou a olaria, tá acabando. A cerâmica tá tomando nosso serviço, esse tijolinho que nós faz aí, nós tamo fazendo, e já trabalha pra corretor, pra terceiro, então nós que somos produtor dele, nós não ganha nada.”
Edimilson Rodrigues, ex-garimpeiro, oleiro, na Rodovia Belém-Brasília , Imperatriz (MA), 2004.
“Aqui a estrada era de barro e a gente andava de marinete. Aí começaram a falar de uma pista grande, que o governo ia construir. Mas nunca que ninguém acreditava, imagina, uma estrada nesse meio de mundo. Aqui era muito atrasado, só era bom chegar de navio. Por isso se falava de uma estrada, pra transportar a carga que chegava pelo mar e seguia pra João Pessoa.”
Therezinha da Silva Carneiro, 67 anos, paraibana, Cabedelo (PB), 2009.
“A fotografia é importante porque é uma lembrança. Mesmo que a gente se acabe, fica aí, ‘funcionando’, e todo mundo vê”.
Dona Maria da Glória Cruz de Lima, 72 anos, rodovia Transamazônica, Rio Azul (AC), 2004.///
Paula Sampaio (1965) é fotógrafa e estudante de História (Programa de Pós Graduação em História Social da Amazônia/PPHIST). Escolheu Belém para viver e trabalhar. Foi aluna de Miguel Chikaoka na Fotoativa. É graduada em Comunicação Social (UFPA) e especialista em Semiótica (PUC/MG). Atuou no jornal O Liberal como repórter-fotográfica e editora de fotografia entre 1988-2015 (www.paulasampaio.com.br).
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