Ensaios

Se eu interpretar uma fotografia…

Luana Lorena, Henrique Fujikawa & Rafaela Tavares Kawasaki Publicado em: 24 de julho de 2025

Livro Fujikawa – o sol daqui brilha amarelo, de Henrique Fujikawa, 2025. Editora Tempo D’Imagem.


Minha bisavó e eu não convivemos. Ela morreu cedo, décadas antes de minha existência ser anunciada. Chegaram a mim detalhes esfiapados de sua história, ainda que carregados de circunstâncias fatídicas. Tenho comigo uma cópia da lista geral de passageiros do navio Santos Maru que documenta sua chegada ao Brasil em 1929. Minha bisavó se despediu do Japão no porto de Kobe, sem saber que jamais voltaria. Subiu na embarcação a vapor junto do marido, com o primeiro filho ainda bebê, a mãe e a avó. Seu nome era Fumiyo e ela tinha apenas 19 anos. Morreu em Pereira Barreto (SP), onde se estabeleceu em um terreno designado à família. A cidade, antes chamada Novo Oriente, foi uma área de colônia japonesa. Quando era vivo, meu avô contava que era criança na ocasião da morte de sua mãe. A partida dela sempre foi mencionada junto da despedida entre a família e seu marido, que faleceu de repente pouco tempo depois. Nunca me explicaram as condições dessas duas mortes. Há muitos silêncios e névoas nas casas nipo-brasileiras.

A primeira vez que vi minha bisavó foi há sete anos. Eu vasculhava, então, um arquivo de fotografias digitalizadas por meu tio. Expor-me ao contato com imagens como a sua fez parte da investigação que eu conduzia para inflamar minha escrita ficcional sobre famílias de imigrantes. O retrato de Fumiyo me transfixou de imediato, criei com ele uma relação de afeto unilateral. Ainda hoje, aquela fotografia me assombra.

No centro do retângulo está o olhar de uma mulher. Ela encara a câmera como quem atira uma flecha. É uma mirada direta, diferente daquela que percebo nos retratos de outros integrantes da família na mesma época. São olhares que desviam do fotógrafo, como se as lentes intimidassem. Fumiyo, não. Seu olhar contrasta com a modéstia que emana da sua boca séria, bem fechada e da gola quase na altura do queixo. Reconheço em suas pálpebras, nariz e maxilar feições de uma prima, uma tia. E minhas. Vejo seus cabelos repartidos da forma lateral, da esquerda para a direita, a mesma direção que por décadas dividi os meus em um gesto sem reflexão. Combinamos, sem querer.

As pontas de suas mechas pesam com ondulações artificiais dos fios, firmadas à moda ocidental. Os cachos transmitem calor e jovialidade. Eles emolduram a fisionomia de Fumiyo, evitam que qualquer sombra cubra seu rosto. O casaco de gola redonda e a estampa forte de sua camisa também são de estilo europeu. Ao contrário de sua mãe, em uma fotografia vizinha, Fumiyo não veste quimonos naquele registro. A modernidade nas escolhas de seu guarda-roupa e penteado, nada tradicionais, denunciam a vivência em um ambiente urbano do Japão pré-guerra.

Meu olhar viciado pelo conhecimento prévio enxerga traços de uma tragédia naquela imagem. A juventude de Fumiyo me perfura. É um lembrete de que ela morreu antes do amadurecimento, em um país estrangeiro, onde viveu dias de trabalho no campo e passou por uma série de partos. Mesmo se eu me forçar a imaginar o timbre de sua voz e as frutas de sua predileção, num exercício lúdico que a fotografias me convida a fazer, a melancolia, para mim, se impregnou nos pigmentos daquela imagem.

Penso também na materialidade do papel com pequenas manchas e riscos. Os tons acastanhados da fotografia se originam de um processo de tonalização sépia feito durante sua revelação. Se desenvolvida sem aparatos de proteção e ventilação adequada, os gases produzidos pelo sulfeto de sódio podiam ser tóxicos a quem estivesse no laboratório. A fotografia sobreviveu ao tempo. Fumiyo, o operador da câmera e o técnico da revelação, não.

Desde que vi o retrato de minha bisavó, cada vez que encontro fotografias antigas, sobretudo peças que compõem acervos de memórias da diáspora japonesa, algo de mim se desloca para Fumiyo.

Nessas ocasiões, meu olhar não é isento. Mas afinal, quem é um observador puramente passivo quando se relaciona com fotografias de arquivos familiares, mesmo que alheios? Encarar retratos por segundos seguidos desconcerta quase tanto quanto olhar fixamente o reflexo no espelho. Muitas vezes atribuímos às imagens narrativas o que no cinema é chamado de efeito Kuleshov (que explora a percepção do espectador e mostra como a combinação de imagens pode criar significados diferentes do conteúdo original), numa mistura de adivinhação, invenção e associações. A depender da disposição delas em álbuns e porta-retratos, acreditamos desvendar as emoções das pessoas ali congeladas. Isso quando não somos contaminados por nosso próprio repertório sentimental.

Sejam seus produtores e guardiões conscientes ou não, as fotografias são uma tecnologia da memória. Fazem parte de ritos sociais de construção de uma crônica visual da família, como diz Susan Sontag. Elas celebram e reafirmam a família nuclear enquanto unidade e identidade. Nenhuma memória é neutra ou inocente.

Nas brechas daquilo que as fotografias não mostram habitam escolhas. Para nos relacionarmos com fotografias, nós interpretamos as imagens e as decisões que participam de sua criação.


Recorte de fotografia. Na cena, Dona T. (avó de Maitê) e sua sogra. Conjunto de Maitê Miwa. Do livro Canção à poeira, de Luana Lorena, 2024. Autopublicado.

Dois fotolivros de artistas nipo-brasileiros fazem dessa interpretação uma expressão artística: Canção à poeira (2024), de Luana Lorena, e Fujikawa – o sol daqui brilha amarelo (2025), de Henrique Fujikawa. Ambos formam uma experiência complementar justamente nos pontos onde se diferenciam com radicalidade. Participar dessa triangulação entre fotografias, esses dois artistas que as manipulam e nós mesmos, enquanto espectadores, possibilita reconhecer que o olhar sobre registros de arquivo é também uma projeção inventiva, simbólica e política sobre o passado dos outros e, inevitavelmente, sobre o nosso próprio.



Livro Fujikawa – o sol daqui brilha amarelo, de Henrique Fujikawa, 2025. Editora Tempo D’Imagem.

Fujikawa – O sol daqui brilha amarelo surgiu das inquietações que por anos mobilizam Henrique. O livro investiga o que significa estar em um entrelugar, o ponto de encontro entre idiomas, localidades, imaginários, crenças e existências enquanto brasileiro, amarelo e descendente de imigrantes. Em uma das inscrições que habitam a publicação, Henrique se posiciona como o fruto da esperança de seus antepassados.

No fotolivro, são conjugadas colagens, fotografias de arquivo familiar, papeis de origami, envelopes celebrativos japoneses e intervenções visuais. Tais elementos tecem um mapeamento por meio do qual Henrique busca situar a si mesmo e à sua família em meio aos fluxos de um movimento diaspórico. Gráficos cartográficos se sobrepõem ou flutuam avizinhados de retratos familiares. Eles são indicações explícitas do deslocamento. Demarcam a tentativa de se dialogar com territórios navegados por memórias e distâncias.


Não é por coincidência que parte das articulações de Henrique anteriores a Fujikawa envolveram manifestar seu estudo artístico sobre brasilidade, identidade e amarelitude por meio de lambes. Se antes ele fixou colagens em postes e passagens urbanas, no fotolivro ele pratica outras formas de ocupação.

As fotografias de Fujikawa são rastros de uma ancestralidade continuamente relida e apropriada. O gesto de Henrique é o da intervenção. Por meio das alterações e combinações de imagens, o artista reconstrói visualmente o que pulsa em retratos e registros. Desse modo, sua arte sinaliza a ocorrência do punctum, elemento da relação humana com a fotografia proposto por Roland Barthes para descrever os detalhes da imagem que tocam e ferem. As interferências de Henrique potencializam aquilo que punge nas fotografias de antepassados por meio de recortes vazados, distorções, colagem e colorização.

É nesse sentido que sua poética da imagem ocupa território tanto físico quanto simbólico. Está nos campos, na feira, no bairro da Liberdade, no espaço oceânico. Mas também nos corpos racializados, nos signos culturais e na herança. As cores introduzidas por Henrique em fotografias que antes eram monocromáticas ou sépia são em sua maioria quentes, como o sol dos trópicos e subtrópicos, como a esfera vermelha da bandeira japonesa, como o amarelo que se associa a etnias asiáticas. Ele faz distorções visuais que lembram o efeito de miragens térmicas sobre as cidades. Em vez de emanar do asfalto, elas envolvem rostos, mãos e troncos. Esse calor é geopolítico e histórico, mais do que apenas estético.


Livro Fujikawa – o sol daqui brilha amarelo, de Henrique Fujikawa, 2025. Editora Tempo D’Imagem.

Páginas duplas do livro formam colagens de quimonos com estampas de origami e fotografias. Simbolizam o que existe de se despir no ato de escancarar memórias familiares. São dobraduras que se transformam em frestas de janelas que podemos abrir e fechar. Também formam passagens para mares, plantios e viagens por lugares de passagem na experiência de migração.

A recorrência de flores ao longo do livro também vai além da função de ornamento. Elas estão nas fotografias e nos papeis de origami recorrentes nas colagens. São símbolos de uma herança que vem do trabalho na terra, afinal, a família de Henrique cultivava flores para viver.  Pontuam esforço e relação com lugares. Curiosamente, seu sobrenome contém o kanji de Fuji, ideograma que representa flores chamadas glicínias, que na cultura japonesa simbolizam perseverança e longevidade. A botânica da memória se entrelaça ao legado dos antepassados de Henrique da mesma forma que ele a fixou às páginas do livro.


Livro Fujikawa – o sol daqui brilha amarelo, de Henrique Fujikawa, 2025. Editora Tempo D’Imagem.

Ao interpor e contrapor essas camadas, Henrique propõe um modo de pensar a identidade brasileira como enlaçamento de Brasil e Japão, rural e urbano, trabalho braçal dos pais e educação de descendentes, entre recordar e reler. Suas imagens aproximam tradições nipônicas com as de outras culturas brasileiras, como o posicionamento de tsuru e galo de terreiro, documentos japoneses dentro de uma paisagem tropical, um mapa do Brasil emanando raios verdes sobre meninas de quimono tingidas de amarelo.

São arranjos que sugerem hibridez. Mais do que isso, Henrique tensiona estereótipos antes impostos, se apropria deles até torcê-los, para entender em quais pontos eles se originam de manifestações legítimas de identidade, quais nós desfazer para os desvincular de piadas e do pejorativo. Confinar a experiência nipônica no Brasil à atividade de feirante é limitante, por exemplo. Mas entender que o passado de muitos avós japoneses envolveu sim o trabalho com a terra e comercialização de hortifrutis é um ato de reconhecimento de etapas históricas, de esforços e esperanças.

O entrelugar de Fujikawa fricciona memória e raça. Pensar a amarelitude no Brasil é também refletir sobre uma migração que se desenhou sobre um território marcado pela colonização, séculos de escravização, pelas manifestações de outras culturas e formas de resistência. Henrique carrega para o livro a imagem da Capela dos Aflitos e da reunião interracial de pessoas no campo como forma de entrever questionamentos. Quais as possibilidades de tensões, mas também integrações e gestos de respeito abertos por esses encontros?



Recorte de fotografia. Retrato de Toshiko Nakahara, avó de Luana. Conjunto de Luana Lorena. Do livro Canção à poeira, de Luana Lorena, 2024. Autopublicado.

Acomodo um exemplar de Canção à poeira em meu colo. O livro tem o formato, a encadernação e o peso de um álbum familiar. Acaricio a textura da capa de tecido. Contemplo a horizontalidade de sua diagramação. Ao virar as páginas, percebo que se trata de um álbum reinventado.


Nele, Luana Lorena estabelece sua arte como uma ponte entre tempos, histórias e corpos, matérias para a composição de existências familiares múltiplas. Quando conversamos, ela me contou que interpretar a fotografia e fazer as intervenções de um restauro é comparável com uma tradução. A reprodução digital leva a imagem de um suporte para o outro. É possível manter uma fidelidade extrema ou adulterar. Tradução é interpretação e reescrita. Talvez o trabalho de Luana seja isso também, penso ao transitar pelo livro.

Percebo na estrutura física do livro uma materialidade que me remete a dois conceitos que vêm da teoria da tradução: transparência e opacidade. Em termos simples, uma tradução transparente é aquela em que há adaptações de referências culturais e linguagens. A experiência do leitor é desviada de estranhezas. Já o texto opaco mantém esses estranhamentos com a intenção de alteridade, permitindo que se perceba a atuação de quem traduziu e a existência do texto-fonte como originado de outro lugar, de outro idioma.


Zé, avô de Teo. Conjunto de Teo Teotonio. Do livro Canção à poeira, de Luana Lorena, 2024. Autopublicado.

Digitalizar e restaurar fotografias é, nesse sentido, um ato que oscila entre a tradução opaca e a transparente. Quem o realiza pode optar por retocar as marcas do tempo, como sinais de mofo, riscos, dobras. Ou por mantê-las, deixando visível a passagem dos anos. Outro caminho é criar reproduções onde se disfarça efeitos de umidade, queimaduras, cortes e fungos. Há uma terceira via: transitar por diferentes graus das duas possibilidades, como uma expressão de arte, uma visão crítica sobre tempo e memória.

Canção à poeira escolhe lidar com essa tensão. Às vezes, de forma literal. As páginas com fotografias são intercaladas por folhas de papel seda. Em algumas inserções, esse material apresenta impressões escuras que filtram a visibilidade. Por um momento, fica suspenso o que iremos enxergar a seguir. Quando viramos a página encontramos fotografias onde Luana escolhe deixar que as marcas do tempo se manifestem, dispostas em tamanho original. Em outras, as imagens são ampliadas, recortadas, com intervenções que pendulam entre revelação e mistério.

O fotolivro intercala as memórias de dez famílias distintas. Algumas delas, como a de Luana, são nipobrasileiras. A amarelitude em território nacional não é veiculada de forma tão explícita e inquieta como em Fujikawa. Mas ela se articula ao relacionar as experiências de vidas daquelas famílias com as vivências de outras ancestralidades. Elas se integram.

Outras famílias do livro têm como integrantes pessoas negras, pardas e brancas. Essa justaposição vibra diversidade. Canção nos lembra que apesar de todas as convenções e uma aparente universalidade, a vida familiar brasileira é, sim, plural. A relação de cada pequena comunidade com a fotografia analógica também.

Importante lembrar que os álbuns de família são uma tecnologia restrita a um pequeno recorte de tempo na história da experiência humana. Antes da fotografia analógica, a memória familiar se expressava pela oralidade e pela herança de relíquias, como ornamentos, joias, peças utilitárias e artefatos religiosos. Foi a partir de meados do século 19 que o acesso a daguerreótipos se popularizou em algumas partes do mundo. O custo era mais baixo, mas ao mesmo tempo nunca foi acessível de forma uniforme para todas as famílias. Mesmo ao longo do século 20, criar um acervo extenso de registros fotográficos dependia de possuir câmeras, comprar filmes fotográficos e pagar por revelações e ampliações. A frequência com que se podia permitir posar para retratos era desigual. A depender de recursos financeiros, se restringia a momentos raros e solenes.

Canção à poeira nos leva a considerar as assimetrias no ato de fotografar e ser fotografado. As fotografias ali foram feitas com parcimônia ou excesso? Quais as condições com as quais cada família lidou para armazená-las? Como eram os espaços de convivência e festividades que ambientam as imagens? E, principalmente, o que as pessoas escolheram mostrar?

As decisões de Luana sobre quais partes das fotografias recortar, esconder, exibir integralmente, evidenciam que não há neutralidade da memória. Opor e reunir diferentes retratos cria temáticas, contrastes e suposições. Apresentar fragmentos de imagens de lugares, corpos e objetos provoca quem vê a participar da interpretação. Navegamos pela impressão de que toda imagem guarda uma intenção, uma ausência e uma pungência. Dessa forma, Canção é também um ensaio sobre a materialidade da fotografia em sua vulnerabilidade, variação de tamanho, limitação e objetos escondidos que podem ser descobertos na ampliação.


Hiroshi Ussami, avô de Gabriel, retocando um negativo em seu estúdio. Conjunto de Gabriel Ussami. Do livro Canção à poeira, de Luana Lorena, 2024. Autopublicado.

Ao traduzir estes momentos, a artista nos conduz a andar pela linha tênue que separa o que é público e íntimo nas fotografias familiares. Quando nos depararmos com um colo sem rosto, mãos que colhem flores ou uma criança no canto de uma parede, nos vemos diante de um fragmento de mundo que compreendemos apenas parcialmente, uma fresta de memória que as famílias escolheram compartilhar com o outro. Essa exposição se contrapõe com o silêncio do que as mesmas pessoas preferiram reservar para si – ou mesmo para um ato de apagamento. Luana dá atenção ao visível e o invisível. Seu fotolivro é também um trabalho de escuta.


Recorte de fotografia. Retrato de Ednailma Matos, mãe de Carlos. Conjunto de Carlos Matos. Do livro Canção à poeira, de Luana Lorena, 2024. Autopublicado.

Canção tem na sua feitura o ato de prosear. O tratamento das fotografias foi feito em paralelo a conversas com os guardiões de cada uma das imagens. Luana sabe que para trabalhar com a memória e se fazer ponte é preciso pedir licença. O índice fotográfico é um compilado dessas prosas. Porém, alguns dos causos são curtos e esbarram no esquecimento.

Assim, o livro tece uma ligação entre a intervenção em fotografias e os mecanismos do lembrar. Há interferências na formação das recordações. Nenhuma delas abarca o momento vivido de forma integral. Inflama, sim, partículas do que se passou de forma volátil. Cada revisitação reforma a memória e muitas vezes chegamos a elas acompanhadas dos empréstimos que fazemos. Carregamos poeiras dos relatos de outras testemunhas, de registros, da nossa reinvenção. É preciso se reconciliar com isso, penso enquanto navego por Canção.


Recorte de fotografia. Retrato de Toshiko Nakahara, avó de Luana. Conjunto de Luana Lorena. Do livro Canção à poeira, de Luana Lorena, 2024. Autopublicado.

Os mistérios que permanecem nas fotografias mesmo após a leitura do índice fotográfico devolvem ao espectador a força de interpretar as imagens, participar dessa arqueologia do olhar como forma de estabelecer relações com o tempo, a preservação e a memória.

Para Susan Sontag, toda fotografia é um memento mori. Ela nos conta que tirar uma foto é assumir a mortalidade, assim como congelar momentos, pessoas e coisas significa transformá-los em testemunhas da passagem dos anos. Mas ao ver o trabalho de Henrique e Luana sou levada a concordar com Roland Barthes: a fotografia é uma ressureição.

Depois de conviver por dias com os livros de Henrique Fujikawa e Luana Lorena, voltei aos arquivos fotográficos da minha família. Encontrei ali pessoas que nunca conheci, que ainda não sei onde viveram ou morreram. Desta vez quem me impressionou foi a minha tataravó, vestida de quimono ainda jovem, em pose rígida. Só mais tarde, ao ampliar uma pequena fotografia, percebi que ela reaparecia, já idosa, em outra imagem. Vi a mesma mulher em um corpo transformado, envelhecido e mais suave, ao lado de meu pai ainda menino. Reparar no encontro entre os dois foi uma descoberta me tocou de maneira inesperada. Não sabia que eles haviam convivido. Nunca ninguém me disse.


Roseli, mãe de Teo. Conjunto de Teo Teotonio. Do livro Canção à poeira, de Luana Lorena, 2024. Autopublicado.

Há uma fotografia em que estou. Sou uma criança pequena ao lado de um bolo de casamento, o dedo sujo por ter sido afundado na cobertura. Eu não me recordava daquela pose, mas me lembrei do frio do dia, da meia-calça vermelha que vestia. Não sei se fui espontânea ou se apenas encenei o que me foi sugerido. Na minha família paterna, era comum incentivar as crianças a fazerem caretas e gracinhas diante da lente. Essa dúvida me ocupou por instantes. Em outro retrato, meu pai surge com o rosto ainda ingênuo, antes que o tempo o endurecesse. Pensei na criança que ele foi e que ignorava o andamento do futuro.

Estabelecer relações com imagens familiares não deve trazer expectativas de se encerrar narrativas, pois essa é uma negociação que reabre fissuras entre o que foi guardado e o que foi esquecido, entre o que se mostra e o que se omite. Chegamos sempre a uma zona opaca.

Mas interpretar uma fotografia de família não é recuperar um passado puro. É lidar com aquilo que insiste em permanecer, mesmo incompleto. Ainda que sem respostas, podemos continuar a interrogar a memória, como fazem Henrique e Luana. Se eu ocupar territórios do passado e criar pontes com todos os nossos ontem, continuo a mover aquilo que constitui o que sou, nas margens do invisível. ///


Rafaela Tavares Kawasaki (Araçatuba – SP, 1987) é autora dos livros Enterrando gatos (Editora Patuá, 2019) e Peixes de aquário (Editora Urutau, 2021), finalista do Prêmio Mix Literário Literário, e Memórias de Água (Telaranha Edições, 2025), realizado por meio da Lei Paulo Gustavo. Integra o coletivo literário Membrana. Seu trabalho Venha ver a revoada – projeto de criação aberta de romance sobre migração brasileira no Japão é um dos selecionados pelo edital Rumos Itaú Cultural 2023-2024. Identidade, memória, imigração e família são temas de sua obsessão.



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