Reserva de futuro
Publicado em: 29 de agosto de 2022Como começar a falar sobre o Mauricio Lissovsky? Na apresentação do corpo docente da página da Eco/UFRJ, Mauricio é historiador, redator e roteirista. Entre as alunas, alunos e alunes, da graduação ao pós-doutorado, ele é orientador, mestre e interlocutor; para os amigos e amigas, é um grande companheiro, generoso, criativo e bem-humorado. Para sua querida família, é irmão, pai afetuoso, sempre presente e amparo para o crescimento.
Como intelectual, Mauricio promoveu uma unidade própria na diversidade, pois tomou a fotografia como plataforma de observação do mundo, meio de conhecimento, forma de expressão e síntese do pensamento histórico moderno. Em seus estudos, propôs uma história fotográfica com grande inspiração em Walter Benjamin e, recentemente, em Roland Barthes. A criatividade, em sua proposta, apoiava-se em uma erudição consistente, formada, não só por leituras, mas também por imagens, em um movimento comparável ao de Aby Warburg em seu Atlas Mnemosyne. As associações entre as figuras, iluminação das ideias, pausas para pensar na criação de afirmativas são traços de um intelectual que vai fazer falta e de um amigo fundamental para a minha formação intelectual.
Ao reconstituir a trajetória do Mauricio, reconheço o movimento de uma geração que se engajou nas lutas pela reconstrução do estado de direito, consolidou o campo de estudos das ciências humanas e sociais em bases interdisciplinares e ampliou os mundos da arte com inclusão e diversidade social, étnica e de gênero. Os tempos da trajetória de Mauricio configuram-se como partes de uma experiência complexa em que a vontade de atuar no mundo vinha sempre acompanhada de um conjunto de ideias originais.
Nos anos 1980, ainda na graduação, Mauricio foi professor de ensino médio e pesquisador do CPDOC, onde começou como estagiário e depois pesquisador do setor de fotografia. Mais tarde, transferiu-se para a Eletrobrás a convite de Renato Feliciano Dias, que havia estudado na UFF junto com ele. Neste mesmo período, foi consultor na Funarte, participando do grande movimento pela afirmação da fotografia no Brasil. Valorizou a fotografia no sistema de arte, participando da realização das semanas de fotografia por todo o país. Ao mesmo tempo, promoveu seu reconhecimento como documento histórico, por meio da identificação da natureza específica das coleções e arquivos fotográficos. Mauricio defendeu um lugar de projeção para a fotografia nas políticas públicas relacionadas à cultura.
Já nos anos 1990, voltou-se para o terceiro setor, engajando-se em várias frentes de ação: Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Associação Brasileira de Ongs (Abong) e o Viva Rio, onde atuou no desenvolvimento e implantação de sistema de avaliação de desempenho e aprendizagem em projetos de educação de jovens e adultos do ensino fundamental. Trabalhou, também, como pesquisador no Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser) e no Instituto Brasileiro de Análises Econômica (Ibase). Pesquisa-ação marcaria esse novo movimento na sua trajetória profissional.
Paralelamente à sua atuação no movimento social e institutos de pesquisa, complementaria sua formação em nível superior sob orientação de Márcio Tavares do Amaral, na Eco/UFRJ, entre os anos de 1994 e 2002. Encontramos traços de sua dissertação de mestrado, “A Fotografia e a pequena história de Walter Benjamin”, e de sua tese de doutorado “O Refúgio do Tempo: investigação sobre a origem da fotografia moderna”, em toda a sua produção intelectual subsequente, sistematizando conceitos, ideias e estratégias narrativas. Esse foi o momento em que Mauricio abraçou a fotografia como objeto teórico e a história das imagens como lugar de adivinhação. Mauricio tornou-se o fotógrafo-leitor que Walter Benjamim conclamava, o “profeta das entrelinhas” ou um “fotografólogo”, expressões cunhadas por ele, no clássico: “Dez proposições acerca do futuro da fotografia e dos fotógrafos do futuro” (Facom n. 23, 2011):
“Uma história que se ocupa das imagens é sobretudo uma história do futuro, uma história poética. De modo geral, os historiadores acreditam que as descobertas que realizam resultam da sua argúcia. Deixam escapar que é por meio do futuro guardado nas imagens que os vestígios do passado nos visam e ainda nos dizem alguma coisa. Todo “achado” em uma imagem de arquivo é um olhar correspondido que atravessa as eras, o reencontro de um porvir que o passado sonhara – e que somente nossos próprios sonhos de futuro permitem perceber.”
Mauricio tornou-se, em 1997, professor da Eco/UFRJ, responsável pela formação de profissionais nas áreas de cinema, televisão e vídeo. Como roteirista, atuou em várias produções artísticas, como o memorável A pessoa é para o que nasce (2004), dirigido por Roberto Berliner e Leonardo Domingos, onde as inesquecíveis irmãs cegas fizeram história cantando e tocando ganzá em Campina Grande, Paraíba. Também trabalhou com roteiros para teatro e artes visuais.
Ao longo dos últimos 15 anos, Mauricio se dedicou ao ensino de nível superior. Fez pós-doutorado, no Birkbeck College/Universidade de Londres, em 2007, e passou a integrar o sistema da pesquisa do CNPq. Como professor do programa de pós-graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, entre 2014 e 2018, assumiu a árdua tarefa de coordenar a área de Comunicação e Informação da Capes/MEC, o que lhe aumentou os fios brancos da barba. Atuou como visitante no Plas/Princeton University, em 2015, e foi professor visitante na Universidade Federal de Pernambuco em 2019, construindo uma rede sólida de interlocução nacional e internacional.
Depois de aposentar-se das aulas da graduação na Eco/UFRJ, em 2018, manteve-se na pós-graduação e coordenava um grupo de estudos onde semeou ideias geniais com bom humor e a generosidade de sempre. Nos dois últimos cursos que deu na Pós, retomou suas referências centrais: Benjamim e Barthes. Em “O crítico como criança”, Mauricio convocou os textos de Benjamim “Infância em Berlim” e “Rua de Mão Única”, que considerava “os mais originais ensaios de história cultural da primeira metade do século XX”, para decifrar “como as imagens da infância podem ser chaves de acesso para a compreensão da vida social”. Nesse curso, que misturava teoria prática, convidava o grupo a mobilizar materiais de suas próprias infâncias para experimentá-los como imagens dialéticas. A experiência resultou em uma pequena publicação independente, com textos dos alunos, organizada pelo Mauricio: O crítico como criança ({LP} Press, 2019).
Em 2019, Mauricio dedicou-se a refletir, em profundidade, sobre último livro de Roland Barthes: A Camara Clara (1980), quarenta anos depois de seu lançamento. Essa pesquisa resultou em outro curso e
em uma bela publicação, O Ф da fotografia (IDEA, 2021), dedicada a sua mãe – “que também amava Schumann”.
Fui sua caloura na graduação, no curso de história da Universidade Federal Fluminense. Depois, nos reencontramos quando Mauricio ministrava cursos livres de fotografia na Eco/UFRJ e era pesquisador da Memória da Eletricidade no Brasil, onde trabalhei como pesquisadora contratada – fui entrevistada por ele para o trabalho. Perdemos contato, para recuperar mais tarde, nos anos 2000, quando então eu já me tornara professora do departamento de história da UFF, estudando a relação entre fotografia e história. Não sem motivo, nossos caminhos foram se aproximando, as afinidades de formação se complementando por uma admiração mútua e por uma grande vontade de pesquisar juntos.
Sou sua leitora atenta. Mauricio publicou muito, cerca de quarenta ensaios, vários livros e artigos em revistas acadêmicas e de grande circulação. Na revista Zum, consolidou seu perfil de historiador fotográfico, atento aos desafios teóricos propostos pela relação entre a fotografia e a história. Em um desses artigos, tive a oportunidade de colaborar: “Orgulho da Tortura” (Zum #17, 2019), sobre imagens assombrosas feitas pelo Estado brasileiro durante a Ditadura militar que encontramos no arquivo do jornal britânico Daily Herald. Mas Mauricio foi além, instigando as fotografias a fazerem perguntas que não podiam ser caladas, como no ensaio “Para onde foi a senzala?” (Zum #7, 2015).
Também brincávamos que juntos tínhamos filhos e filhas, nossas orientandas e orientandos de mestrado e doutorado que trabalhavam com os nossos textos e referências teórico-metodológicas comuns, uma rica pareceria. Dividimos bancas, cursos de pós-graduação, artigos, drinques e a famosa costela no bafo, além de muita, mas muita alegria de existirmos ao mesmo tempo neste planeta.
Ele dizia que era da Serra, sempre foi fiel ao bairro onde nasceu, Santa Teresa, gostava de jazz e preferia beber destilados. Um brinde ao Mauricio Lissovsky (29 de março de 1958 – 25 de agosto de 2022), meu amigo querido, que viu, em toda a fotografia, uma reserva de futuro. Vida longa às suas ideias inspiradoras. ///
Ana Maria Mauad é professora titular do departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do CNPq e do Cientista do Nosso Estado Faperj. Autora de Poses e Flagrantes, ensaios de história e fotografias (Eduff, 2008) e organizadora de Fotograficamente Rio, a cidade e seus temas (Faperj/PPGH, 2016), entre outros trabalhos.
Textos de Mauricio Lissovsky na ZUM:
- “A fotografia é uma música” (2021)
- “Sebastião Salgado no país dos blefados” (2019)
- “Orgulho da tortura” (ZUM #17, 2019)
- “A outra volta do obelisco: as fotografias em torno do suicídio de Getúlio Vargas” (2018)
- “Para onde foi a senzala?” (ZUM #7, 2015)
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Pausas do destino: teoria, arte e história da fotografia, de Mauricio Lissovsky (Mauad X, 2014)
Refúgio do olhar, de Marcia Melo e Mauricio Lissovsky (Casa da Palavra, 2013)
A máquina de esperar: origem e estética da fotografia moderna, de Mauricio Lissovsky (Mauad X,
2009)
Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr, org. Paulo Cesar de Azevedo e
Mauricio Lissovsky (Ex Libris, 1988)