Ensaios

Protocolos diários e identidades possíveis

Renata Martins & Mônica Cardim Publicado em: 1 de junho de 2023

Da série Protocolos diários, de Mônica Cardim, 2020-2022

Os trabalhos fotográficos da artista paulistana Mônica Cardim têm em comum um mesmo ponto de partida: o legado filosófico da palavra ubuntu. De origem africana, o termo condensa uma cosmovisão crítica do indivíduo em relação a si mesmo, ao seu coletivo e à sua ancestralidade através da premissa “eu sou porque nós somos”.

Na sua obra, Cardim não apenas dá continuidade à missão tradicional do retrato na documentação, revelação e eternização da identidade e atributos próprios de cada pessoa retratada, mas também de sua narrativa pessoal e sociocultural, ao resgatar e conectar histórias coletivas e identidades.

O que Mônica Cardim quer provocar nas pessoas que observam suas criações fotográficas é justamente esse despertar do individual para o coletivo, de um reconhecimento do Eu no reflexo imagético do Outro (seja da artista ou de outra pessoa retratada).

“Como linguagem artística, a fotografia me permite materializar, dar concretude àquilo que percebo e sinto do mundo e das pessoas. De alguma forma, crio para lhes devolver o que vejo e vivencio, porque a fotografia me possibilita dialogar com as pessoas através do que percebo no mundo. Nessa minha missão, quero tocar as pessoas que têm contato com meu trabalho ao ponto sentir que dialogo com elas. Espero que, ao verem retratos e autorretratos produzidos por mim, elas vejam a si mesmas, se reconheçam e se identifiquem nas pessoas nos retratos que produzo”.

Irmãos Black Power, da série Identidades possíveis, de Mônica Cardim, 2015-2023

O deixar-se retratar e o sentir-se identificada através de uma imagem fotográfica são as primeiras memórias que Mônica Cardim guarda de sua infância.

“As minhas primeiras experiências e lembranças com a fotografia foram posar, com uns 4 ou 5 anos, tanto para um tio vindo de Salvador, um homem pobre e negro que retratou a mim e meus irmãos com sua Rolleiflex; e também para um fotógrafo ambulante, daqueles que iam de casa em casa oferecendo seus serviços num bairro periférico da Zona Sul de São Paulo. Dessas duas circunstâncias restam as poucas fotografias que tenho de criança. A memória de posar ainda tão pequena para aquele fotógrafo ambulante e da minha mãe passando babosa no meu cabelo, deixando-o ondulado e brilhante (numa espécie de ritual de preparação para essa sessão), é até hoje muito forte em mim. Ainda nessa época, antes de ser alfabetizada, minha mãe havia comprado a coleção da Enciclopédia Barsa e eu passava muito tempo observando suas imagens coloridas. Nesse folhear das páginas, uma fotografia me impactou muito: a da menina vietnamita correndo nua pela rua junto a outras crianças durante um ataque aéreo em meio à Guerra do Vietnã nos anos 1970. Eu não sabia qual era aquele contexto e porque ela estava naquela situação, só me lembro que fiquei muito tempo olhando aquela menina e tentando entender o que estava acontecendo com ela e do que estaria fugindo. De certa forma, eu me vi naquela menina. Essa foto ficou registrada em mim e, hoje, percebo que dialogou diretamente com aquela criança que eu era e gostava muito de contar e inventar histórias para mim mesma. Desde criança eu me sabia artista, mas me via principalmente como escritora para justamente narrar histórias de pessoas”.

Esse desejo de Mônica Cardim de se tornar artista e elaborar narrativas se concretizou através da linguagem fotográfica.

“Não é à toa que eu essencialmente fotografo pessoas. Por meio da minha câmera estabeleço um diálogo com elas quando as retrato e depois, quando temos o resultado das imagens. Tenho grande interesse no que as pessoas retratadas percebem, leem e interpretam de suas imagens”.

Da série Protocolos diários, de Mônica Cardim, 2020-2022

Essa prática de estabelecer relações dialógicas, relações de convivência, criação, transformação e percepção conjuntas acabou se tornando uma marca da artista.

“Por me perceber no corpo de uma pessoa dissidente, reconheço a importância de estabelecer diálogos através da arte. Minha série Identidades possíveis tem muito a ver com esse estabelecimento de diálogos e com o desejo de que uma pessoa possa se reconhecer na outra. Essa é uma série cujo protagonismo está nos cabelos naturalmente crespos, cabelos de pessoas pretas e que diz respeito às relações afetivas e políticas a partir deles e como a gente se percebe. Quando retrato essas pessoas, estimulo-as a performarem para a minha câmera, numa espécie de jogo em que brincam consigo mesmas, com a noção de quem somos, quem queremos ser e a fusão que surge disso.”

Identidades possíveis é um projeto que surgiu a partir de autorretratos de Cardim experimentando com a luz. Após esses primeiros testes, ela começou a convidar pessoas afrodescendentes a pensarem e registrarem o corpo negro. De forma natural e num diálogo fluido com a fotógrafa, cada pessoa começou a dar depoimentos muito íntimos sobre suas experiências com seus cabelos crespos ainda quando crianças e adolescentes, de quando, por exemplo, os viram pela primeira vez depois de décadas de alisamentos ou tranças. Isso muito provavelmente foi ativado pela imagem dos cabelos crespos da própria Mônica Cardim ilustrados na serigrafia do artista Eduardo Utima, transformado pela artista em cenário fotográfico.

“A questão do cabelo tem uma grande relevância. É por meio dele que temos a moldura de nossa face e parte da construção de nossa imagem. Escolher usar um cabelo crespo e volumoso, naturalmente do nosso jeito, tem um impacto político e afetivo imediato nas pessoas ao nosso redor. A experiência com o cabelo crespo diz respeito à nossa presença no mundo de maneira direta, e de como temos que estar conscientes das reações que nos causam imposições externas. Por isso, há uma força muito grande no diálogo entre nossos cabelos naturalmente crespos e nossas identidades retratadas nessa série.”

Lenna Bahule, da série Identidades possíveis, de Mônica Cardim, 2015-2023

Os retratos de Identidades possíveis foram exibidos em Buenos Aires em 2017, na exposição Identidades posibles: yo soy – nosotrxs somos. Ali, visitantes locais puderam vivenciar e compartilhar com a artista o impacto imediato e afetivo e a importância daquelas imagens expostas.

“Em Buenos Aires, um casal interracial (um afro-uruguaio e uma argentina branca) fez questão de me contar que haviam levado a filha à exposição e à sessão de retratos planejada para os visitantes por conta de uma experiência que aquela menina de sete anos tinha vivenciado justamente naquela semana. Ela chegou em casa chorando porque coleguinhas da escola não queriam mais brincar com ela por conta do ‘cabelo feio’. Os pais, que tinham lido uma matéria sobre minha mostra no jornal local, decidiram levá-la até lá e lhe mostrar retratos de várias pessoas com cabelos semelhantes ao seu. Acabamos nos conhecendo e foi de extrema importância tanto nosso diálogo quanto os retratos que fiz da menina com seu pai. O diálogo transforma as pessoas – e não estou falando somente de autoestima, mas de uma autopercepção da constituição de si mesmo como pessoa e como corpo coletivo. Esse é um questionamento central em meus trabalhos: Como nos constituímos como pessoas? Ao explorarmos nosso estar no mundo, nossas corporeidades – e, no caso dessa série, nossos cabelos naturais – à nossa maneira, isso tem o poder de despertar mais empatia, generosidade e delicadeza em todo nosso corpo social.”

Da série Protocolos diários, de Mônica Cardim, 2020-2022

Seu projeto mais recente, a instalação/performance Protocolo diário, foi exibido em novembro de 2022 no Museu de Arte Contemporânea de Universidade de São Paulo (MAC-USP). Nele, Cardim utilizou música, projeções de vídeos (aqui) e uma ação performática de autorretratos para revelar seus protocolos (ou rituais) diários em tempos pandêmicos de isolamento social.

“O projeto Protocolo diário me levou a trabalhar com a minha própria performatividade. Ele surgiu como um protocolo de sobrevivência, resistência e cura a partir de abril de 2020, no início da pandemia. Foi a minha forma de lidar com medos, angústias e tensões que se acumulavam com a quantidade de notícias sobre mortes diárias no Brasil. Eu precisava de rituais diários e, posar para minha câmera, era um deles. Decidi que faria esses autorretratos porque queria sair dessa crise melhor, queria aprender com ela, com a pandemia e com a crise política no país daquela época. Comecei o Protocolo diário para descobrir-me como uma pessoa humana e perceber-me como um corpo a ser identificado, que se cuida e sabe cuidar das demais pessoas. Para mim isso era – e ainda é – muito forte, pois quando usamos esse termo, ‘um corpo a ser identificado’, estamos falando de um corpo morto. Eu estava, ao contrário, evocando e retratando um corpo vivo ao longo de um período de muitas mortes, não somente por covid, mas também por muitas outras negligências, violências e genocídios contra povos indígenas e o povo negro. Eu precisava encontrar um jeito de lidar com toda essa violência cotidiana e, minha essência de educadora, levou-me a produzir o Protocolo diário para que eu aprendesse e ensinasse com tudo o que estava acontecendo ao meu redor.”

As sessões diárias de autorretratos começaram exibindo somente sua própria pele e tecidos monocromáticos. A cada nove dias a artista trabalhava uma fase distinta, guiada por uma cor específica. A fase vermelha foi executada, por exemplo, num período de reflexões sobre as urgências indígenas no país. Os objetos utilizados eram de seu cotidiano de isolamento social, de seu universo particular. Seu intuito era de não ocultar nada – um claro reflexo antagônico do que acontecia no país naquele momento. Os autorretratos que publicava em suas redes sociais eram uma maneira de lidar com seus medos, angústias, alegrias.

“Ao longo da produção, fui postando diariamente no Instagram e pessoas começaram a interagir comigo virtualmente, me pedindo para continuar publicando e produzindo meus autorretratos. Percebi que tinha, então, atingido meu objetivo: As pessoas estavam se reconhecendo em mim através daquele projeto, que me fortalecia e as fortalecia também. A partir disso, diálogos verdadeiros, reais e necessários com elas começaram a surgir. Isso não foi algo planejado, eu só decidi produzir todos os dias uma foto com o que eu tinha ao meu redor. Nisso, criei padrões e rituais para lograr uma foto boa por dia e fotografava até chegar a essa foto. Às vezes a sessão durava cinco minutos, outras vezes, meia hora.”

Assim, Protocolo diário tornou-se um projeto maior, uma fuga para muitas pessoas e que instigava cada vez mais o lado educadora de Cardim com a pergunta: O que as outras pessoas podem aprender com as minhas experiências e vice-versa?

“A única coisa que eu sabia é que eu precisava fazer esse projeto. Eu não sabia como seria o diálogo com as pessoas, mas precisava fazer aquilo primeiramente por mim, para me cuidar física e mentalmente, para poder estar de alguma forma em contato com pessoas conhecidas e que meu isolamento fosse somente físico e não social. Mas para isso, eu precisava olhar para mim. No entanto, o tempo todo eu estava refletindo o mundo externo com todos os fatos e angústias que me impactavam. É ainda muito forte pensar que durante a pandemia a gente viu a quantificação de mortes sem nomes próprios. Eu queria nomear essas pessoas a partir de mim mesma, especialmente a primeira pessoa a morrer de covid, uma empregada doméstica, Rosana Urbano. Eu presto a minha homenagem à essa mulher enquanto mulher negra que tem uma história e trabalha com educação, que fotografa e produz arquivos fotográficos, imagens, retratos que questionam outros retratos. Esse corpo a ser identificado em Protocolo diário é uma pessoa a ser nomeada em toda sua completude. Por isso, são várias ‘Mônicas’ que foram autorretratadas.”

Cardim encerrou seu projeto protocolar do cotidiano pandêmico em uma última sessão de autorretratos realizada na própria instalação de sua mostra no MAC USP. Ali, mesclou técnicas da fotografia e tecnologia de imagens com tecnologias ancestrais de cura através de ervas e flores fotografadas. Nesses registros de seu ritual de cura ancestral, a artista representa com seu Eu seus pares ancestrais e contemporâneos, conectados, evocados e eternizados em si. ///

Mônica Cardim é doutoranda em Artes pelo Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. Pesquisa a representação de pessoas negras em retratos fotográficos do alemão Alberto Henschel, produzidos no Brasil no século 19. Foi contemplada com o Prêmio Vídeo USP-TV Cultura 2020 com o vídeo Retratos transatlânticos: circulação de representações da afrodiáspora brasileira na fotografia de Alberto Henschel.

Renata Martins (1980) é educadora, crítica de arte e curadora independente natural de São Paulo e residente em Bonn, Alemanha. É mestre em Literatura Alemã pela USP e especialista em Curadoria de Arte pela Universidade das Artes de Berlin. Foi residente do programa Vila Sul do Instituto Goethe de Salvador (2020-2022), onde concebeu e organizou o Catálogo Arte Mais – Panorama de Artistas Transvestigeneres nos Brasil @catalogoartemais.

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