Peter Magubane: a fotografia como levante
Publicado em: 5 de julho de 2022Peter Magubane faz parte de uma geração excepcional de fotógrafos sul-africanos formada a partir do início da segunda metade do século 20. São profissionais que se aproximaram da fotografia considerando-a, principalmente, como um potencial modo de resistência e combate ao regime de segregação que se tornava cada vez mais brutal naquele período na África do Sul. Integram esse grupo nomes como Ernest Kole e David Goldblatt, além dos membros do coletivo Afrapix como Lesley Lawson, Chris Ledochowski, Santu Mofokeng, Guy Tillim e Paul Weinberg. Ao longo de suas carreiras, esses fotógrafos aliaram habilidades técnicas exemplares com uma dedicação apaixonada e duradoura à crítica e luta por mudança social.
Magubane é reconhecido pela maestria com a qual utilizou a fotografia documental como ferramenta em favor da justiça e de transformações na África do Sul. Sua história se confunde com a das trincheiras, e a fotografia é o elo entre ambas. A maior parte dos trabalhos de Magubane contextualiza-se nos períodos (e locais) mais turbulentos da história do país onde ele nasceu. Ao longo da carreira, o fotógrafo – que em janeiro completou 90 anos de idade – produziu enorme quantidade de imagens fotográficas e fotolivros. São trabalhos que foram capazes de contribuir para a sensibilização do restante do mundo a respeito das injustiças, sofrimento e opressão social e política que marcaram as mais de quatro décadas de vigência legal do regime apartheid no país.
Magubane nasceu em Vrededorp e cresceu perto dali, em um subúrbio de Joanesburgo chamado Sophiatown. Como milhões de negros sul-africanos, vivenciou e testemunhou a realidade diária de um racismo legitimado pelo Estado, que regulava acesso a espaços, condições de moradia e saúde, usos de transporte e demais serviços públicos, entre outras formas pelas quais a segregação se materializava. O fascínio pela fotografia começou cedo e nesse contexto. Pouco mais tarde, em 1955, tornou-se um dos fotógrafos oficiais da Drum, uma das raras revistas do país que na época que se atreviam a reportar as injustiças do apartheid. Entre os seus primeiros trabalhos estavam as coberturas de eventos como a Convenção do Congresso Nacional Africano (1955), a marcha multirracial das mulheres em Pretória (em 1956) – que levou mais de 30 mil pessoas às ruas em oposição ao sistema segregativo –, e o vergonhoso julgamento de “traição”, respaldado pelo aparato legal do regime racista, a que figuras da resistência foram submetidas em 1956.
Durante os anos em que Magubane atuou de maneira mais assídua, fotografar já era em si um ato de resistência e combate. Os registros de brutalidade militar e tantas outras formas de violência promovidas pelo apartheid – e mesmo o fato de apenas portar uma câmera fotográfica – o levou a ser preso em inúmeras ocasiões (uma delas em solitária por quase dois anos), além de torturado, espancado e baleado. As dificuldades impostas pela censura exigiam do fotógrafo criatividade, além de redobrada dose de coragem. Um exemplo está no episódio do julgamento em Zeerust, em que Magubane escondeu sua Leica 3G dentro de um pão para não ter seu acesso impedido e, assim, obter algum registro. “Fingi que estava comendo o pão quando na verdade eu estava tirando fotos. Quando o pão acabou, comprei leite e escondi a câmera na caixa. Foi assim que me safei. Você tinha que pensar rápido e ser rápido para sobreviver naqueles dias”, conta em um de seus escritos disponíveis na base de dados Protest in photobooks. Entre os eventos e episódios que marcaram a carreira de Magubane, o levante de Soweto merece especial atenção. E isso não só pela importância das revoltas que simbolizam o início do fim do apartheid na África do Sul, como também pela convergência dos episódios com a fase de apuro e sagacidade profissional em que Magubane se encontrava. As imagens que resultam da cobertura feita por ele dos eventos em Soweto são hoje reconhecidas como obras-primas de uma arte visual socialmente consciente produzida no século 20.
No contexto do levante, Soweto era a maior cidade negra dos arredores de Joanesburgo, habitada por milhares de sul-africanos que sofriam os efeitos cumulativos do racismo, tais como impotência política, negligência econômica, terror policial, educação e saúde inadequadas, além do impacto brutal da normalização das relações sociais pautadas pela segregação. À época, o africâner (conhecido ‘como a língua do opressor’) era usado na educação bantu, que se destinava a fazer das escolas um espaço para ‘instruir’ os alunos negros a serem servos subalternos da elite branca então dominante. Para os jovens estudantes de Soweto, responsáveis pela catalisação da revolta que inflamou o país e o mundo, a permanência do africâner como língua de instrução nas escolas negras teria sido a gota d’água. Em 16 de junho de 1976, centenas de crianças e jovens em idade escolar foram às ruas de Soweto para um protesto pacífico contra o modelo de ensino. Fazia pouco tempo que Magubane havia sido liberto de um encarceramento em solitária que durou 586 dias – detido justamente pela insistência em fotografar. Quando liberado, foi informado que estava proibido de tirar fotos por cinco anos. Não obedeceu, obviamente – desde o início da carreira como fotógrafo apostava na desobediência como forma de sobreviver. Quando deflagrado o levante, Magubane sabia onde deveria estar. “Então (…) eu fui com minha câmera e uma vingança. Por causa das minhas fotos, o mundo inteiro viu o que estava acontecendo”, lembra em entrevista ao The Guardian.
O 16 de junho iniciou-se com rostos sorridentes atrelados a punhos em riste. As fotografias feitas por Magubane destes momentos são índices de uma excitação nutrida pela esperança. Jovens, adolescentes e crianças seguiam cantando, erguendo seus cartazes, tomados pela sinergia de estarem juntos por uma mesma causa. A manifestação se avolumou pelas ruas e como contrapartida o governo designou uma força massiva de policiais e militares para reprimi-la. De uma barricada lançaram gás lacrimogêneo e abriram fogo contra aproximadamente 10 mil estudantes. Ao fim daquele dia havia milhares de feridos e pelo menos 23 mortos. As vítimas eram crianças em sua maioria. Hector Petersen, de 12 anos, era aluno da sexta série e foi o primeiro jovem negro a morrer. Magubane estava lá, fotografou o caos e, como havia feito em Sharpeville, em 1960, registrou a onda de funerais que se sucederam. Dessa vez, dos filhos caídos de Soweto.
O levante estudantil em Soweto se espalhou por todo o país. A revolta se intensificou e as manifestações rapidamente se tornaram um protesto geral contra o regime vigente, fomentando a luta do Congresso Nacional Africano e de outros grupos e líderes antiapartheid como Nelson Mandela, Winnie Mandela, Oliver Tambo, Walter Sisulu e Joe Slovo, entre outros. A repercussão das imagens feitas por Magubane ganhavam cada vez mais atenção, a ponto de torná-lo oficialmente um ‘inimigo’ público do governo. Em um dos dias mais intensos de confrontos, o fotógrafo chegou a ter o nariz quebrado por ter se recusado a velar um filme com registros da opressão. O cenário interno era de intensa repressão, entretanto as fotografias de Magubane extrapolaram as fronteiras do continente, tornando-se cada vez mais conhecidas internacionalmente como retrato da gravidade da situação sul-africana.
Críticos e estudiosos descrevem a cobertura feita por Magubane do levante de Soweto como um marco que define e estabelece a fotografia de resistência [struggle photography] como um gênero fotográfico. Entre essas imagens de luta, encontramos, por exemplo, muitos registros que evidenciam a brutalidade policial posta a serviço da proteção do privilégio branco e o desrespeito das autoridades pelos ferimentos e mortes de pessoas negras de Soweto e outras áreas (predominantemente negras) da África do Sul.
Mas é interessante notarmos também que, apesar da inegável importância dos registros de confrontos e de dor, as fotografias de Magubane são paradigmáticas também pela forma como apresentam e contextualizam as personagens envolvidas nessa luta. Em Soweto (1978), um de seus primeiros fotolivros, temos um exemplo da singularidade dessa abordagem. Publicado dois anos após a data que marca o início do levante, o livro reflete sobre o que envolve não apenas o dia crucial que marcou Soweto e a luta contra o apartheid na África do Sul, como também o que antecede e fomenta o estopim da revolta.
O fotolivro de 1978 é singular. Como relato de um dos eventos mais traumáticos vivenciados no país, a obra obviamente não deixa de abordar a dor e o sofrimento. Porém, em vez de fazer deles – da dor e do sofrimento – seu objeto principal, Magubane desenvolve um livro sobre pessoas. O fotolivro se apresenta não como um trabalho sobre o horror, mas sobre a humanidade dos envolvidos naquele horror. Há sorrisos, saúde e vitalidade antes da morte. E mesmo em meio ao horror, Magubane insiste que olhemos para as pessoas, para o que há de humano nessas pessoas que, ao longo de uma tradição fotográfica, foram objetificadas em vez de vistas e apresentadas como sujeitos.
Em 16 de junho a juventude foi a principal vítima dos horrores, mas antes e além disso foi protagonista e propulsora da luta. Para ela convergiam inteligência e vigor, e o livro de Magubane é capaz de nos sensibilizar para essa realidade e, ainda, de nos manter a salvo de romantizar as dores. Em Soweto, Magubane não ignora ou esconde o sofrimento, mas o apresenta de uma perspectiva que não se resume a ele, nem o deixando vencer aqueles que o enfrentaram.
Magubane tem outras publicações importantes sobre os conflitos e o massacre, como, por exemplo, Soweto: The Fruit of Fear (1986) e Magubane’s South Africa (1978), que reúne fotografias feitas desde a década de 1950 até o andamento das revoltas em 1977. Os livros, aliás, representam porção expressiva dos projetos aos quais Magubane se dedicou. Até hoje, existem pelo menos 18 publicações nas quais podemos encontrar suas imagens fotográficas. Além de compor narrativas completa ou predominantemente fotográficas, nesses fotolivros suas imagens aparecem também atreladas a artigos, reportagens e criações literárias.
Diferente do que uma abordagem superficial possa nos levar a compreender, as fotografias e fotolivros de Magubane não se reduzem aos esforços do fotógrafo em documentar e combater injustiças sociais, por mais louvável e eficaz que tenha sido tal empenho ao longo de sua carreira. Magubane compreendia – e ainda compreende – suas fotografias e livros não apenas como uma forma de pensar a realidade que o oprime, mas também como uma maneira de pensar a fotografia e o próprio fotolivro como um artefato criativo. Em seus projetos, Magubane experimenta e reflete as formas por meio das quais corpo e fotografia se encontram nos conflitos e no cotidiano, e os modos como essa fotografia reencontra o corpo na experiência do livro.
Ao se deparar com os fotolivros de Magubane, é possível observar seu comprometimento em desenvolver uma linguagem fotográfica refinada e posta a serviço de uma causa, a luta a favor da liberdade e da justiça social para os sul-africanos. Black as I am (1978) e Black child (1982) são outros dois projetos do fotógrafo que se somam aos já citados, como exemplo da sofisticação e impacto de seus livros fotográficos.
Black as I am (1978) foi um dos livros de Magubane banidos pelo governo da época. A obra, que relaciona suas imagens fotográficas a uma antologia de poemas de Zindi Mandela, configura-se como uma abordagem tanto pessoal quanto política. Magubane e Mandela se encontram na luta e seus propósitos convergem no livro. Para esse encontro, Magubane chega com seus anos de trincheira – período em que sua câmera fora seu braço e escudo. Zindi oferece seus poemas construídos como diário, arquivo e clínica. Na época da publicação, ela tinha 16 anos; o pai, Nelson Mandela, já era um prisioneiro político em Robben Island, enquanto sua mãe, Winnie Madikizela-Mandela, cumpria prisão domiciliar.
Em Black as I am, poema e fotografia são complementares e similares no propósito de um livro que se apresenta como busca por consolo. Trata-se de uma relação que não se resume à imagem ilustrando o poema nem ao texto atuando como algum tipo de legenda. No fotolivro em questão, imagem fotográfica e poema atuam em um processo de complementaridade semiótica que os desafia – ambos os sistemas – a referir-se a mais do que cada um seria capaz se considerado isoladamente. Se, em um poema, Mandela pede por ‘orgulho’, ‘amor’, ‘desejo’ e ‘alegria’, Magubane, em sua fotografia, nos oferece escassez e choro. Mas antes que alguém se acostume com as contradições, a complementaridade passa a fazer uso de aproximações semânticas. Nesse caso, se, por exemplo, Mandela fala sobre “The song that life plays”[A canção que a vida toca], então a fotografia de Magubane nos apresenta sorrisos que antecedem e anunciam faces de crianças negras sul-africanas. Ao longo do livro, os duplos de página revelam versos e imagens que se encontram e traduzem uns aos outros em níveis que envolvem tanto seus aspectos formais quanto narrativos.
Que tipo de infância e futuro são possíveis quando se é uma menina ou um menino negro vivendo sob um regime de segregação racial? O que é preciso para que alguém seja reconhecido como uma criança? Para que sua vida e suas necessidades sejam consideradas importantes por alguém? Como Black as I am, Black child (1982) foi um fotolivro censurado. Este, que é um dos livros mais tocantes de Magubane, se desenvolve como um poema visual no qual observa-se não apenas excepcional cuidado com métrica e ritmo, como também um processo de tradução, para as imagens – e as relações entre elas –, da triste complexidade de uma sociedade em que a negligência se torna senso comum. Black child ocorre como uma obra literária feita de fotografias; um livro que, por meio de uma investigação imagética, reflete sobre a profundidade dos problemas enfrentados na África do Sul e se dedica a pensar o lugar da fotografia em uma sociedade global.
As fotografias que integram o livro relacionam-se não apenas por similaridade temática, como também pelas especificidades das maneiras pelas quais são construídas. Na maioria das imagens escolhidas para compor Black child, Magubane explora a sombra, em vez da luz, para compor suas figuras. São fotografias dramáticas e carregadas em contraste. Os sorrisos capturados são tão intensos quanto os choros e a desolação. Há um fio, que é tanto formal quanto semântico, que liga tópicos como esperança, vida, riso, educação, tentativas de doutrinação, luta por sobrevivência, pobreza, fome, abandono, desumanização, humilhação, trabalho infantil, revolta, organização, levante, represálias, choro e morte. Uma das interpretações-síntese possíveis a partir do contato com Black child é que todos esses tópicos ocorrem indissociáveis da experiência da infância sob segregação.
Nas décadas de 1950 e 1960, um número de fotógrafos sul-africanos, entre os quais Magubane se destaca, começava a se formar e a explorar a fotografia como linguagem. O período marca uma importante virada a partir da qual os sul-africanos – e suas questões e complexidade – passam a ser fotografados e vistos por eles mesmos, em vez de olhados sob a perspectiva eurocêntrica do colonizador. O corpo de trabalho de Magubane é um exemplo de contribuição importante nesse processo. As coberturas, imagens e livros brevemente comentados aqui indicam a existência de uma variedade de critérios – entre eles estéticos, literários, políticos e documentais – que atuam em conjunto na formulação da obra de Magubane. Seu trabalho exemplifica não apenas a qualidade da fotografia e dos livros fotográficos produzidos na África do Sul a partir da segunda metade do século 20, como também a complexidade e a maestria com que um trabalho – seja ele uma imagem ou um fotolivro – pode ocorrer como um ato político, no sentido amplo do termo. Atento e alinhado com o que estava acontecendo com a fotografia no mundo, Magubane se dedicou a projetos que, mais que destinados a documentar realidades sociais ou experimentar a fotografia como um objeto artístico, investigam e produzem fotografia como uma forma de expressão dotada de sofisticação estética, política e intelectual. ///
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As fotografias dos livros de Peter Magubane foram gentilmente cedidas pelo site Africa in the photobook.
Ana Paula Vitorio é pesquisadora. Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, atualmente é pós-doc no departamento de Linguística e Práticas da Linguagem da University of the Free State (África do Sul).
Tags: Apartheid, fotojornalismo, fotolivros