Ensaios

Olho do furacão

Ella Comberg Publicado em: 14 de setembro de 2021

Durante a maior parte da pandemia, os motoristas do Google Street View foram, ao que parece, trabalhadores essenciais. Enquanto os casos de covid-19 disparavam nos Estados Unidos, em março e em novembro, os prestadores de serviço do Google seguiam para o trabalho. Seu papel, não muito distinto daquele dos entregadores da Amazon ou do Uber Eats, envolvia percorrer o ambiente construído, serpenteando por entre as vias expressas, grandes avenidas, caminhos de terra e ruas sem saída que constituem seu ambiente de trabalho. Basta acessar qualquer cidade dos Estados Unidos para ver os frutos do trabalho deles.

 Muitos dos significantes culturais da vida sob o jugo do vírus estão presentes na última atualização do projeto de mapeamento fotográfico do Google, que já completa mais de uma década. Em Berkeley [na Califórnia], imagens de março de 2020 mostram uma Telegraph Avenue ainda de portas abertas, com estudantes aglomerados nas calçadas dos cafés, em grande parte sem máscara e desavisados do que viria pela frente na semana seguinte. Uma máscara isolada e premonitória pode ser entrevista por trás do borrão que esconde um rosto. A julgar pelo número de pessoas paradas na calçada, debruçadas sobre o celular em uma digitação frenética, é possível supor que essas fotos foram feitas durante a primeira semana de março, quando os estadunidenses mais abonados começavam a planejar sua fuga.

O Street View também esteve presente quando as paisagens ermas de abril deram lugar aos calçadões apinhados do verão [do Hemisfério Norte]. Ele fez seu balanço no momento em que trabalhadores da construção civil corriam para garantir as capengas divisórias de compensado dos cercadinhos com mesas ao ar livre, e, depois, viu esses cercadinhos ficarem abarrotados, mesmo quando as ruas do entorno estavam em turbulência. Os protestos do verão, em si, não aparecem, mas as marcas que eles deixaram são visíveis: avenidas inteiras ladeadas de tapumes, policiais espalhados pelos bairros negros que nem sequer tinham a chance de se esquivar do onividente Street View.

Quando Nova York foi fotografada em outubro e novembro, a testagem já havia se tornado amplamente acessível, e os mecanismos de segurança, uma segunda natureza. Mesmo assim, com a proximidade das festas de fim de ano, cada consultório médico da cidade tinha diante de si uma fila que chegava a dar a volta na esquina. Enquanto os testes positivos produziam o arquivo epidemiológico que hoje conhecemos por “terceira onda”, o Street View produziu um arquivo da espera – pelo avanço da fila, pelo resultado negativo, pelo fim de tudo aquilo.

As pessoas também esperavam por necessidades básicas. Você talvez tenha visto, na primavera passada, o New York Times mostrando uma vista aérea de uma fila interminável de carros entrando em um banco de alimentos em San Antonio. Quando seleciono o local desse banco de alimentos no Street View, que o fotografou pela última vez em 2019, há ali apenas um estacionamento vazio, amplo de uma maneira que só se vê no Texas. Sua banalidade prefigura o que estava por vir. Contra o sensacionalismo fotojornalístico, o Street View apresenta uma vacuidade afetiva. No lugar de um foco individual de tensão narrativa, oferece um registro espalhado de um milhão de momentos da vida pública. O sofrimento, estampado de tal maneira no Times, aqui está simplesmente fora do enquadramento.

Na primavera passada, muita gente – da historiadora da arte Sarah Lewis, no Times, a Colin Dickey, nesta revista [Real Life] – se perguntava por que fracassamos em representar visualmente a covid-19. Lewis enfocou a “ausência de um […] arquivo visual representativo do impressionante custo humano da crise, do qual possam emergir, a seu tempo, nossas imagens emblemáticas”. Dickey formulou que, historicamente, os referentes visuais de doença, como cicatrizes e lesões, são o que tornam uma pandemia “real para o público geral […]. Esses marcadores físicos são mais que meros sintomas; são a maneira pela qual conceituamos a doença no espaço discursivo”. Durante esta pandemia, o custo do vírus no âmbito da economia talvez tenha sido mais explicitamente representado que seus efeitos sobre os corpos individualmente. Para aqueles que estavam abrigados de seus marcadores fisiológicos evidentes, ele passou despercebido a olhos vistos.

Pouco mais de um ano depois, mais de 600 mil pessoas morreram de covid-19 nos Estados Unidos. Agora que as taxas de infecção despencaram, ao menos por ora, uma nova questão surge: o que constitui uma comemoração visual condizente com o primeiro ano da pandemia? Que tipo de iniciativa artística ou documental poderia evocar tudo, das banalidades da quarentena ao desespero do desemprego, da devastação da morte em massa à possibilidade de vida depois dela?

A resposta é, claro, que nada poderia fazer tudo isso de maneira adequada. O que o Street View oferece, no lugar disso, é um reflexo das relações sociais cotidianas da vida pandêmica. É insuficiente sob qualquer aspecto que se possa imaginar: inconsistente na narrativa, desprovido de intimidade e textura sensorial, filtrado por uma tela na qual alguém pode ficar vidrado sem de fato ver coisa alguma. Para tantos de nós, no entanto, 2020 não foi exatamente isso tudo?

Por algum motivo que me escapa, enquanto diversos estados do país passavam pelo lockdown, o Google achou que era prudente – essencial, até – continuar a mapear. (Como era de se esperar, a empresa não retornou meu pedido de que comentasse isso.) Vale notar, porém, que, no que diz respeito aos produtos Google, o Street View é um dos menos práticos. Sua proposta para os usuários é quase totalmente frívola (substituto de viagem do século 21; investigador de atratividade imobiliária; material de base para net art). Seus dados visuais, como qualquer outro tipo de dado, podem ser monetizados – a Alphabet [holding do Google] registrou lucros recordes durante a pandemia –, mas estou mais interessada no valor de uso desse cache para os usuários, no presente e no futuro, como uma lembrança abjeta desta época.

Tomemos um exemplo: algumas semanas atrás, eu estava usando o Street View para ver a rua West Philadelphia, onde cresci, quando por acaso encontrei a figura de minha própria mãe. Ela estava nos limites de um parque do bairro, em meio a uma caminhada de fim de tarde. Com base nas enormes placas de “VOTE. PLANEJE-SE.” – instaladas a cada 3 metros ao longo da avenida –, é possível discernir que se trata de um período eleitoral. Ela parece pequena pelas lentes das câmeras instaladas acima do veículo do Street View, a 2,5 metros de altura, que a captam sozinha, alheia ao fato de que está sendo imortalizada.

O punctum da fotografia, para tomar emprestada uma expressão de Barthes (que, por sinal, cunhou o termo em relação a uma fotografia da própria mãe), é minha ciência de que esse é um dos únicos momentos em que vou ver minha mãe tal qual ela existe para o mundo. Não se trata de uma fotografia posada que um amigo tirou, mas de uma intervenção de um desconhecido; não há a espontaneidade que poderíamos descrever em uma fotografia íntima clicada quando o retratado não está olhando, e sim um registro público e incidental do dia a dia.

 A não relação entre minha mãe e esse motorista-retratista anônimo contém uma dimensão crucial da vida pandêmica: sua tendência a, de forma mais intensa, mediar relacionamentos por meio da tecnologia e dirigir interações por meio das ferramentas da acumulação de capital. O Street View leva esse processo a extremos. Esse encontro passageiro do motorista com minha mãe não apenas monetiza, na medida em que a tecnologia reconhece o rosto dela, como dá a mim, também, a experiência do contato com minha mãe pelo filtro do capital, ao me relacionar com ela via Street View. Em certa medida, foi assim que a maior parte dos relacionamentos não domésticos transcorreu em 2020: quando não filtrados pela tela, filtrados pela máscara, e quando não pela máscara, então, pela possibilidade de contaminação.

Eu me referi às fotos de 2020 do Street View como um arquivo, porém, diferentemente dos arquivos de verdade, este ainda não foi meticulosamente processado. No Street View é fácil perder seu local e nunca mais encontrá-lo – transitar, por acidente, de 2017 para 2020 e de volta para 2008, passando estranhamente por camadas anuais de registro fotográfico refeito. Dentro de alguns anos, talvez, conforme nos afundarmos ainda mais na amnésia coletiva, a peculiar camada de 2020 – com suas cenas de vacuidade denotando desespero – acabe por ser vista como uma aberração, algo que preferiríamos ignorar. Afinal, compor o arquivo do desastre não está na lista das “Histórias de Sucesso do Street View” compiladas pelo Google, ainda que o turismo crescente no Zimbábue esteja.

Na ausência de um corpo de cidadãos fotógrafos, como aqueles empregados pelo Federal Art Project durante a Grande Depressão americana – um programa que, nos termos da história da arte, é facilmente criticável por se ancorar na empatia caritativa, mas que parece um tanto radical a partir de nosso privilegiado ponto de vista contemporâneo –, é esse o registro de que dispomos. Tal como muitas ferramentas do tecnocapitalismo, ele faz as vezes de uma esfera pública, dada a ausência de bens comuns mais robustos. Colin Dickey escreveu, em maio, que “conforme a crise da covid-19 saía de controle na cidade de Nova York, os hospitais de campanha temporariamente montados no Central Park, os caminhões refrigerados temporariamente usados para manter corpos em número que excedia a capacidade das funerárias e o navio médico USNS Comfort pareciam prontos para ocupar aquele espaço visual”. Mas, a cada dia que passava, essa catástrofe de proporções globais parecia algo mais banal. Um terreno de estacionamento vazio, uma fila extensa, uma foto de uma mãe docilmente parada na calçada. ///

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Olho do furacão foi publicado originalmente na revista on-line Real Life em 15 de julho de 2021.

Tradução do inglês por André Albert

 

Ella Comberg é uma escritora nascida em Filadélfia. Atualmente, trabalha como editora e pesquisadora na National Gallery of Art, em Washington D. C. Seus escritos têm sido publicados, nos últimos tempos, na Avery Review.

 

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