Marte através do espelho: quando os rovers fotografam
Publicado em: 20 de agosto de 2021
Em seu livro Los Gestos, Fenomenología y Comunicación, editado pela Herder em 1994, o filósofo tcheco naturalizado brasileiro Vilém Flusser chamou de gesto fotográfico o período de busca empreendido pelo fotógrafo ao redor da cena a ser fotografada. Para Flusser, essa busca pela iluminação, composição e ângulo perfeitos, capazes de evidenciar o tema que o fotógrafo pensa, indicava um empreendimento do corpo do fotógrafo em operação com sua mente e experiência sensível. É o processo que antecederia aquilo que Henri Cartier-Bresson chamou de momento decisivo, o momento efetivo do clique que executa o registro óptico no filme fotográfico.
Contudo, existem, hoje, imagens técnicas (no sentido que o filósofo Walter Benjamin dá ao termo, isto é, de imagens produzidas mecanicamente) cujo processo de produção não apenas distancia o gesto fotográfico da execução do registro, mas também parece anular o gesto fotográfico propriamente dito. Esse apagamento da presença do fotógrafo é um processo que extingue a própria experiência corpórea in situ, pela introdução de softwares: um modo de simulação da fotografia enquanto realização que imita o gesto humano original. Trata-se, assim, do desaparecimento da presença humana na etapa de disparo do registro, uma vez que são os algoritmos que determinam quando, por exemplo, uma sonda espacial, um satélite meteorológico ou um rover [termo em inglês que significa Remote OVerhead Extendable Robot, um veículo de exploração espacial projetado para mover-se na superfície de um planeta ou de outro corpo celeste] deve fotografar um determinado cenário ou paisagem astronômica.
Poderíamos dizer que, se ainda há um dedo humano presente no percurso dessa ação, ele está indiretamente implicado e, portanto, não se pode mais falar em gesto fotográfico, como pensado por Flusser. Por outro lado, muitas dessas novíssimas imagens tecnológicas exigem um tratamento visual, “plástico”, a posteriori, para que possam ser percebidas como imagens fotográficas ou imagens com a verossimilhança de uma fotografia. Surge, assim, um novo gesto, que é o de transformar dados matemáticos em imagem visível e, para isso, convocam-se dedos humanos para a pós-produção da imagem tecnológica. Referindo-se a essa situação, a filósofa e crítica de arte francesa Anne Cauquelin indagava: “Se a imagem tecnológica não é mais tida como aquilo que ela figura, em que se transforma a paisagem em relação à natureza que ela, ao mesmo tempo, vela e desvela?”.
É essa questão que parece orientar nosso olhar ao observarmos imagens produzidas por rovers na superfície do planeta Marte. Num primeiro momento, o olhar dos rovers é um olhar terrestre, ou seja, espelha aquilo que nossos olhos veem ao visitar um ambiente árido como um deserto. Eles também fotografam a partir de comandos enviados da Terra por geólogos e engenheiros que reconhecem em imagens anteriores indicações da composição do solo marciano que podem confirmar ou não a presença de minerais específicos ou de matéria orgânica, corroborando a hipótese de que Marte um dia foi habitado por formas de vida, mesmo que microscópicas, feito realizado pelo pioneiro rover Curiosity. Essa visibilidade que nos é dada, indica que, de fato, quem vê Marte são olhos humanos com curiosidade científica e objetivos claros, em busca de respostas que só podem ser encontradas por meio de imagens transferidas por ondas de rádio que percorrem os 225 milhões de quilômetros que separam, em média, os dois planetas. Tais imagens são interpretadas com base no conhecimento que temos da composição atômica e mineral do nosso sistema solar e do universo. A exploração espacial não tripulada tornou-se a principal estratégia de investigação interplanetária dos últimos 20 anos, desde a implementação da Estação Espacial Internacional.
É certo dizer que Marte sempre foi alvo de investigação astronômica por meio de sondas, desde os anos 1960. A primeira sonda a pousar com sucesso em Marte foi a Viking 1, em 1976. De fato, a quantidade de missões enviadas ao planeta nos últimos 10 anos indica a evidente tendência a uma nova corrida espacial, desta vez, com muito mais jogadores. Somente em fevereiro de 2021, três missões espaciais encontraram-se na órbita marciana: a nave Tianwen-1, da CNSA (Agência Espacial Chinesa); a sonda Hope da ESA (Agência Espacial Europeia) e a nave com o Perseverance da NASA (Agência Espacial Norte-americana). Esse encontro não é de todo casual, pois reflete o lançamento de foguetes em meados de 2020, quando Marte e Terra estavam à menor distância possível em suas órbitas ao redor do Sol. Essa situação ocorre aproximadamente a cada dois anos (26 meses, mais precisamente) e é ideal para o lançamento de missões de exploração no planeta vermelho.
Escolhido por votação popular dentre nove nomes indicados, o rover Zhurong (pronuncia-se ‘djuróngue’) homenageia o deus chinês do fogo. Seu pouso bem-sucedido em 14 de maio de 2021 fez da China a segunda nação a ocupar a superfície de Marte, façanha que não pôde ser realizada nem pela antiga U.R.S.S. e nem mesmo pela ESA, desde que a exploração do planeta teve início nos anos 1960. Apesar do incrível feito tecnológico, a CNSA restringe imensamente o acesso às informações acerca da locomoção e da pesquisa científica feitas pelo seu rover, controlando com grande sigilo todos os detalhes de seu pouso e de seu progresso na superfície do planeta. Essa estratégia de relações públicas está vinculada à natureza política do país, no qual a informação não pode circular livremente devido à forma como o governo está organizado, com centralidade de poder num partido único, o Partido Comunista. Por isso, as imagens geradas pelo Zhurong são poucas, tendo-se acesso restrito apenas às que são oficialmente divulgadas pelo website da CNSA.
De modo totalmente oposto, o Perseverance, novíssimo rover da NASA que pousou em Marte cerca de três meses antes, em 18 de fevereiro, possui um website próprio no qual todas as suas imagens são arquivadas e disponibilizadas, assim como ocorreu com todos os outros três veículos anteriores da NASA enviados ao planeta – o Spirit, o Opportunity, ambos já desativados, e o Curiosity, ainda em operação.
A diferença de estratégia de comunicação e relações públicas entre as duas organizações é de fato notória. A NASA é uma agência espacial governamental, sem fins lucrativos e iminentemente civil, para a qual há uma importância fundamental na prestação de contas do uso de verba pública na exploração do cosmos. Por ser instituição de um país democrático, há um complexo sistema de distribuição de informações produzidas pelos vários projetos e programas em andamento. No caso específico do Perseverance, além do website da missão, encontram-se postagens no Flickr, Twitter, Instagram, Facebook e em inúmeros outros canais de mídia social que a NASA utiliza para divulgar as imagens feitas por todas as 23 câmeras do rover, seu microfone, bem como as câmeras e microfone do Ingenuity, o helicóptero que o acompanha na missão.
A ideia da NASA é que as imagens sejam realmente consumidas como fundo de tela de celulares, laptops e computadores por cientistas e leigos do mundo todo, uma vez que são de domínio público tão logo liberadas pela agência em seus canais, o que corrobora sua estratégia de livre acesso às imagens de seus programas espaciais.
A NASA disponibiliza, ainda, as raw images (imagens sem processamento ou em estado bruto) para cada um de seus projetos em Marte (sejam satélites, sondas ou rovers). No website do Perseverance essas imagens aparecem como uma folha de contato de filme fotográfico analógico. Em julho de 2021, no website do Perseverance era possível acessar 369 páginas com mais de 110 mil imagens brutas. Elas costumam ser acinzentadas ou com tonalidade sépia, e estão disponíveis em seu tamanho original para download por qualquer pessoa, desde que citada a fonte.
A CNSA, por outro lado, liberou no início de junho apenas quatro imagens oficiais, além de dois vídeos bem curtos do momento do pouso em Marte. A agência divulgou muitas imagens e animações artísticas do pouso e do próprio rover, que não correspondiam às imagens fotográficas executadas na superfície do planeta. Por isso, no site da agência chinesa vê-se os termos “fotos reais” nas legendas das imagens realizadas pelo rover, o que parece uma estratégia discursiva para enfatizar a diferença entre as projeções artísticas e as imagens realmente feitas pelas câmeras do Zhurong. Nelas, percebe-se uma acentuada coloração alaranjada sobre o rover e a plataforma de onde saiu. Não é possível afirmar o grau de processamento posterior ao recebimento das imagens pela agência, uma vez que não se tem acesso às chamadas raw images. Desse modo, a agência chinesa decide quando encaminhar aos meios de comunicação estatais as imagens que julga relevantes para a divulgação precisa e comedida do programa espacial chinês em Marte para o mundo. A impressão que se tem é de que essas imagens fotográficas são extremamente tratadas, e seu processamento exagera na tonalidade alaranjada da luz e da cor vermelho-amarronzada do solo marciano. Na direção contrária, a NASA busca ajustar as alterações de luz da atmosfera de Marte de modo a emular a iluminação da nossa atmosfera, que é bem mais densa do que a do desértico planeta rochoso. As imagens chinesas aparentam também ter sido ensaiadas para revelar determinados ângulos e perspectivas que favoreçam a ênfase na conquista tecnológica, com as legendas destacando a presença da bandeira chinesa na parte inferior do Zhurong. As informações são divulgadas em chinês na página da agência, mas também pela TV estatal (CCTV – China Central Television) e pelo jornal Global Times, controlado pelo Partido Comunista chinês. Desse modo, enquanto até o mês de julho a China apresentou oficialmente nove imagens fotográficas e dois vídeos sobre o progresso do Zhurong, a NASA tornou disponível, já mesmo em fevereiro, cerca de 28 mil imagens feitas durante o processo de pouso do Perserverance, logo após o anúncio oficial em conferência de imprensa sobre a chegada do rover à Marte.
As diferenças em relação ao modo como cada agência espacial divulga suas imagens tecnológicas e torna transparente a opacidade de sua produção incentiva, junto à comunidade científica mundial, a suposição de um “jogo da verdade científica” sobre imagens espaciais produzidas pelos dois rovers. De fato, essa oposição entre liberdade de acesso à informação e completo sigilo ganhou contornos dramáticos com o ineditismo da conquista chinesa no campo da exploração aeroespacial, e despertou nos especialistas que debatem o desenvolvimento científico e tecnológico da China a preocupação sobre essa nova fase da corrida espacial. Apesar dessa oposição, que também se manifesta politicamente entre China e Estados Unidos, cientistas e políticos de ambos os lados se congratulam a cada divulgação de atividade bem-sucedida por seus respectivos projetos.
Por último, um outro aspecto muito interessante é que todas as imagens feitas pelos rovers (e também pelos satélites e sondas espaciais) são mosaicos, isto é, são imagens compostas, resultado da reunião dos vários registros feitos e que são reunidos por software de modo a se tornarem uma única imagem homogênea em relação a cores, luz, contraste e posição. Os engenheiros da NASA trabalham para que cada registro que compõe o mosaico possa ser unido sem que haja distorções, mas, às vezes, isso não é possível e algum tipo de discrepância aparece em algum detalhe da imagem final.
Usados desde os anos 1950, os mosaicos são comuns na história da fotografia aeroespacial. E é curioso que tenham chegado às artes mais tarde, especialmente a partir das obras de David Hockney. O artista, crítico das limitações da fotografia, afirmava ser ela “caolha” e incompetente no registro da visão. Para ele, a fotografia é incapaz de reproduzir o que nossos olhos veem com tamanha riqueza de detalhes, principalmente porque congela tempo e espaço, fixando o movimento dos elementos captados pela percepção humana. Hockney fez um trabalho de desconstrução a partir do uso da câmera fotográfica, pensando cada foto como um pedaço do todo que apenas a visão humana é capaz de perceber. Seu trabalho reforça a importância de uma experiência sensível que dá a ver as partes na paisagem sem que possamos nos dar conta. Já os rovers marcianos fazem o contrário: a partir das partes registradas do ambiente, dão a ver seu todo, reconstituído a partir dos dados que chegam à Terra em formato matemático. Os rovers constroem o visível, dando a ver ambientes a partir de perspectivas que nos são impossíveis, já que estamos aqui, colados à superfície da Terra.
É nesse sentido que os novos processos de produção de imagens técnicas e tecnológicas são, às vezes, recebidos de modo negativo pelo senso comum. Tais imagens são algumas vezes rejeitadas, recusadas como representações “legítimas”, uma vez que sua produção é percebida como pura manipulação, pois os atributos referenciais delas foram substituídos por cálculos numéricos que não mais representam o referente percebido. É sobre esse novo tipo de percepção, que sugere um embate não apenas entre o sensível e o inteligível, mas também entre o sujeito encarnado e os equipamentos geradores de imagens automáticas, que as imagens produzidas por rovers parecem nos falar.
Tais equipamentos constituem e operam a realidade científica que se produz acerca do não humano e da não existência corpórea, o fora da Terra, e talvez por isso, essas imagens técnicas e tecnológicas, geradas na ausência do humano, do gesto que caracteriza a presença material do humano, sejam percebidas mais como ficção científica e não como ciência. Daí sua maior aceitação em lugares voltados para a experiência sensível enquanto entretenimento, como o cinema e a literatura de ficção científica. ///
Cristina Pontes Bonfiglioli é bióloga, professora de Ciências do Ensino Fundamental II em escola bilíngue, Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e desenvolve segundo doutorado sobre imagens aéreas e astronômicas junto ao Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte com sede no MAC-USP.
Tags: CNSA, Fotografia astronômica, Marte, Nasa