Ensaios

Lisboa e a memória do futuro

Paula Ferreira Publicado em: 15 de agosto de 2024

Escrevo este texto desde uma mesa da Biblioteca Pública Municipal da Penha de França, bairro próximo ao centro de Lisboa, Portugal. Diante de mim, as amplas janelas do edifício revelam um jogo de luz e sombra que incide sobre as colunas brancas do edifício. No pavimento exterior, crescem ervas, à revelia, pelas frestas do cimento — com quase um metro de altura, sugerem algum abandono da rua. Não há ninguém na mesa à minha frente, olho pelas janelas como se olhasse para uma tela de cinema. Por trás da aparente imobilidade enquadrada pelos batentes, repousa uma cidade ao longe. Lisboa é, daqui, uma cidade quase imaterial.

Desta distância, começo a pensar nos efeitos que as dissonâncias entre a vivência e a imagem da cidade são capazes de produzir — em mim, mas também de maneira coletiva. No que constitui o viver nesta cidade, conflitando o imaginário sobre ela com a sua experiência real a todo momento. E, questionando a criação deste mesmo imaginário (e a urgente necessidade de atualizá-lo constantemente), reconheço no livro Lisboa Mesma Outra Cidade (Ghost editions, 2023) uma semelhante preocupação.

Em Morrer Pela Primeira Vez, texto que inaugura a parte dos ensaios literários que dividem as páginas deste livro com outros seis ensaios fotográficos, Djaimilia Pereira de Almeida se pergunta se o Leviatã pintado por Abraham Bosse, em 1651, teria a cara de Lisboa. Essa ideia — um grandioso monstro histórico ter a cara da cidade — me fascina. A autora segue em sua escrita e atribui aos rostos que compõem a figura do Leviatã aqueles do cotidiano lisboeta.

A cidade, no texto, é uma personagem, e não apenas o espaço geográfico onde se deu uma experiência de violência vivida pela autora. Quem o escreve é uma Djaimilia Pereira de Almeida que morre em Lisboa pela primeira vez. O ato de violência é, aqui, um novo ato de concepção e, entretanto, surge da mesma forma que a fotografia da mãe de Roland Barthes surge em A Câmara Clara: é uma presença profundamente transformadora e condicionante, que nunca se revela ao leitor — exceto que, traindo a analogia, Djaimilia Pereira de Almeida narra o episódio quando chega ao fim do texto.

As impressões da autora sobre a vivência na capital portuguesa, que também não é seu lugar de nascença, fazem parte do conjunto de ensaios que, em Lisboa Mesma Outra Cidade, propõem a fotografia e a literatura como linguagens para pensar a cidade. Nascido a partir de uma extensa pesquisa, o livro ganhou forma em um processo coletivo ao longo de um ciclo de debates ocorrido entre 2019 e 2021. Como ponto de partida, uma outra publicação foi abordada, Lisboa Anos 90: Imagens de Arquivo — editado no fim dos anos 90, a última encomenda pública feita para um fotolivro sobre Lisboa.

Na altura, a cidade vivia significativas transformações do seu espaço urbano, dentre as quais estava a requalificação do bairro hoje designado Parque das Nações, a propósito da Exposição Mundial de 1998 (Expo’98), um projeto de caráter colonialista. Curiosamente, as fotografias contidas no livro embatem com uma ideia de progresso tecnocrata, testemunhando também os espaços esquecidos, em construção e as periferias da cidade.

Passaram-se quase 25 anos sem que outro livro servisse de testemunha das transformações da cidade, que, atualmente, acontecem em um ritmo ineditamente acelerado. A capital do país é, hoje, um “espaço neo-liberalizado”, como coloca Catarina Botelho, coeditora do projeto,  em que a higienização, a “turistificação” e a gentrificação alteram cotidianamente os modos de vida na cidade, expulsando grande parte dos habitantes e dos comércios tradicionais do seu centro.

Capturar esses movimentos através da fotografia e da literatura era uma questão de um desejo político e militante, ainda que, tanto Botelho quanto David-Alexandre Guéniot, também editor do projeto, reconheçam a limitação de agência do campo artístico. Para realizar essa tarefa, através de uma perspectiva que se quisesse contemporânea, era preciso ir à procura de olhares divergentes entre si, que não buscassem uma visão uníssona e nem uma imagem cristalizada de Lisboa. A escolha transgeracional de autores foi, assim, fundamental, aproximando nomes já consagrados no contexto português a outros ainda em início de carreira.

No profícuo encontro de universos, as fotografias de António Júlio Duarte, Beatriz Banha, Hugo Barros, Mariana Viegas, Pauliana Valente Pimentel e Pedro Letria dividem as páginas do livro com textos de Djaimilia Pereira de Almeida, Joana Braga e Patrícia Portela — sendo que a palavra, aqui, não tem a função de explicar a imagem ou de contextualizá-la, mas de ser uma linguagem autônoma.

São muitas as Lisboas reveladas nas fotografias e palavras deste livro. Determinada por um caminho afetivo, como o que traça o artista Pedro Letria ao fotografar o cotidiano dos habitantes e frequentadores de um prédio no bairro onde passou a infância — revelando, simultaneamente, a fragilidade dessas vidas e a precariedade de suas condições de habitação.

Voltada às reminiscências da vivência cotidiana do espaço público, como os grafittis que recobrem paredes de edifícios ou as cadeiras que improvisam um terraço na rua, a câmera de Beatriz Banha contrapõe o retrato higienizado de Lisboa que é veiculado para atrair o turismo.

Descentralizada, como é a cidade vista a partir da periferia que Hugo Barros atravessa diariamente entre a sua casa e a de sua avó. Ou, ainda, desabitada e ocupada pela natureza indiferente à presença humana, como mostram os registros fotográficos de Mariana Viegas. Ainda que sejam diferentes os subterfúgios e abordagens adotados pelos artistas, seus testemunhos convergem para o propósito de iluminar os pontos cegos dessa cidade-enigma.

Passado pouco mais de um ano desde o lançamento de Lisboa Mesma Outra Cidade, o livro se afirma como um objeto que não é estanque no tempo. É, antes, um projeto em via de expansão (há um segundo livro a caminho), atento à necessidade de diversificar olhares para pensar a cidade através de perspectivas que a complexifiquem enquanto assunto. Nesta confluência de interpretações e visões de mundo, é à fotografia enquanto ferramenta estético-política que se recorre.

Pensar que, talvez, a intrincada relação entre a vida nas cidades e os seus habitantes seja um tema tão antigo quanto o próprio ato de fotografar — não poderia ser Vista da Janela em Le Gras, de Joseph Niépce, uma observação desta relação? — implica reconhecer que a fotografia herdou o assunto de outras linguagens artísticas que já o exploravam antes que a primeira imagem fosse revelada sobre uma superfície fotossensível. A janela que enquadra uma rua, onde os pedestres se tornaram fantasmas pela longa exposição, é, na verdade, o prolongamento de um tema há muito introduzido no fazer artístico.

Porém, passados quase 200 anos desde a criação desta imagem, e tendo a fotografia se estabelecido como meio privilegiado para alimentar o debate, o que ela ainda tem a oferecer, enquanto linguagem? O que há, no fotográfico, que implica um pensar crítico sobre a cidade?

Fugindo às respostas simplistas para perguntas que devem permanecer abertas às especulações, avivo a lembrança de uma das fotografias de Hugo Barros que compõem o livro Lisboa Mesma Outra Cidade. Nela, a neblina da película se confunde com o contraluz de um fim de tarde, transformando os três corpos enquadrados em presenças quase espectrais. Uma mãe caminha com seus dois filhos por uma calçada tomada por ervas, onde já não há parte das pedras que formavam o piso original. Há um visível descaso com o espaço público, evidenciando que a geografia registrada não faz parte dos bairros de Lisboa que recebem atenção das políticas públicas de planejamento urbano. Através da imagem, a periferia e as suas calçadas esburacadas são testemunhas de uma das facetas da desigualdade no direito à cidade.

A luz difusa da fotografia me traz de volta à mesa da biblioteca de onde escrevo este texto. Já o sol parece caminhar em direção ao fim de sua curva. As sombras se tornaram menos duras, e o seu alongamento parece afastar ainda mais a cidade no horizonte. Volto a pegar no livro e, ao atravessar as suas páginas, tento agarrar a imagem de uma Lisboa que, fugidia, se dissipa. ///

+

Fotos do livro Lisboa Mesma Outra Cidade, GHOST Editions, Lisboa, 2023. Imagens do livro por ALTURA photostudio.

Paula Ferreira é escritora, pesquisadora e curadora independente. Nascida em São Paulo, vive atualmente em Lisboa, Portugal. Tem colaborado em diversas iniciativas culturais, dentre as quais estão a Bienal de Coimbra (2024) e a revista Contemporânea. É editora do projeto transdisciplinar e de investigação artística Aos cuidados,.

Tags: , , ,