Ensaios

O feminino se transfaz: uma nova geração de corpos trans nos retratos de Camila Falcão

Amara Moira & Camila Falcão Publicado em: 27 de março de 2018

Amara, da série Abaixa que é tiro, de Camila Falcão, 2017

Corpos trans diante das câmeras, pouca ou nenhuma roupa, poses sensuais. Convenhamos, nenhuma novidade nisso, pelo menos desde as primeiras revistas e filmes eróticos focados em travestis, ainda nos anos 1980, ou desde a proliferação, no começo deste século, de sites pornôs com anúncios de trabalhadoras sexuais. Nossos corpos sempre estiveram nus, sempre foram dissecados pelo olhar objetificante que a sociedade projeta sobre nós, olhar que ora nos vê com desejo e curiosidade (como a Roberta Close capa da Playboy em 1984, de quem a música Close, de Erasmo Carlos, hit daquele momento, dizia “quase que ela engana a minha zoom” e “não fosse o gogó e os pés / a minha lente entrava na dela”), ora como ameaça ou com nojo, como atestam as sindicâncias que o delegado Guido Fonseca, no final dos anos 1970, conduziu com quase 500 travestis que exerciam a prostituição no centro de São Paulo, fazendo que os inquéritos fossem acompanhados de “fotografias desses pervertidos em trajes femininos que estiverem usando na ocasião, para que os meritíssimos juízes possam avaliar sua nocividade”. Fotografias mais uma vez, sempre fotografias.

Mas não é preciso olhar clínico para perceber que este trabalho da fotógrafa paulistana Camila Falcão vai bem além do que o mercado do sexo ou as câmeras de delegacia têm sido capazes de revelar sobre nós. A obsessão do pornô por corpos que levem ao extremo o ideal de feminilidade, corpos construídos à base de silicone industrial, uma das maiores causas de morte da população trans (não que isso importe a quem só consegue nos ver como objeto sexual ou possibilidade de lucro – na prostituição, coisa comum de se escutar de clientes é justamente “gosto de travesti com bundão, coxão” e zero preocupações com o que teríamos que enfrentar para possuir esse corpo), corpos que ainda tragam junto um pênis ereto, grande e funcional, sem que se proponha qualquer reflexão sobre o quanto esse pênis, elemento que atiça o desejo alheio ao mesmo tempo que impede o reconhecimento de nossas identidades, pode ser motivo de sofrimento para muitas de nós, toda essa obsessão, logo se percebe, não fala efetivamente sobre nossas subjetividades, mas sim sobre as de quem nos vê e de como somos vistas.

Por trás desses vídeos, dos ensaios fotográficos e das denominações exotificantes que o mercado pornô forjou para nós (boneca, trava, t-gata, transex), expõe-se a forma como nos entendem, o famoso “mulher com algo a mais”, misógino e transfóbico a um só tempo, ou o “mulher de pau”, mas um “mulher de pau” que não deixará jamais de funcionar como paradoxo, visto que, tanto para os consumidores desse material, quanto para os que nos contratam como modelo/atriz/acompanhante, “mulher de verdade é só quem nasceu com vagina”. E isso mesmo ou, sobretudo, quando nos dizem, sem que ninguém mais escute (só assim são capazes de dizê-lo), sermos “mais mulher do que muita mulher”. “Mais mulher” e “mulher com algo a mais”, nos dois casos “mais”, mas, para quem nos diz isso, mulher mesmo, de fato, jamais seremos.

Aliás, interessante pensar que o fato de esses homens não serem capazes de nos conceber como mulheres tem relação direta com o medo de imaginarem que corpos que nasceram como os seus, ou seja, com pênis, possam ser/se tornar corpos de mulher. Caso passemos a ser assim reconhecidas, a verdade que orientou a construção de suas identidades como homem seria imediatamente posta à prova, genital deixando de ser o elemento decisivo para pensarmos o que um indivíduo é e o que não é, fazendo-se então necessário buscar outras narrativas para explicar a razão por meio da qual alguém seria homem, outrem mulher (se é que é preciso caber numa das duas categorias).

Eis a razão de tamanha animosidade em relação às nossas existências, o perigo de que falam as fotos nos inquéritos de Guido Fonseca. Mais fácil pensar políticas de extermínio (“limpe São Paulo/ mate um travesti por noite” dizia o dístico pichado em muros da capital paulista no fim dos anos 1980, época das operações Tarântula, Rondão e Limpeza e do delegado José Wilson Richetti, outro que fez fama perseguindo LGBTs) ou, quem sabe, tentar limitar nossa existência aos não lugares da sociedade, manicômios, presídios, ou então a guetos em que vivamos de exercer esse trabalho que sequer reconhecem como trabalho, a prostituição precária e mal remunerada das ruas, justo onde ocorre mais da metade dos assassinatos de mulheres trans e travestis.

Bem outra é a perspectiva dos retratos de Camila Falcão, muito mais afim àquela que se deixa entrever na inversão proposta pela cantora Linn da Quebrada para “mulher de pau”, que, em sua canção, vira “pau de mulher”. Essa inversão livra a expressão de ter que funcionar como paradoxo e, por tabela, abre espaço para começarmos a pensar modelos de homem e mulher pautados não mais apenas pelos corpos não nossos, cisgêneros (“cis”, o contrário de “trans”, tudo o que não é “trans”), mas por nossos próprios corpos também. A perspectiva assumida pelo ensaio de Camila fala dessa descoberta e conquista de uma feminilidade trans, o possível para os corpos que temos, com pelos, pouco ou zero peito, pés e mãos grandes, gogó, corpos que decididamente não caberiam nas lentes do hit de Erasmo Carlos.

Sladka (esq) e Terra (dir), da série Abaixa que é tiro, de Camila Falcão, 2017

Ave Terrena (esq) e Dodi (dir), da série Abaixa que é tiro, de Camila Falcão, 2017

Não caberiam, mas nem por isso deixam de ser percebidos como femininos. E de uma feminilidade perturbadora, tanto por divergir do que se esperaria dela, quanto por parecer fora de lugar. O feminino sem peitos, despeitado, de Terra Johari e Sladka, o sutiã que surge quase só como acessório estético em Lux e Manauara Clandestina, os cabelos ralos de Dodi, o leve “chuchu” de Ave Terrena, os peitinhos de hormônio meus e de Mavi Veloso (aliás, escutem esses nomes, aprendam conosco a nomear!). O corpo trans possível para as gerações que nos precederam, quando os modelos do feminino eram todos cisgêneros e era forçoso, para nos aproximarmos minimamente deles, sujeitarmo-nos a pesados tratamentos hormonais e/ou procedimentos cirúrgicos (clandestinos ou não, sempre invasivos), destoa muitíssimo do que se vê aqui, reflexo deste momento histórico em que “mulher de pau” deixa de ser um paradoxo.

Confesso que tive medo quando convidada a participar do ensaio (fui a primeira de todas, corajosa). Não conhecia o trabalho de Camila, mas, mais do que isso, tinha medo do meu próprio corpo, do que ele era capaz de dizer. Até hoje me olhar no espelho e ficar à vontade com o que vejo é um desafio. Imagina posar para um ensaio que se propunha erótico. Ao mesmo tempo, no entanto, entendi que havia um lado político na proposta, a possibilidade de forjar modelos de feminilidade que fossem nos libertando dos padrões cis, que nos permitissem habitar mais à vontade os nossos próprios corpos. Topei.

Reflexo desse medo é a inibição que transpira na única foto em que, à época, me senti bem, essa que brinca de se imaginar pintura renascentista. Nudez em meio a lençóis amarrotados, olhar distraído, clima de intimidade, mas ainda assim a inibição de quem não sabia se podia ousar tanto, de quem se odiou em todas as fotos prévias (motivos não faltaram, desde os braços compridos, ombros, testa protuberante, esse meu nariz, o volume dos seios que some sob alguns ângulos). No entanto, o curioso é voltar hoje àquelas 20 melhores fotos que Camila fez comigo e perceber que essa escolhida, comportadinha demais e onde talvez nem se perceba fácil a minha transgeneridade, agora se apequena perto de outras em que meu corpo trans aparece de forma explícita, empoderada.

Precisei da obstinação da fotógrafa para que as fotos surgissem (quase desisti, protelei quanto pude e ela, por sorte, insistiu) e, agora, da ousadia das minhas companheiras para poder voltar às minhas próprias fotos e percebê-las belas, sem sentir vergonha.

As fotos de Camila foram feitas, sobretudo, dentro de nossas casas, no quarto, boa parte delas em cima da cama, mas também no sofá da sala, numa cadeira, com a cozinha ao fundo, algumas no chão ou de pé contra a parede quase sempre nua, ambientes íntimos o suficiente, nossos, para estimular a descoberta desses corpos e dos femininos que os habitam, dos femininos que eles vão pouco a pouco tornando possíveis. Descoberta, sim, pois, como salientei em relação à minha participação no ensaio (e que imagino também seja o caso de outras participantes), a segurança que essas fotografias revelam, o à vontade com que nossos corpos ocupam as molduras da câmera, é fruto de uma árdua desconstrução.

Eis corpos que só agora estão começando a fazer sentido. Primeiro em alguns espaços específicos, junto a certos grupos, onde podemos ser quem somos, sem ter que negociar nossa identidade. Depois nos adjacentes, e aí arquitetando pontes, até pouco a pouco sentirmos o mundo como espaço passível de ser chamado nosso. Enfrentar o mundo com esses corpos, no entanto, é um desafio diário. Os olhares que te acompanham, cutucões, xingamentos, o assédio e os abusos por parte de quem só te compreende como corpo à disposição, esses lembretes cotidianos de que ainda somos entendidas como elementos intrusos na sociedade. Por isso também a importância dessas imagens, forma de dar sentido aos nossos corpos, de fazer com que a sociedade, habituada a eles, possa ser por eles habitada.

Um novo feminino eclode a partir dessas novas gerações trans. Feminino que, como se vê no ensaio, muitas vezes abdica ou mesmo rechaça a necessidade de cosméticos, de tratamentos hormonais ou de intervenções cirúrgicas tão frequentemente associadas a nós: próteses, silicone, cirurgia de feminilização fácil. O próprio nome deste último procedimento começa a perder sentido à medida que contestamos e transfazemos esse ideal de feminilidade, ideal absurdo inclusive para os corpos de mulheres cis. Um feminino mais livre de regras e, portanto, também mais imprevisível, surpreendente em boa medida, comportando as muitas corporalidades que nos constituem: negras, indígenas, brancas, gordas, magras, com diversidade funcional, de variadas alturas e idades.

Onika, da série Onika, de Camila Falcão, 2017

Genital, inclusive, aqui nem se vê. No máximo se intui, ao contrário do que se esperaria de um ensaio em revistas eróticas. É como se essas fotos dissessem que é possível, sim, falar sobre nós sem remontar necessariamente a esse elemento tão discutível, tão atacado de nossos corpos. Se aparecesse nas fotos, é bem possível que viria não na pujança dos filmes pornôs, mas flácido, em posição de repouso, mais ou menos como Léa T. no pioneiro ensaio para a Vogue Paris, há quase dez anos. “Mulher de pau” sim, mas não que precisemos falar desse pau em detrimento de todos os outros aspectos de nossa mulheridade. Ou, como disse, mais uma vez, Linn da Quebrada, “ela não quer pau, ela quer paz”.

Termino com uma percepção curiosa. A minha foto, a primeira de todas da série, é a única que não encara diretamente a câmera, que não sustenta o olhar da sociedade. Como se àquela altura eu ainda estivesse envergonhada da própria ousadia de posar, de imaginar-me bela. Bonito perceber que aos poucos não precisamos mais sentir vergonha nem pedir desculpas por, existindo, obrigar a sociedade a uma revisão das normas de quais corpos poderão existir e quais poderão ocupar o espaço do que se entende por feminino.///

 

Camila Falcão nasceu e cresceu em São Paulo. Formada em Artes Plásticas pela FAAP, é artista, fotógrafa e diretora de arte de cinema.

Amara Moira é travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp com tese sobre o Ulysses de James Joyce e também autora do livro autobiográfico E se eu fosse puta (2016, hoo editora).

 

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