Ensaios

Daido Moriyama e a beleza sombria das cerejeiras em flor

Lidia A. Bardaouil Publicado em: 17 de outubro de 2022

Reprodução do fotolivro Ango, de Daido Moriyama, 2016.

Enquanto escrevo este texto, amigos me enviam mensagens para irmos visitar, num município ao lado um campo de cerejeiras (sakuras) que terão sua esperada floração no mês de julho, atração de destaque de um grande festival nipo-brasileiro. Receio ter que recusar e culpo as responsabilidades, mas algo em mim deixa claro que não irei por um certo temor de encará-las novamente. Além de ser um parque que frequentei por muitos anos e que me traz lembranças e gatilhos, após ter tido contato com a obra de Daido Moriyama e o correlacionado poema de Ango Sakaguchi, jamais vi as flores rosadas da mesma maneira. Observando as cerejeiras fotografadas pelas lentes de Moriyama, vemos o seu característico tom suave de rosa pastel ser desfalecido e revelado em granulações de preto, o seu aspecto macio e imaculado transformado em algo um tanto quanto sujo e rugoso. A ideia de um aroma fresco e atraente de um campo coberto por pétalas parece perder-se num odor banal de calçadas e terrenos baldios.

Daido Moriyama, nascido em 1938 em Osaka, é mundialmente conhecido por fotografar espaços urbanos de boemia, atraído pelo cheiro dos becos, pelo submundo, pelo movimento e as “sujeiras” das grandes cidades. Contudo, no fotolivro Contos de Tōno (Tōno Monogatari – 1976) ele se volta inusitadamente para as zonas interioranas turísticas do nordeste do Japão. O livro apresenta fotos de vistas bucólicas, como linhas de trem, casas de madeira, automóveis estacionados em estradas de terra, entremeadas àquelas de ruas pavimentadas com cartazes publicitários de produtos de beleza e vitrines de lojinhas locais. As cenas de natureza misturadas às de comércios e outros aparatos modernos causam um contraste curioso e empolado. As cerejeiras aparecem de maneira sombria, como plano de fundo de algumas fotos, retratadas sob céus nublados, esmaecidas e envoltas por efeitos de vinheta negras que lhes atribuem uma atmosfera obscura e fantasmagórica.

Reprodução do fotolivro Ango, de Daido Moriyama, 2016.

A sequência de imagens é construída de modo a evidenciar a solidão de uma cidade interiorana pitoresca na província de Iwate (Tohoku). Vemos, por exemplo, a foto de um brinquedo num parque vazio com cerejeiras pálidas ao fundo. Em outra página, uma criança sozinha aparenta estar um pouco desnorteada, com braços esticados e tentando se equilibrar, mas sem ninguém em volta para lhe segurar da possível queda. O olhar do fotógrafo subverte as representações usuais das sakuras nas mídias e da imagem turística que o governo costumava vender da região, um local para se estar em harmonia com a natureza, com crianças alegres segurando a mão de pais e avós em cartões-postais. Sabe-se que durante o período pós-guerra houve um crescimento da publicidade do local como um espaço para se visitar as origens japonesas, com as cerejeiras retratadas de forma atraente, colorida e suave (e ainda hoje é assim). Na primavera, por exemplo, os japoneses celebram o Hanami, festa tradicional para apreciação da florada da sakura. Na ocasião, fazem piqueniques, tiram fotos e confraternizam em campos rosados sob as árvores. Não só pelo costume, mas pela brevíssima vida da flor (cerca de sete dias por ano), é até difícil encontrar um campo de cerejeiras floridas e poder apreciá-las com solitude, sem os aglomerados de gente fazendo o mesmo. Contudo, sempre foi assim?

Em 1949, o escritor japonês Ango Sakaguchi escreveu em um conto ficcional intitulado Under the cherry blossoms in full bloom (Debaixo das cerejeiras em plena floração): “Que primavera gloriosa! – mas é tudo mentira. […] Hoje em dia, estamos tão acostumados a ver pessoas se reunindo ali, bebendo e conversando, que achamos que sob as flores de cerejeira deveríamos ser alegres e barulhentos, mas, na verdade, se você tirasse todas aquelas pessoas de lá, você sentiria uma atmosfera terrível.”

As fotografias de Moriyama parecem revelar um simulacro semelhante. Contos de Tōno apresenta uma Tohoku marginalizada, tentando se vender de maneira quase fetichista para os turistas, expressando assim um argumento crítico acerca da comodificação da natureza, bem como, da cultura japonesa e seus símbolos. Notamos, por exemplo, cenas de pequenos comércios vendendo artigos tradicionais como yukatas e kimonos, vestidos por manequins sem cabeça ou com expressões ocidentais um tanto bizarras. Na visão do artista, a penumbra e a aura escura que encobrem esses objetos indicam que há algo de nocivo naquelas cenas cotidianas. Como na maioria dos lugares turísticos do mundo, a população local recebe classes abastadas enquanto permanece em situação precária. Moriyama declara ter dedicado o livro às pessoas reais de Tōno, e para alguém tão urbano e fascinado por “coisas feias” quanto ele, a obra parece querer dizer “o interior também não é tão bonito assim”.

Reprodução do fotolivro Ango, de Daido Moriyama, 2016.

Moriyama compartilha do pensamento de Sakaguchi não apenas na sensação de “é tudo mentira”, mas também na percepção sobrenatural da cerejeira, se observada fora das multidões. A escolha do título do fotolivro referencia o homônimo livro de contos populares japoneses escrito em 1910 por Kunio Yanagita, reconhecido como o pai dos estudos folclorísticos no campo acadêmico do país. A região de Tōno (cidade da província de Iwate) é famosa por sua ligação com a fantasia, as narrativas folclóricas e xintoístas, incluindo algumas histórias aterrorizantes envolvendo demônios e criaturas místicas. Apesar de as fotos terem sido tiradas em diferentes cidades de Tohoku, o nome faz alusão à Tōno não como uma localização geográfica, mas como um local quase que imaginário onde a vida e a morte coexistem. Na fotografia da criança solitária tentando se equilibrar percebemos indícios da atmosfera assustadora a qual Sakaguchi se refere no conto. Uma enorme e frondosa árvore de cerejeira é colocada na composição de maneira não muito amigável. Seus ramos saem da área central e se estendem até as bordas da figura, impedindo que vejamos a sua extensão. Essa disposição, somada ao movimento vertiginoso da câmera, faz os galhos parecerem longos braços magros de um ser poderoso, espreitando a pequena criatura indefesa e desavisada de costas para sua grandiosa presença.

Não obstante, precisa-se ressaltar que essa visão um tanto negativa e obscura da sakura pode dizer mais sobre o momento psicológico em que Moriyama estava imerso, do que sobre a realidade do lugar em si. Quando viajou para Tohoku, ele se encontrava em um período de crise emocional decorrida de um trabalho anterior, o fotolivro Adeus, fotografia! (Shashin Yo Sayonara – 1972). Neste, Moriyama buscou literalmente se despedir da fotografia, mutilá-la, esgotá-la e testar os limites do que poderia ser considerado fotográfico, expressando uma angústia que o acometia desde seus trabalhos iniciais com o icônico grupo Provoke (1968-1971). Assim, após a publicação do livro, ele não sabia mais o que fazer. E, tomado por um enorme vazio e a incapacidade de ver sentido nas coisas, iniciou uma busca por sua raiz como japonês – condição particular que talvez seja reflexo da crise de identidade nacional que acometia grande parte da geração crescida no pós-guerra e sob a ocupação norte-americana.

Por mais extensa e multifacetada que seja a carreira de Daido Moriyama, o aspecto que mais me intriga e fascina, pois perpassa grande parte dela, é o tom de desesperança quase niilista de sua época, misturado a um fascínio pela decadência (que se aproxima em alguns aspectos do que o ocidente conhece pela figura do “poeta maldito”). Isso explica em parte o interesse do artista pelo movimento literário Buraiha (無頼派), traduzido como Escola da Decadência, do qual Ango Sakaguchi era um dos principais integrantes. O estilo Buraiha criticava o pensamento conservador japonês pré-guerra, e também os valores ocidentais introduzidos com a ocupação. Tais escritores carregavam forte influência de filósofos existencialistas como Jean-Paul Sartre e Albert Camus.

Reprodução do fotolivro Ango, de Daido Moriyama, 2016.

Como entusiasta da obra de Sakaguchi, em 2016 Moriyama compilou uma nova série de fotografias de sakuras no fotolivro Ango, desta vez tomadas como objeto central e montadas em paralelo ao conto Under the cherry blossoms in full bloom completo. As fotos se intercalam com os versos de uma história de temas sobrenaturais, soturna e trágica, que lembra as peças do antigo teatro Nô, abordando youkais (demônios) e todo o cenário com feudos e palácios de um Japão pré-ocidentalização. Apesar de a montagem seguir uma narrativa, as fotos não ilustram o que está sendo dito no conto, mas complementam.

O texto fala de um assassino que, enfeitiçado pela infinita beleza de uma mulher, aceita os desmandos dela e deixa sua querida casa nas montanhas para ir viver na cidade. Comete uma série de assassinatos, levando as cabeças das vítimas para satisfazer a sádica mulher, que também ansiava por muitas jóias para se enfeitar. O homem, ao olhá-la, a descreve com o mesmo temor e encantamento de quando olhava uma cerejeira em plena floração: ela é tão bonita que amedronta. O narrador conta que, segundo as lendas, as pessoas evitavam passar por campos de sakuras floridas, pois podiam facilmente ser acometidas por demências, maldições, visões de pessoas mortas e demônios.

Em um dado momento, o homem, já não vendo mais sentido em sua vida, desmaia de cansaço e, quando desperta, vê-se embaixo de uma cerejeira. Ele é então envolvido por um grande sentimento de nostalgia de sua antiga casa nas montanhas. Lembramo-nos que a flor de cerejeira, antes de ser este ícone festivo atual, é um símbolo da estética mono no aware (o pathos das coisas), o sentimento nostálgico de observar e assumir a transitoriedade e efemeridade da vida, de enxergar a beleza simultânea à tristeza nas pessoas que falecem, nas relações que acabam, na mudança das estações, na breve flor que em pouco tempo estará seca e levará um ano todo para florescer novamente. É um pesar característico por tudo que logo irá findar. Contudo, não se trata de apego. Tal como afirma o dramaturgo e teórico Zeami Motokiyo, “a flor é maravilhosa porque floresce e extraordinária porque cai”.

Assim, tomado por um insight, o homem se alegra e decide finalmente deixar sua amada e voltar para as montanhas. Para sua surpresa, a mulher decide voltar com ele. Quando estão cruzando o campo florido, ela se transforma em um monstro aterrorizante de pele verde e cabelos finos. Ele a mata e então ela volta a ser sua bela amada, deixando assim a dúvida se foi tudo uma alucinação causada pelas sakuras. Ao final da história, a culpa e a tristeza o consomem até ele concluir que não há mais sentido em continuar vivendo.

É curioso notar que o kanji para sakura (桜 / 櫻) possui um radical que indica “árvore”, e outro que indica “mulher com colar”, ou seja, uma mulher enfeitada, bela, o que reforça toda a aura feminina misteriosa da flor e a concordância com o conto. Em meio às diversas fotografias de cerejeiras em Ango, há algumas quebras de expectativa e surpresas no decorrer do fotolivro, como a imagem de uma mulher fantasmagórica e a de um feto de cócoras envolto por uma penumbra macabra. O ritmo da montagem nos faz sentir como se aos poucos descortinássemos a verdadeira face que a bela flor esconde: um demônio perigoso e cheio de malícia que pode levar uma pessoa à ruína.

Reprodução do fotolivro Japão, um teatro de fotos, de Daido Moriyama, 1968.

A pequena criatura que emana da escuridão é como um ser oriundo do Yomi (mundo dos mortos na mitologia japonesa), localizado um pouco abaixo do mundo dos vivos e que, curiosamente, possui entrada num ponto geográfico real em Izumo, na província de Shimane. Nota-se que, para a cultura japonesa, a separação entre espíritos e humanos é muito mais sutil do que a compreendemos no ocidente. E os locais ou elementos na natureza que se destacam de alguma forma, sempre foram vistos como pontos de conexão com o plano do sobrenatural. É precisamente isso que o fotolivro Ango capta com grande sensibilidade, tanto as cerejeiras referidas do conto quanto as fotografias de Moriyama são como portais para os mistérios sombrios entre a vida e a morte. Diante disso, podemos concluir a ironia de ter sido justamente um olhar marginal de um fotógrafo de vanguarda a resgatar toda essa faceta importante da tradição japonesa que havia sido pasteurizada pelo empreendimento publicitário. A viagem, a princípio despretensiosa, a um local tido como agradável em 1972 revelou a potencialidade cruel de uma beleza tão extraordinária que chega a ser aterrorizante. ///

Lidia A. Bardaouil é pesquisadora, bacharel em Artes Visuais pela Unesp e mestra em História da Arte pela Unifesp, com trabalho em fotografia japonesa do período pós-guerra. Integra o Grupo de Estudos Arte Ásia USP/Unifesp onde desenvolve pesquisa na área de arte oriental e transculturalidade.

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