Ensaios

Confissões de uma máscara: Yukio Mishima e a fotografia

Lucas Gibson Publicado em: 11 de dezembro de 2025

Fotografia de Yukio Mishima na Escola Primária Gakushuin, 1931. Wikimedia Commons.

Yukio Mishima, nascido Kimitake Hiraoka em 14 de janeiro de 1925, em Tóquio, foi um dos escritores mais emblemáticos e controversos do Japão do século 20. Autor de romances, ensaios e peças teatrais, Mishima construiu uma obra marcada pelo rigor estético, pela exploração da corporeidade e pelo confronto constante com temas como beleza, violência e morte. Tendo presenciado as tensões e conflitos que permearam a guerra e o pós-guerra, sua literatura foi intensamente marcada pelas contradições da Era Showa (1926-1989), refletindo tanto a nostalgia por valores tradicionais quanto o impacto da modernização e da influência ocidental sobre a sociedade japonesa.

Ao longo de sua vida, Mishima estabeleceu parcerias significativas com fotógrafos de sua época, elaborando ensaios que foram fundamentais para construção de sua identidade como escritor. Nomes como Kishin Shinoyama, Yatō Tamotsu e Eikoh Hosoe captaram diferentes dimensões de sua personalidade e de sua estética cuidadosamente construída, produzindo corpos de imagens que se tornaram emblemáticos e essenciais para compreender a complexidade de sua obra e a relação entre arte, corpo e identidade.

Mishima explorava de forma singular a relação entre vida e criação artística, borrando as fronteiras entre realidade e ficção. Essa postura se tornou ainda mais evidente nos ensaios fotográficos que encenavam sua própria morte, como Otoko-no shi (A morte de um homem), nos quais o autor explorava simbolicamente elementos como o seppuku (ritual suicida samurai) pouco antes de consumá-lo de fato em novembro de 1970.

Por ocasião dos 100 anos do nascimento do escritor e dos 55 anos de sua morte, este texto se debruça em algumas das principais fotografias do autor, evidenciando como esses registros fotográficos permitem observar sua trajetória sob múltiplas perspectivas, mostrando como corpo, performance e imagem se articulam na obra de um autor que transformou a estética, a corporeidade e a própria morte em elementos centrais de sua criação artística.

Kimitake Hiraoka, conhecido como Yukio Mishima, nasceu em Tóquio em 14 de janeiro de 1925. Quando tinha apenas 29 dias de vida, foi afastado da mãe e passou a ser criado pela avó, presença dominante que marcou grande parte de sua infância e adolescência. Em 1929, ainda muito pequeno, Mishima enfrentou uma doença grave identificada na época pelos médicos como “autointoxicação”. A enfermidade o deixou fisicamente frágil, e sucessivas recaídas comprometeram sua recuperação, de modo que ele só alcançou uma condição de saúde mais estável já na vida adulta.


Mishima aos 19 anos com sua irmã Mitsuko, setembro de 1944. Wikimedia Commons.

Em 1937, após muitos anos vivendo com os avós, Mishima finalmente retorna aos cuidados da mãe e ingressa no ensino secundário, onde se destaca com notas excelentes. No ano seguinte, seu talento literário começa a se evidenciar, chamando a atenção de colegas mais velhos; ele passa então a contribuir regularmente para a revista da escola. Em 1939, mantém bom desempenho acadêmico e inicia a escrita de um romance ambicioso, Yakata (A Mansão), no qual explora pela primeira vez a ideia do “teatro homicida”. A obra, porém, permanece inacabada, tornando-se praticamente a única produção que ele não concluiu. Em 1941, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, finaliza sua primeira obra de maior fôlego, A Floresta em pleno esplendor, publicada em uma revista da época. Nesse momento, adota o pseudônimo Yukio Mishima, escolhido para ocultar suas atividades literárias do pai, que não aprovava sua dedicação à escrita.

Em 1942, Mishima continua se destacando academicamente. Nesse período, publica poemas de cunho patriótico na revista do colégio e desenvolve um interesse crescente pelos clássicos da literatura japonesa. Em 1944, forma-se como o primeiro aluno de sua turma e recebe como distinção um relógio oferecido pelo Imperador. No mesmo ano, é aprovado no exame médico do exército, mas não chega a ser convocado. Inicia então o curso de Direito na Universidade Imperial de Tóquio.


Frame de entrevista realizada com Yukio Mishima pelo canal de TV japonesa NHK em 1966.

Em fevereiro de 1945, enquanto trabalhava em uma fábrica de aviões, recebe um aviso de convocação para a guerra. Despede-se dos pais acreditando que morreria em combate, mas é reprovado no exame médico devido ao diagnóstico equivocado de um médico militar, que suspeita de tuberculose. Mishima não tenta corrigir o erro; ao contrário, reforça a interpretação duvidosa ao responder de modo ambíguo. Ele retorna a Tóquio e, em agosto daquele mesmo ano, a guerra chega ao fim.

Ouvir o anúncio da rendição japonesa em 15 de agosto de 1945 no rádio pela voz do Imperador foi um acontecimento que marcou Mishima de forma definitiva. Com o fim da guerra e sob o ambiente de ocupação e censura das potências Aliadas, ele passou a publicar algumas de suas obras mais emblemáticas, entre elas os romances Confissões de uma máscara (1949) e Cores proibidas (1951-53). No primeiro, reconhecido por incorporar muitos elementos de sua própria trajetória, acompanha-se a história de um jovem que, no contexto do Japão da Segunda Guerra, descobre sua homossexualidade. A noção de “máscara” refere-se à necessidade de ocultar aquilo que se é, de modo a se ajustar às expectativas sociais e, assim, ser aceito.


Guido Reni, São Sebastião, c. 1615. Reprodução. Domínio público

O romance descreve o contato do protagonista com determinadas imagens que, pouco a pouco, moldam sua compreensão do mundo e o auxiliam na descoberta de sua sexualidade. Entre essas imagens, a que exerce maior impacto é uma pintura de São Sebastião (1616), realizada pelo artista bolonhês Guido Reni. A partir desse encontro visual, o personagem – que já costumava fantasiar sobre a morte de príncipes e cavaleiros – relata sua primeira masturbação diante da imagem do santo.

Durante o processo de escrita de Cores proibidas (parte 1 publicada em 1951, parte 2 em 1953), romance com uma narrativa de forte carga erótica, centrada na repressão do desejo e na relação entre pulsão sexual, Mishima frequentou diversos bares gays em Tóquio e viajou ao Brasil, participando do Carnaval do Rio de Janeiro em 1952. Segundo Shoichi Saeki, foi justamente no Rio, onde sentia um temor muito menor em relação ao olhar alheio, que Mishima conseguiu vivenciar sua homossexualidade com maior liberdade.

Em 1959, o fotógrafo japonês Eikoh Hosoe (1933-2024) presencia a apresentação inaugural do Butô intitulada Cores proibidas (Kinjiki), encenada por Tatsumi Hijikata em colaboração com Yoshito Ohno. A performance, inspirada no romance de mesmo nome de Mishima, causou forte impacto na sociedade japonesa por abordar de maneira explícita os temas homoeróticos presentes na obra literária.

A partir desse encontro decisivo, iniciou-se a colaboração entre Hosoe e Hijikata. Profundamente impactado pela performance, Hosoe procurou o dançarino e sugeriu que trabalhassem juntos em um projeto fotográfico. Hijikata aceitou, e Hosoe passou a registrar o coreógrafo e sua trupe tanto em estúdio quanto em locações externas, produzindo imagens e séries que comporiam sua segunda exposição individual, Homem e Mulher (Otoko to Onna), em 1960.

O fotógrafo ainda não imaginava que essa parceria com Hijikata abriria caminho para outra colaboração marcante: seu trabalho com Yukio Mishima, que resultaria, nos anos seguintes, na série Barakei, talvez seu projeto mais famoso e celebrado.


Reprodução do livro Barakei, de Eikoh Hosoe, 1961

A série Barakei teve início em 1961, quando a editora Kodansha encomendou a Hosoe um conjunto de fotografias de Yukio Mishima para ilustrar o primeiro livro de ensaios do escritor. Hosoe ficou intrigado com o convite, sem compreender por que havia sido escolhido para retratar uma figura tão célebre. A explicação veio por telefone: o editor informou que o próprio Mishima solicitara que ele fosse o fotógrafo. Mesmo assim, Hosoe continuou se perguntando o motivo.

Ao chegar à casa do escritor, Mishima o recebeu dizendo, como se respondesse às dúvidas não verbalizadas: “eu amei suas fotos de Tatsumi Hijikata, e gostaria que você me fotografasse daquele jeito”. As imagens vistas por Mishima pertenciam às séries produzidas por Hosoe com Hijikata em 1960, além das fotografias da exposição Homem e Mulher. Mishima, assim como Hosoe, havia assistido à performance Cores proibidas e se impressionado com a leitura do romance no estilo Butô. Ali, em 1959, estava o ponto de partida da colaboração entre esses três artistas japoneses fundamentais do pós-guerra.

As fotografias que acompanharam o livro de ensaios foram publicadas em novembro de 1961, e o trabalho de Hosoe, em princípio, estaria encerrado. Realizadas na própria casa de Mishima e com assistência de Daido Moriyama, as imagens combinavam nudez, erotismo e o cenário exuberante do interior rococó do escritor. Entretanto, após a recepção entusiasmada de Mishima, ambos decidiram prolongar o projeto, realizando novas sessões até a primavera de 1962, somando cinco ou seis encontros fotográficos.

Hosoe relata que Mishima lhe deu total liberdade criativa, afirmando que seria simplesmente o seu “assunto” ao longo da produção das imagens. Essa confiança aliviou as inseguranças do fotógrafo e permitiu que ele desenvolvesse suas ideias com espontaneidade dentro da casa do escritor.


Reprodução do livro Barakei, de Eikoh Hosoe, 1961

Na segunda sessão de fotos, Mishima mostrou a Hosoe diversas reproduções de pinturas barrocas e renascentistas das quais gostava, pertencentes a autores como Botticelli, Rafael e Guido Reni. A partir da observação das pinturas, dos objetos e da casa de Mishima, Hosoe percebeu que poderia construir uma interpretação singular do escritor a partir das referências que ele possuía e amava.

Embora Hosoe tenha recebido grande liberdade de Mishima para a elaboração das imagens, o fotógrafo une sua subjetividade a do escritor ao fotografar a pintura O Nascimento de Vênus de Sandro Botticelli (um dos quadros que Mishima admirava) com o olho do próprio Mishima sobreposto.


Reprodução do livro Barakei, de Eikoh Hosoe, 1961

Em 1963, Barakei foi publicado em formato de livro, resultado de um processo de elaboração cuidadoso que contou com consultas e colaborações de Mishima. Ainda assim, a seleção final das imagens e seu sequenciamento ficaram sob responsabilidade de Hosoe. A obra foi estruturada em cinco seções nomeadas por Mishima, que evocam temas como vida, morte e erotismo, tendo o corpo do escritor como eixo central.

O título da série também surgiu de uma sugestão do próprio Mishima. Na edição de 1963, foi traduzido para o inglês como Killed by roses (Morto pelas rosas). Nas edições posteriores, porém, a tradução inglesa passou a ser Ordeal by roses (Provação pelas rosas), mudança recomendada pelo escritor por refletir de maneira mais fiel o sentido do título original em japonês.

A parceria entre Mishima e Hosoe resultou em um registro singular de uma das figuras literárias mais importantes do Japão. A teatralidade das composições, o uso de técnicas fotográficas experimentais, os diálogos com referências pictóricas europeias e a evidente cumplicidade entre fotógrafo e fotografado conferem a Barakei um caráter profundamente íntimo e coerente, consolidando-o como um projeto estético e consistente.

Mishima em novembro de 1955. Wikimedia Commons.

Após retornar de uma viagem à Grécia em 1952, Mishima iniciou um processo de culto ao corpo e suas formas, iniciando a prática de artes marciais e musculação em ritmo mais intenso. Nesse sentido, uma de suas mais célebres colaborações se deu com o fotógrafo Yato Tamotsu, conhecido por registrar corpos masculinos e praticantes de fisiculturismo.

Tamotsu começou a fotografar por volta dos 30 anos e defendia uma relação essencial entre corpo e espírito, ideia que se alinhava às reflexões de Mishima, especialmente às desenvolvidas em seu livro autobiográfico Sol e Aço, publicado em 1968. A afinidade entre os dois aparece com clareza quando Mishima escreve a introdução de Bodybuilders of Japan (Fisiculturistas do Japão), publicado por Yato em 1967. Neste texto, o escritor expressa entusiasmo ao encontrar um fotógrafo que compreendia verdadeiramente o corpo masculino, tanto em sua forma quanto em sua anatomia, já que o próprio Yato era fisiculturista.


Foto de Mishima presente no fotolivro Jovens Samurais: Fisiculturistas do Japão, de Yato Tamotsu, publicado em 1967. Reprodução da biografia Quem são Mishimas?, de Victor Kinjo, editora Autêntica.

Ao longo dos anos 1960 e novamente em 1970, Mishima participou de diversos ensaios marcadamente performáticos em que encenava a própria morte, tanto no cinema quanto na fotografia. Na década de 1960, Mishima posou para Tamotsu em uma série de imagens em que teatraliza o seppuku, o ritual de suicídio samurai, utilizando chocolate como sangue falso. Esses trabalhos, somados a outras encenações feitas ao longo da década e ao desfecho de sua vida em 1970, ajudam a compor um período em que Mishima explorou de forma intensa, consciente e performática a representação de sua própria morte nas artes visuais.

Mishima publica em 1967 sua leitura do Hagakure, obra clássica de 1716 que reúne os ensinamentos do samurai Tsunetomo Yamamoto. Ele considerava o livro uma das influências centrais de sua vida, retornando a ele repetidamente desde a guerra e encontrando novos sentidos a cada leitura. Para Mishima, o Hagakure oferecia uma orientação espiritual capaz de sustentar sua moralidade, sua solidão e sua postura anacrônica diante do Japão do pós-guerra. A máxima “o caminho do samurai é a morte” era para ele um princípio de liberdade e coragem, orientando sua visão de existência e a forma de conduzir sua vida. Mishima defendia que refletir diariamente sobre a morte intensifica a vida, conferindo sentido e intensidade às ações cotidianas, e permitia lidar com a fragilidade e a efemeridade da existência humana.

Para Mishima, o Hagakure não se limita à morte, mas inclui ensinamentos éticos, instruções práticas para o samurai e reflexões sobre ação, caráter, paixão e amor, incluindo o amor homossexual, tema recorrente em sua leitura. Em sua interpretação, Mishima traça paralelos entre a decadência moral percebida por Yamamoto e a que ele identificava no Japão pós-guerra, mostrando como os princípios do livro o ajudaram a viver uma vida intensa e significativa, guiada pela disciplina, pelo desejo e pela busca de valores duradouros.


Fotos de Mishima realizadas por Kishin Shinoyama inspiradas na iconografia de São Sebastião. Reprodução da biografia Quem são Mishimas?, de Victor Kinjo, editora Autêntica.

Kishin Shinoyama (1940-2024) foi um dos fotógrafos mais renomados e influentes do Japão, reconhecido principalmente pelos retratos que realizou de celebridades como John Lennon, Yoko Ono, Rie Miyazawa, Rinko Kikuchi e Momoe Yamaguchi. Entre seus trabalhos mais notáveis estão as fotografias do escritor Yukio Mishima, resultado de uma parceria que produziu imagens expressivas da personalidade do autor. No ano de 1968, durante seu primeiro período como freelancer, Shinoyama conheceu Mishima. Em outubro daquele ano, fotógrafo e escritor publicaram na revista Sangue e rosas (Chi to bara) uma imagem de Mishima encenando o martírio de São Sebastião, marcando o início de suas colaborações voltadas para a teatralização da morte do escritor.

Em 1970, impressionado com a maneira como Kishin Shinoyama fotografava o corpo humano, Yukio Mishima convidou-o para realizar a série fotográfica Otoko-no shi (A morte de um homem), composta por encenações da própria morte do escritor. A maior parte das imagens foi produzida entre o início de setembro e 20 de novembro de 1970, formando a estrutura de um fotolivro que seria lançado apenas em 2020. A coletânea privilegiou fotos inéditas, razão pela qual a famosa imagem de Mishima como São Sebastião não foi incluída, embora algumas imagens publicadas em anos anteriores tenham aparecido de maneira esparsa, como as presentes na introdução.

Inicialmente, Mishima havia planejado que o artista Tadanori Yokoo participasse do projeto, realizando “ensaios de morte” em páginas alternadas do livro. Yokoo, que na época estava hospitalizado, recebeu a proposta da editora responsável pela publicação, que trouxe um contrato pronto para assinatura. Embora surpreso e sem questionar o convite quase imperativo de Mishima, Yokoo concordou, confiando na visão do amigo e no potencial artístico do projeto.

Apesar do interesse, Yokoo hesitou em se envolver diretamente nas encenações da morte, preocupado com a intensidade do tema e com sua recuperação física. Mishima, impaciente e consciente do tempo, optou por prosseguir sozinho, telefonando a Yokoo apenas três dias antes de seu suicídio, em 25 de novembro de 1970, cinco dias após a conclusão das fotografias. A experiência posterior ajudou Yokoo a compreender, ainda que parcialmente, a lógica de Mishima, já que a morte por seppuku exige a presença de um assistente (kaishaku-nin) para executar o golpe final.


Mishima e Tadanori Yokoo (1968) em reprodução do fotolivro A morte de um homem, de Kishin Shinoyama (2020)

Dois anos antes, em 1968, Mishima e Yokoo já haviam posado juntos para Shinoyama. Nessas imagens, Mishima aparece quase completamente nu, vestindo apenas fundoshi e hachimaki, empunhando uma katana, enquanto Yokoo usa uniforme militar e tênis All Star, com a bandeira japonesa como pano de fundo, antecipando a teatralidade e o simbolismo que marcariam Otoko-no shi.

Poucos dias após o suicídio de Mishima, Shinoyama levou a Yokoo as fotografias que fariam parte do fotolivro Otoko-no shi. Originalmente previsto para 1971, o lançamento foi adiado em decorrência da morte do escritor e só se concretizou 50 anos depois. De forma semelhante, a segunda edição de Barakei, com projeto gráfico de Tadanori Yokoo, também estava prevista para novembro de 1970, mas sofreu atrasos devido à hospitalização de Yokoo e, posteriormente, a morte de Mishima. No fim, esta obra acabou sendo publicada em 1971 a pedido da viúva Yoko Hiraoka.

A diferença no tratamento editorial entre os dois livros é compreensível: Barakei explorava um lado mais misterioso e estético de Mishima, valorizando seu corpo e seu apreço pela arte ocidental, enquanto Otoko-no shi lidava diretamente com a temática da morte, refletindo de maneira inquietante elementos relacionados ao suicídio iminente do escritor, mesmo que Shinoyama desconhecesse seus planos. Além disso, as ligações de Barakei com a morte de Mishima são questionáveis, pois o fotolivro foi lançado em 1963, sete anos antes do seppuku, enquanto Otoko-no shi foi produzido poucos meses, e em alguns casos dias, antes do evento.


Reprodução do fotolivro A morte de um homem, de Kishin Shinoyama, 2020

O fotolivro Otoko no Shi está estruturado em três seções: Otoko-no shi (A morte de um homem), Tatenokai (Sociedade do escudo) e The death of a samurai (A morte de um samurai). Cada parte oferece uma perspectiva distinta sobre a morte de Mishima, sendo a primeira e a última mais explícitas, frequentemente sugerindo o que ocorreria no dia de seu seppuku. A seção inicial, A morte de um homem, é a mais extensa e variada, mostrando Mishima assumindo diferentes personagens em uma série de encenações dramáticas. Uma das imagens mais impactantes retrata Mishima em pé, com os olhos fechados, atravessado por uma espada de esgrima, enquanto o sangue escuro escorre sobre o uniforme branco característico dos praticantes da modalidade. A fotografia combina teatralidade e simbolismo, encapsulando de forma intensa o tema central do fotolivro: a morte como performance e manifestação artística.


É interessante observar como as duas fotografias que encerram a seção – sendo uma delas utilizada na capa do fotolivro – fazem referência à ideia de máscara mortuária, remetendo a comentários de Mishima em sua obra O Hagakure: a ética dos samurais e o Japão moderno, publicada em 1967. Mishima analisa a passagem que trata do uso de cosméticos pelos samurais, que à primeira vista poderia ser interpretada como um indício de feminização. Segundo o texto, os homens deveriam manter a cor das flores de cerejeira mesmo na morte. Antes de realizar o suicídio ritual, era costume aplicar ruge no rosto para preservar a aparência de vida. Não se envergonhar diante do inimigo implicava cuidar da própria beleza, mantendo o vigor e a energia mesmo na morte. Assim como os gregos relacionavam estética e ética, a moral no Hagakure é orientada pela estética, resumida na máxima “o que é belo deve ser forte, vivo e transbordando de energia”.


Sociedade do Escudo – desfile de aniversário de um ano, 1969. Reprodução do fotolivro A morte de um homem, de Kishin Shinoyama, 2020

Em 1968, Yukio Mishima inaugura a Tate no Kai, ou Sociedade do escudo, uma milícia privada composta principalmente por jovens estudantes. O grupo tinha como objetivo promover valores tradicionais japoneses e cultivar um ideal de coragem e honra pessoal, servindo ao Imperador e buscando restaurar seu prestígio e autoridade divina, reduzidos pela constituição japonesa de 1947. A milícia também funcionava como espaço de treino físico e ideológico para Mishima e seus seguidores. A notoriedade do escritor era tamanha que, ao solicitar ao primeiro-ministro Eisaku Satô permissão para treinar com as Jieitai, as Forças de Autodefesa do Japão, o pedido foi aceito. Além disso, o futuro primeiro-ministro Nakasone Yasuhiro, então comandante da Agência de Defesa, concedeu à Tate no Kai acesso às instalações militares, fator que seria essencial para a entrada de Mishima no quartel no dia de seu seppuku.

A segunda seção do fotolivro Otoko no Shi, intitulada Sociedade do escudo, não apresenta imagens diretas da morte de Mishima. Nessa parte, as fotografias registram a milícia e destacam o escritor como líder do grupo. As imagens foram produzidas em 1969, durante o desfile comemorativo de um ano da organização, e mostram Mishima trajando o uniforme militar do grupo acompanhado de seus seguidores, com enquadramentos que evidenciam sua posição de comando.


A seção final do fotolivro, intitulada A morte de um samurai, reúne seis fotografias de Mishima realizando uma espécie de passo a passo para um seppuku. Nas imagens, o escritor veste elementos de traje formal samurai, como o kamishimo, e adota o penteado tradicional chonmage. Sobre uma superfície de madeira, uma pequena lâmina é apresentada, provavelmente uma tanto ou uma wakizashi, que simboliza o instrumento do ritual suicida.

Embora Mishima já tivesse encenado artisticamente o seppuku em fotografias de Tamotsu Yatō na década de 1960, usando chocolate como sangue falso, e em filmes como Yūkoku (1966) e Hitokiri (1969), esta última seção do trabalho de Shinoyama enfatiza a relevância que o escritor atribuía à execução ritual da morte. Ao dedicar uma parte inteira do fotolivro a esse tema, em meio a outras seções de conteúdo diverso, Mishima reforça a dimensão performativa e ensaística do seppuku. A organização sequencial das imagens consolida a ideia de ensaio de morte, reforçada ainda pelas repetições de motivos e poses presentes na primeira seção do livro.


Mishima discursa para soldados das Forças de Autodefesa, 1970. Wikimedia Commons.

Na manhã de 25 de novembro de 1970, Mishima executou um gesto final meticulosamente planejado: após preparar-se segundo os preceitos do Hagakure, dirigiu-se ao quartel de Ichigaya com membros da Sociedade do escudo (sendo um deles Masakatsu Morita), tomou o general Mashita como refém e pronunciou um discurso conclamando as Forças de Autodefesa a romperem com a Constituição pacifista e restaurarem o poder imperial, apelo que encontrou desinformação, ruído e ironia por parte dos soldados presentes. O seppuku de Mishima, realizado logo após o discurso e seguido pelo de Morita, ultrapassava a esfera política, condensando sua obsessão com o trauma da guerra, tema que atravessava sua literatura. O ato, pensado como um desfecho simbólico e corporal de suas convicções, contou apenas com testemunhas próximas e com Morita, cujo vínculo pessoal profundo com Mishima levantou, posteriormente, a hipótese de um shinju (suicídio duplo motivado por laço amoroso), selando uma morte construída como gesto derradeiro de lealdade, memória e protesto. ///



Lucas Gibson (1992) é fotógrafo, professor e pesquisador. Doutorando em História da Arte pela UNIFESP com tese sobre fotolivros japoneses, historiador da arte e mestre em Artes Visuais pela UFRJ e pesquisador do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) da USP/UNIFESP. Foi bolsista da Japan Foundation/Ishibashi Foundation em 2022, desenvolvendo pesquisa no Japão sobre fotolivros japoneses. Com frequência, organiza cursos, palestras e grupos de estudo sobre fotografia japonesa, já tendo publicado diversos artigos sobre o tema.




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