As minhas fotografias
Publicado em: 26 de outubro de 2021
A quem pertence a fotografia? Quem tem direito à imagem? Quais corpos merecem ser fotografados? Essas são perguntas que ecoam em mim. Talvez eu nunca consiga respondê-las, mas tenho buscado caminhos para ao menos entendê-las. Percebo que se torna impossível analisar o acesso à imagem sem compreendê-la como um campo em disputa pela construção identitária coletiva e pessoal. E, ao longo dessa busca, renovo o meu olhar barthesiano na leitura de que há diferenças entre as “imagens da fotografia” e as “minhas imagens”, entre as imagens que interessam à Fotografia e as que me interessam.
As “imagens da fotografia” são aquelas que fazem parte de um “universo coletivo”, de uma dita “memória mundial”. Já as “minhas imagens” são aquelas que adentram um espaço “além do mero registro”, são “as fotos que me interessam”. Sendo que o interesse posto nessas imagens é determinado, sobretudo, por uma relação de distanciamento e/ou aproximação.
Esse chegar perto da imagem é trazer novamente à vida aquilo que as faz existir, tanto como rememoração quanto como mecanismo de reprodução. E isso me interessa. Em vista disso, tomo a liberdade de aceitar o convite e partir em busca das minhas fotos, das “imagens que me interessam”. Em meio aos álbuns de família, encontro fotos que me “envolvem” e me “animam”, e decidi expô-las aqui.
Audaciosa empreitada, falar de minhas imagens em um momento em que tanto se fala da proliferação e excesso das fotografias pessoais, principalmente através das redes sociais. Apesar dessas inquietações, não podemos esquecer que o acesso à imagem fotográfica não é uma realidade para todos, tampouco o seu excesso. Quando falamos de fotografias familiares e pessoais, essa realidade é variável para cada pessoa. Por exemplo, verificamos uma lacuna, tanto na existência de tais imagens quanto no que diz respeito a suas análises, na trajetória de pessoas cuja realidade financeira impossibilitou o acesso prematuro a imagens, como no meu caso.
Nesse processo, pergunto-me: como mudar essa realidade? Como tornar as fotografias pessoais parte das imagens que interessam à Fotografia? Como analisá-las para responder às perguntas da Fotografia, ou gerar novas perguntas à Fotografia? Falar sobre as próprias imagens não se trata de desconsiderar as diversas especulações sobre a fotografia coletiva, mas de direcionar o olhar para as figuras simbólicas de nosso imaginário, que estão carregadas de complexas histórias, entre a sensibilidade subjetiva e a sensibilização mecânica. Assumindo-me como mediadora de cada uma das minhas imagens, interessa-me examinar as imagens fotográficas em sua eficácia, tanto afetiva quanto social, entendendo a fotografia para além do meramente documental e familiar. E, por isso, como ato político, opto por elas, opto pelas minhas memórias, pelo meu direito de ser e existir em imagem. Pois, afinal, o que seria de mim sem a minha memória, sem a minha história, sem o meu afeto pelas imagens, sem a minha importância dada a elas, sem o meu corpo?
A primeira fotografia que apresento é uma foto de despedida, uma foto tirada em Xique-xique, minha cidade natal, localizada no interior da Bahia, alguns dias antes da mudança da minha família para São Paulo. A imagem foi realizada em 1996, quando eu tinha por volta de seis anos de idade. Ela tem como fundo a praça central da cidade, com a igreja de Nosso Senhor do Bonfim complementando a paisagem. Em meio a tantas outras fotos, há algo nela que me chama.
Durante muito tempo, essa fotografia foi minha única imagem de Xique-xique. Passei quase 15 anos sem voltar à cidade. As memórias que eu tenho desse período são flashs da mente de uma criança, lembranças pouco definidas, embaraços. Porém, esse registro é a certeza dessas poucas lembranças, que afirma e confirma o ocorrido.
Concentro-me em um breve olhar voyeurístico pela imagem e após poucos segundos encontro alguns detalhes: a torre da igreja e as crianças que aparecem ao fundo prendem meu olhar. As crianças se destacam na foto. Apesar de a câmera não estar direcionada a elas, notamos o esforço em aparecer, em buscar um espaço, em eternizar seus corpos. Há um desejo em virar imagem fotográfica, em virar registro. Elas direcionam seus olhares para frente, como se a câmera estivesse chamando-as. Fazem caretas e diversos sinais com as mãos, como o clássico paz e amor.
Pergunto-me: onde estão essas crianças hoje? Que tipo de adultos são? Quais foram as suas histórias antes e após esse clique? Qual seria a reação de tais pessoas se pudessem ver essa foto? O trânsito da foto é também o deslocamento do corpo fotografado. Na mesma imagem há corpos que, para mim, possuem nome e história e que seriam, a princípio, o primeiro plano da imagem. Em contraposição, há corpos que para mim são anônimos, que não deveriam estar ali, mas que, uma vez estando, tornam-se o meu primeiro plano e interesse.
Estou consciente do jogo dos paradoxos, das sensações contraditórias: da ausência à presença, do permanente ao transitório, das lembranças aos esquecimentos, do eterno ao efêmero, do público ao privado. A fotografia, independentemente do fato de balançar entre os registros da apreensão da realidade e da experiência subjetiva, favorece o trabalho do arquivo pessoal, da memorização em torno de um repertório de imagens. Por isso, me fascina que ao mesmo tempo em que essas crianças de fundo são anônimas, pois não as conheço e só as vi nessa imagem, sejam as mais presentes.
Essa imagem me faz perguntar também o que ficou delas nessa foto. Saberiam que os corpos delas andam comigo? Aliás, o que entendemos como corpo na fotografia? Eis aí o meu outro objeto de leitura: o corpo-objeto, corpo vivo-morto, corpo que se obstina em si, mas que deturpa os saberes diversos. O ato fotográfico, por si só, é a morte. E a fotografia o reforço do luto, da existência do morto, da morte do passado.
Também através da fotografia traço a minha busca de trazer o luto, a lembrança do morto, o prazer e a emoção, uma análise que poderia ser antropológica, mas que é fotográfica. Ela traz consigo esse estado de perturbação que se abate sobre todos, “essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto”, do corpo que existiu, mas que já morreu no tempo, como já escreveu Roland Barthes em A câmara clara.
É com base nisso que, visando trabalhar a imagem através dos fatos e feitos da memória, tomo a liberdade de expor outra de minhas imagens: a do velório do meu avô Manoel.
Há muito tempo essa imagem intriga minha mente, por ser a única que tenho do meu avô. Uma imagem dele literalmente morto, tanto pela fotografia, que o prendeu ao papel, quanto pelo fim do ciclo vital. Eu não tenho lembranças do meu avô em vida, apenas essa imagem de seu velório, já morto.
Eu tinha apenas dois anos quando o meu avô faleceu. Esse conhecer alguém já em morte é algo que me seduz e me afasta. O retorno do morto é uma conservação do passado, do tempo dentro da fotografia, de objetos e pessoas que não envelhecem, que mesmo mortas permanecem com o passar dos anos.
Desde que conheci essa imagem do meu avô me pergunto o porquê de a única foto que tenho dele ser a do seu velório. Por que meu avô não teve o direito de ter sua imagem em vida eternizada?
O corpo eternizado no tempo é, além de um privilégio, um poder. Poder ser visto, poder existir em vida, mesmo estando morto. Em 2010 apresentei um projeto de iniciação científica durante um evento universitário. Queria apresentar ali o começo do estudo que acabo de fazer aqui: analisar as imagens que tenho da minha infância. Durante o evento fui interrogada por escolher apenas as “minhas imagens” como fonte de pesquisa visual. Segundo os membros daquela mesa, a subjetividade posta tornava questionável a possibilidade de tê-las como objeto de estudo acadêmico.
Após este episódio acabei desistindo da pesquisa. Anos depois, já no mestrado, deparei-me com uma situação que me fez relembrar aquele acontecimento. Em outro evento acadêmico, uma pesquisadora compartilhou um estudo que consistia na análise dos álbuns de família, um “baú de fotos”, como ela mesma mencionava. Objeto esse que passou por gerações até chegar aos seus avôs, duas personalidades importantes para a academia brasileira.
Aquele acervo fotográfico era realmente impressionante, fotografias que revelavam a história de mais de um século da família. Havia fotografias com autoridades nacionais, de viagens, eventos caseiros, registros de muitas etapas da vida dos avôs, bisavôs, pais, tios, tias, primos, etc. Olhar aquelas imagens só me fazia lembrar de duas imagens: a do meu avô e a única foto que tive da minha cidade por 15 anos. Perguntava-me o porquê do avô daquela pesquisadora ter um “baú de fotos” e o meu avô apenas uma imagem, já morto. Por que tal pesquisadora poderia pesquisar academicamente as “suas fotos” sem ser questionada sobre a legibilidade de sua pesquisa? E sem ter a sua relação afetiva posta em prova? Pelo contrário, era justamente aquela relação de proximidade e afetividade que encantava todos os presentes ali.
Não pude continuar a pensar sozinha e expus ali mesmo as minhas inquietações. Falei sobre a imagem do meu avô, das ausências-presenças sentidas nela, sobre o fato de eu não poder, ao contrário dela, investigar com tanta facilidade a história da minha família, sobre termos mecanismos institucionais e educacionais que direcionam os olhares de profissionais da educação apenas para as imagens programadas para serem aceitas e reconhecidas.
Ao final da minha fala, o silêncio reinou na sala. A pesquisadora não sabia ao certo o que falar, ficou parada a olhar a foto do meu avô. Sem muitas palavras, agradeceu e disse não haver pensado sua pesquisa a partir daquele aspecto, e que, para ela, até aquele momento, o direito a “ser fotografia” não tinha sido posto em questão.
Anos depois a reencontrei. Ela agradeceu a minha coragem de expor tais questões e disse que passou a acompanhá-las desde aquele dia. Contou que minha fala a fez mudar o olhar direcionado à pesquisa. E que, depois de me ouvir, foi impossível prosseguir com a pesquisa sem refletir a respeito das trajetórias sociais, raciais e educacionais das pessoas ali apresentadas. A fotografia do meu avô fez aquela pesquisadora dedicar um capítulo inteiro de sua dissertação para os corpos da fotografia que ela não via. E que, assim como os daquelas crianças na praça central de Xique-xique, puderam sair da penumbra do segundo plano para se tornarem o primeiro, para ganharem rostos. Esse encontro fez aquela pesquisadora rever a sua própria história e a de sua família, a fez rever aspectos da estrutura acadêmica e da pesquisa fotográfica.
Expor as próprias imagens não é fácil, é preciso coragem para abrir ao público os próprios álbuns. Mas depois desse percurso, concluo que, possivelmente, nenhuma fotografia teve tanto efeito para mudar a visão daquela pesquisadora. Nenhuma imagem, entre as milhares presentes nos livros de fotografia. E por isso, sim, as minhas imagens importam e interessam. É preciso efetivar o direito a ser história, a ser corpo e a ser memória. É preciso animar os acervos fotográficos pessoais. ///
Luciara Ribeiro é mestre em História da Arte pela Universidade de Salamanca (Espanha) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. Participou da residência artística em patrimônio material do projeto Avizinhações São Paulo-Maputo, contemplado pelo edital Conexões-Intercâmbios do Ministério Federal da Cultura. Foi assistente de curadoria da exposição Carolina Maria de Jesus – um Brasil para os brasileiros, no Instituto Moreira Salles (SP) e atualmente é docente no Departamento de Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina.
Tags: Fotografia e memória, Roland Barthes