A Spiral Jetty (1972)
Publicado em: 26 de janeiro de 2021O vermelho é a coisa mais maravilhosa e terrível no universo físico.
Ele é a nota mais feroz, a luz mais intensa, o lugar onde as paredes deste nosso mundo são mais finas e algo queima através delas.
G. K. Chesterton
Meu interesse por lagos de sal começou em 1968, com meu trabalho Mono Lake Site-Nonsite na Califórnia [1]. Mais tarde, li um livro de William Rudolph chamado Vanishing Trails of Atacama, que descrevia os salares na Bolívia em todos os seus estados de dessecação e saturados por microbactérias que dão à superfície da água uma tonalidade avermelhada. Os flamingos rosa que vivem nesses salares combinam com a cor da água. Em The Useless Land, John Aarons e Claudio Vita-Finzi descrevem Laguna Colorada: “O basalto (nas margens) é preto, os vulcões são púrpuros, e seus interiores, expostos, amarelos e vermelhos. A praia é cinza e o lago, rosa, coberto por camadas de sal solidificado que lembram icebergs.” [2] Como a Bolívia estava muito distante e o Mono Lake não tinha a cor avermelhada, decidi investigar o Great Salt Lake, em Utah.
De Nova York, liguei para a Coordenação de Parques de Utah e conversei com Ted Tuttle, que me contou que a água no Great Salt Lake, ao norte do atalho de Lucin, que corta o lago em dois, tinha a cor de sopa de tomate. Era o suficiente para que eu fosse até lá dar uma olhada. Tuttle falou a mim e a minha esposa, Nancy Holt, de algumas pessoas que conheciam o lago. Primeiro visitamos Bill Holt, que vivia em Syracuse. Ele teve um papel importante na construção da ponte conectando Syracuse à ilha de Antelope, na região sul do Great Salt Lake. Embora aquele lugar fosse interessante, faltava-lhe a coloração avermelhada que eu buscava, e continuamos nossa busca. Fomos então ver John Silver, na praia de Silver Sands, perto de Magna. Seus filhos nos mostraram o único barco capaz de navegar no lago. Por causa da enorme quantidade de sal na água, o lago era impraticável para embarcações comuns, e nenhum barco grande conseguia ir além do atalho de Lucin, por onde a estrada de ferro transcontinental cruzava o lago. Naquela altura, eu não tinha certeza sobre a forma que meu trabalho assumiria. Pensei em construir uma ilha com a ajuda de barcos e balsas, mas no fim deixaria o lugar determinar o que eu iria fazer. Visitamos Charles Stoddard, supostamente o único a ter uma balsa no lado norte do atalho. Stoddard, que trabalhava fazendo perfuração de poços, era um dos últimos colonos de Utah. Sua tentativa de explorar a ilha Carrington, em 1932, fracassou porque ele não conseguiu encontrar água fresca. “Tiinha o lago”, ele contou. Ainda assim, enquanto vivia na ilha com sua família, ele fez algumas constatações valiosas sobre o lago. Ele foi muito gentil e nos levou ao Little Valley no lado leste do trilho de Lucin para procurar sua balsa, que tinha afundado. Os portos artificiais abandonados de Little Valley me deram uma primeira visão da água vermelho-vinho, mas havia muitos sinais de “proibido entrar” para que aquele lugar fosse viável, e fomos aconselhados por dois rancheiros irritados a manter distância. Depois de resolver um problema com o tanque de combustível, voltamos para a casa de Charles Stoddard no norte de Syracuse, às margens de algumas salinas. Ele nos mostrou fotografias que tinha tirado de “icebergs” [3] e a cruz de Kit Carson [4] esculpida numa pedra na ilha Fremont. Depois decidimos ir em direção a Rozel Point.
Dirigindo no fim da tarde na direção oeste pela Highway 83, passamos por Corine e então por Promontory. Pouco depois do monumento de Golden Spike, que comemora a finalização da primeira ferrovia transcontinental, pegamos uma estrada de terra, descendo por um vale aberto. À medida que avançávamos, o vale abria-se em uma imensidão estranha, diferente de todas as outras paisagens que tínhamos visto. As estradas no mapa transformaram-se em uma malha de riscos, enquanto ao longe o Lago de Sal subsistia como um anel prateado e descontínuo. As colinas começavam a parecer sólidos derretendo, brilhando sob a luz âmbar. Seguimos por estradas que deslizavam até lugares sem saída. Encostas arenosas transformavam-se em massas ópticas viscosas. Lentamente, aproximamo-nos do lago; ele parecia um tecido violeta-claro, impassível, aprisionado em uma matriz rochosa sobre a qual o sol vertia sua luz acachapante. Uma extensão de salares margeava o lago, e, presos no meio de seus sedimentos, havia incontáveis pedaços de entulhos. Píeres velhos foram abandonados à própria sorte. A simples visão dos restos de lixo transportava-nos a uma pré-história moderna. Os produtos da indústria devoniana, os restos da tecnologia silúrica e todas as máquinas do Período Carbonífero Tardio estavam perdidos naqueles vastos depósitos de areia e lama.
Duas cabanas dilapidadas contemplavam do alto um conjunto de sondas de petróleo estragadas. Logo ao sul de Rozel Point, há uma série de vazamentos naturais de óleo preto, pesado, parecido com asfalto. Por 40 anos ou mais, tentaram extrair petróleo daquele poço natural de piche. Bombas cobertas de viscosidade negra enferrujavam ao ar salgado e corrosivo. Uma barraca construída sobre estacas poderia ter sido a habitação do “elo perdido”. Senti um enorme prazer em ver todas aquelas estruturas incoerentes. Este lugar evidenciava uma sucessão de sistemas humanos atolados em esperanças abandonadas.
A aproxidamente 1,5 km ao norte dos vazamentos de petróleo, escolhi meu lugar. Leitos irregulares de calcário em suave declive na direção leste e imensos depósitos de basalto quebrados sobre a península dão à região uma aparência de devastação. É um dos poucos lugares no lago onde a água chega até a beira da terra firme. Sob a água rasa e rosada, uma trama de rachaduras na lama compõe o quebra-cabeças de que é feito o salar. À medida que eu olhava para o lugar, ele reverberava em direção ao horizonte, insinuando um ciclone imóvel, enquanto uma luz tremeluzente fazia toda a paisagem parecer tremer. Um terremoto adormecido espalhava-se na quietude tremulante, em uma sensação de rotação estática. O lugar era um rotatório encerrando-se sobre si mesmo em um imenso redondo. Desse espaço giratório, emergiu a possibilidade da Spiral Jetty. Nenhuma ideia, conceito, sistema, estrutura ou abstração poderiam se sustentar na realidade daquela evidência. Minha dialética entre site e nonsite foi arrastada para dentro de um redemoinho de indeterminação, no qual sólido e líquido perdiam-se um no outro. Era como se a terra firme oscilasse com ondas e pulsações, e o lago permanecesse imóvel como uma pedra. A margem do lago transformou-se na borda do sol, uma curva fervente, uma explosão elevando-se em uma protuberância flamejante. Matéria colapsando no lago refletido na forma de uma espiral. Inútil buscar classificações ou categorias, não havia nenhuma.
Depois de garantir um arrendamento de 20 anos naquela zona sinuosa, [5] e de encontrar um empreiteiro em Ogden, comecei a construir o píer em abril de 1970. Bob Philips, o chefe de obras, enviou dois caminhões basculantes, um trator e uma pá escavadeira. A cauda da espiral começou como uma linha diagonal de estacas distribuídas pela zona serpenteante. De uma estaca central, uma linha foi esticada e percorreu todos os anéis da espiral. Do final da diagonal ao centro da espiral, três curvas enrolavam-se no sentido anti-horário. Com a pá escavadeira, retirávamos basalto e terra da praia, no começo do píer, e os depositávamos nos caminhões, os quais, em marcha a ré, despejavam o material no contorno das estacas. Os caminhões atolaram em um charco lamacento na beira da água, no começo da cauda da espiral, e perdemos uma tarde inteira cobrindo esse atoleiro. Uma vez resolvido o problema, havia ainda o risco de que as crostas de sal sobre a lama rompessem. A Spiral Jetty (Píer espiral) foi fincada de um tal modo a evitar que a lama mole atravessasse a crosta de sal. Entretanto, havia fissuras na lama que não conseguíamos evitar. Só podíamos torcer para que a tensão sustentasse o píer, e sustentou. Um câmera foi enviado pela Ace Gallery, de Los Angeles, para filmar o processo.
A escala da Spiral Jetty tende a oscilar dependendo do ponto de onde é observada. O tamanho determina um objeto, mas a arte é determinada pela escala. Uma rachadura na parede, se vista em termos de escala e não de tamanho, pode ser o Grand Canyon. Uma sala pode adquirir a imensidão do sistema solar. A escala depende da nossa capacidade de estar conscientes das realidades da percepção. Se nos recusarmos a libertar a escala do tamanho, ficamos com um objeto ou uma linguagem que parecem certos. Para mim, a escala opera por incerteza. Estar na escala da Spiral Jettty é estar fora dela. Ao nível do olho, a cauda conduz-nos a um estado indiferenciado da matéria. Olhando-se para baixo, de lado a lado, é possível distinguir sedimentos aleatórios de sal nas margens interiores e exteriores, enquanto a massa total ecoa os horizontes irregulares. Assim como a Spiral Jetty ecoa a estrutura molecular do cristal de sal. O crescimento no cristal avança de modo giratório em torno de um ponto central, tal como um parafuso. A Spiral Jetty poderia ser considerada uma camada nessa estrutura espiralar do cristal, magnificada um trilhão de vezes.
Essa descrição ecoa e reflete os esboços feitos por Brancusi de James Joyce como uma “orelha espiralada”, na medida em que sugere uma escala aural e visual. Em outras palavras, indica um sentido de escala que ressoa, ao mesmo tempo, nos olhos e nos ouvidos. Há aqui um reforço e um prolongamento de espirais que reverberam tempo e espaço para cima e para baixo. É assim que se deixa de considerar a arte em termos de um “objeto”. A ressonância flutuante rejeita o “criticismo objetivo”, porque isso poderia abafar a potência geradora tanto da escala visual quanto da auditiva. Não que se deva recorrer a “conceitos subjetivos”, mas sim que se assimile o que está ao redor dos olhos e dos ouvidos, não importa quão instável ou fugidio. Capturamos a espiral e a espiral captura-nos.
Depois de um certo ponto, passos mensuráveis (“Escala skal n. it; it, Sala; L scala normalmente scalae pl i, a. originalmente uma escada; um lance de degraus; portando um modo de aceder”)[6] descem de um estado lógico ao irracional. [7] A racionalidade da grade no mapa submerge naquilo que deveria definir. De repente, a pureza lógica vê-se num lamaçal e acolhe o evento inesperado. A realidade curva da percepção opera dentro e fora das abstrações “corretas” da mente. A massa que flui da pedra e da terra da Spiral Jetty poderia ser aprisionada por uma grade de segmentos, mas esses segmentos existiram apenas na mente ou no papel. Claro que também seria possível traduzir a espiral mental em uma sucessão tridimensional de distâncias mensuráveis que envolveriam áreas, volumes, massas, momentos, pressões, forças, tensões, e pesos; mas, na Spiral Jetty, o irracional toma frente e leva-nos a um mundo que não pode ser expresso por números nem pela racionalidade. As ambiguidades são admitidas mais que rejeitadas; as contradições ampliadas mais que mitigadas – o alogos abala o logos. A pureza é posta em risco. Eu me arrisquei por um caminho perigoso, meus passos ziguezagueavam como se fossem um raio espiralado. “Encontramos uma pegada estranha às margens do desconhecido. Inventamos teorias profundas, uma depois da outra, sobre sua origem. Finalmente, conseguimos construir a criatura que deixou aquelas pegadas. E, uau, é a nossa própria pegada.”[8] Para o meu filme (um filme é uma espiral feita de fotogramas), me fiz ser filmado por um helicóptero (do Grego helix, helikos significando espiral), de modo a dar conta da escala em termos de passos erráticos.
Quimicamente falando, a composição do nosso sangue é análoga à da sopa primordial. Se seguirmos os passos da espiral, retornamos a nossas origens, de volta a um protoplasma mole, um olho flutuante à deriva em um oceano antediluviano. Nas encostas de Rozel Point, fechei meus olhos, e o sol, atravessando em fogo minhas pálpebras, tingiu-os de carmim. Abri os olhos, e o Great Salt Lake sangrava riscas escarlates. Minha visão estava saturada pela cor da alga vermelha circulando no coração do lago, pulsando por correntes rubi – não, elas eram artérias e veias sugando os sedimentos escuros. Meus olhos viraram câmaras de combustão agitando glóbulos de sangue incinerados pela luz do sol. Tudo envolto por uma cromosfera incandescente; pensei no Eyes in the Heat, de Jackson Pollock (1946; Coleção Peggy Guggenheim). Rodopiando no redemoinho incandescente de energia solar, havia jorros de sangue. Meu filme terminaria com uma insolação. Minha percepção se turvava, o estômago embrulhava. Eu estava sobre uma falha geológica que roncava dentro de mim. Entre os raios luminosos e a exaustão térmica, a espiral girava rumo à vaporização. Eu sentia os bafos avermelhados, o sol vomitava suas radiações corpusculares. Raios ofuscantes atingiam meus olhos na frequência de um contador Geiger. Seguramente, a tempestade anunciada pelas nuvens carregadas seria de sangue. Outrora, voando sobre o lago, sua superfície pareceu conter todas as propriedades de um campo inquebrável de carne crua e fibrosa (a espuma) – sem dúvida, efeito de alguma estranha ventania. Frequentemente, outros sentidos abatem a visão, e, quando isso acontece, é preciso buscar abstrações desapaixonadas A espiral vertiginosa anseia pela segurança da geometria. Queremos nos recolher aos aposentos frios da razão. Mas não, lá estava Van Gogh com seu cavalete, em alguma lagoa ressecada pelo sol, pintando samambaias do período Carbonífero. Então, a miragem se desfaz na atmosfera em chamas.
Do centro da Spiral Jetty
Norte – Lama, cristais de sal, pedra, água
Norte pelo leste – Lama, cristais de sal, pedra, água
Nordeste pelo norte – Lama, cristais de sal, pedra, água
Nordeste pelo leste – Lama, cristais de sal, pedra, água
Leste pelo norte – Lama, cristais de sal, pedra, água
Leste – Lama, cristais de sal, pedra, água
Leste pelo sul – Lama, cristais de sal, pedra, água
Sudeste pelo leste – Lama, cristais de sal, pedra, água
Sudeste pelo sul – Lama, cristais de sal, pedra, água
Sul pelo leste – Lama, cristais de sal, pedra, água
Sul – Lama, cristais de sal, pedra, água
Sul pelo oeste – Lama, cristais de sal, pedra, água
Sudoeste pelo sul – Lama, cristais de sal, pedra, água
Sudoeste pelo oeste – Lama, cristais de sal, pedra, água
Oeste pelo sul – Lama, cristais de sal, pedra, água
Oeste – Lama, cristais de sal, pedra, água
Oeste pelo norte – Lama, cristais de sal, pedra, água
Noroeste pelo oeste – Lama, cristais de sal, pedra, água
Noroeste pelo norte – Lama, cristais de sal, pedra, água
Norte pelo oeste – Lama, cristais de sal, pedra, água
O helicóptero seguiu a evolução do reflexo do sol pela Spiral Jetty em direção ao centro. A água era como um vasto espelho térmico. Daquela posição, o reflexo incandescente lembrava a fonte de íons de um cíclotron, ampliada em uma espiral de matéria desintegrada. Toda a sensação de aceleração de energia extirpava-se em uma ondulante quietude de calor refletido. À medida que o helicóptero ganhava altitude, uma luz devastadora engolia as partículas rochosas da espiral. Toda a existência parecia incerta e paralisada. O som do motor do helicóptero tornou-se um rugido primevo, ecoando por vistas aéreas rarefeitas. Seria eu apenas uma sombra em uma bolha de plástico, flutuando em um espaço exterior ao corpo e à mente? Et in Utah ego. Eu estava deslizando para fora de mim novamente, dissolvendo-me em um início unicelular, tentando encontrar o núcleo no fim da espiral. Todo aquele sangue jorrado chama a atenção para soluções protoplasmáticas, amontoados de células consistindo largamente de água, proteínas, lipídios, carboidratos e sais inorgânicos. Cada gota espirrada na Spiral Jetty coagulava em um cristal. Ondas espalhavam milhares e milhares de cristais sobre o basalto.
O parágrafo acima refere-se a uma “escala de centros”, que poderia ser descrita da seguinte maneira:
(a) fonte de íons em um cíclotron;
(b) um núcleo;
(c) ponto de deslocamento;
(d) uma estaca de madeira na lama;
(e) eixo da hélice de um helicóptero;
(f) canal do ouvido de James Joyce;
(g) o Sol;
(h) um buraco em um rolo de filme.
Derivando dessa incerta escala de centros, haveria uma igualmente incerta “escala de bordas”:
(a) partículas;
(b) soluções protoplásmicas;
(c) tontura;
(d) ondulações;
(e) flashes de luz;
(f) seções;
(g) pegadas;
(h) água rosa.
A equação da minha linguagem permanece instável, um conjunto cambiante de coordenadas, um arranjo de variáveis respingando na irracionalidade. Minha equação é tão clara quanto a lama – uma espiral lamacenta.
De volta a Nova York, o deserto urbano, pedi ajuda a Bob Fiore e Barbara Jarvis para dar forma a meu filme. O filme começava como um conjunto de desconexões, um espinheiro de fragmentos estabilizados e retirados de coisas obscuras e fluidas, ingredientes capturados em uma sucessão de fotogramas, uma corrente de viscosidades estáticas e em movimento. E o montador, debruçado sobre um tal caos de “tomadas”, parece um paleontólogo selecionando lampejos de um mundo inacabado, uma terra ainda a ser formada, um intervalo de tempo incompleto, um limbo sem espaço em alguns rolos de espiral. Penduradas no varal da sala de montagem, tiras de filme, pedaços de Utah, restos superexpostos ou subexpostos, massas de material impenetrável. O sol, a espiral, o sal enterrado em metros de película. Tudo sobre filmes e o fazer cinematográfico é arcaico e bruto. Somos transportados por essa mídia arqueozoica para as eras geológicas mais antigas de que se tem notícia. A moviola se torna uma grande máquina do tempo, capaz de transformar caminhões em dinossauros. Fiore puxou metros de filme da moviola com a graça de um neandertal extraindo os intestinos de um mamute abatido. Do lado de fora da janela de seu loft na rua 13, poderíamos esperar encontrar faunas do Pleistoceno, elevações glaciais, fósseis vivos e outras maravilhas pré-históricas. Como dois homens da caverna, conspiramos como ir de Nova York a Spiral Jetty. Sucedeu-se uma geopolítica de retorno primordial. Como transpor a geografia da terra de Gondwana, do mar austral e de Atlantis tornou-se um problema. A consciência de um passado distante absorveu o tempo dispendido fazendo o filme. Eu precisava de um mapa que mostrasse o mundo pré-histórico como uma coextensão do meu mundo.
Encontrei um mapa oval desse mundo duplicado. Os continentes do período Jurássico fundiram-se aos continentes de hoje. Uma câmera acoplada a uma lente macro sustentada por um tripé pesado retraçaria o percurso das “imagens ausentes” nos espaços vazios do mapa. A câmera fez uma varredura panorâmica da direita para a esquerda. É possível ver coisas em um mapa que não estão lá. É preciso ter cuidado com os monstros hipotéticos espreitando entre suas latitudes – eles estão designados por círculos (répteis marinhos) e quadrados (répteis terrestres) negros. Na panorâmica, não se veem os carnívoros caminhando pelo que hoje conhecemos como a Indochina. Não há qualquer indicação de pterodátilos voando sobre Mumbai. E onde estão os corais e as esponjas cobrindo o sul da Alemanha? No vazio, não se veem estegossauros. No meio da panorâmica, vemos a Europa totalmente submersa em água, mas nenhum vestígio de um brontossauro. Qual linha ou cor esconde a lama de Globigerina? Não sei. Quando a panorâmica termina em Utah, no limite de Atlantis, há um corte. Nos vemos diante de uma grade ortogonal, conhecida como Localização NK 12-7, na extremidade de um mapa desenhado por um levantamento geológico da parte norte do Grande Lago de Sal, sem que haja qualquer referência ao período Jurássico.
A história da terra parece às vezes uma história gravada num livro cujas páginas foram todas rasgadas em um milhão de pedacinhos. Muitas das páginas, e alguns dos pedaços de cada página, estão faltando… [9]
Para a terceira parte do filme, eu queria que a Nancy filmasse a “história da Terra” em um minuto. Queria tratar a citação acima como um “fato”. Dirigimos até a pedreira Great Notch, em Nova Jersey, onde encontrei uma pedreira de uns 6 metros de altura. Subi ao topo e de lá joguei punhados de páginas rasgadas de livros e revistas, enquanto Nancy filmava isso de baixo. Algumas páginas rasgadas de um Atlas velho flutuaram sobre uma poça de lama seca e rachada.
Pelo que sabemos sobre anatomia fóssil, aquela fera era relativamente inofensiva. Suas únicas armas eram seus dentes e garras. Não sei o que aquelas tripas obscenas significam: elas não se apresentam em nenhum vestígio fóssil encontrado até hoje. Tampouco sei se sua cor natural é o vermelho, ou se essa coloração se deve à decomposição acelerada causada pelo escorrimento de sua gordura. É tudo o que se sabe de sua identidade. [10]
O filme recapitula a escala da Spiral Jetty. Elementos díspares ganham coerência. Lugares e coisas improváveis foram inseridos entre partes do filme que mostravam uma estrada de terra levando ao site em Utah. Uma estrada de ida e volta entre lugares que estão alhures. É possível dizer que a estrada não está em nenhum lugar em particular. A disjunção entre realidade e filme conduz-nos a uma sensação de ruptura cósmica. No entanto, todas as improbabilidades iriam se acomodar em meu universo cinemático. Desorientado entre as sobras de filme, não é possível infundir-lhes qualquer significado. Elas parecem visões gastas, ossificadas, degradadas e sem sentido; no entanto, potentes o suficiente para nos arremessar em uma vertigem lúcida. A estrada nos conduz de uma tomada telescópica do sol a uma pedreira em Great Notch, em Nova Jersey, a um mapa mostrando as “linhas costeiras deformadas do antigo lago de Boneville”, a O mundo perdido [11] e à sala dos dinossauros no Museu Americano de História Natural.
A sala foi filmada com filtro vermelho. A câmera enquadra um Ornithomimus altus coberto por gesso em uma vitrine de vidro. Uma panorâmica pela sala registrou um claro-escuro escarlate. Há momentos em que a imensidão do exterior se encolhe fenomenologicamente à escala de uma prisão, e momentos em que os interiores se expandem à escala do universo. É assim também na sequência feita no interior da sala dos dinossauros tardios. Uma imensidão interior espalhou-se pela sala toda, transformando as lâmpadas em sóis moribundos. O filtro vermelho dissolveu chão, teto e paredes em halos de um vermelho infinito. Uma desolação sem fim emergiu das emulsões cinemáticas; nuvens vermelhas, chamuscadas pela luz intangível atrás da janela. A visibilidade afundou em dispersões rubi. Os ossos, as vitrines de vidro, as armaduras criaram uma atmosfera sanguínea.
Cegamente, a câmera perseguia a luz soturna. Reflexos vítreos brilhavam e se dissolviam como sangue em pó. Sob uma janela incandescente, dentro de uma vitrine de vidro e sobre um espelho, via-se o crânio de um tiranossauro. Nessa escala ilimitada, a mente pode imaginar coisas que não estão ali. O gotejar de sangue de um dinossauro bico-de-pato doente, por exemplo. Carne de monstro apodrecida coberta por milhares de aranhas vermelhas. Um delírio depois do outro. O câmera fantasma desliza sobre as áreas cercadas pelas vitrines. Esses fragmentos de uma geologia atemporal riem sem alegria das esperanças temporais da ecologia. Na trilha sonora, o eco de um metrônomo desaparece em um deserto de ossos e vidros. Caminhando ao redor de uma vitrine contendo uma “múmia de dinossauro”, ouvem-se as palavras do “Inominável”. [12] A câmera volta-se para um espécime achatado pelo peso de sedimentos, e então há um corte para a estrada em Utah. ///
Traduzido do inglês por Patrícia Mourão de Andrade
Sobre Robert Smithson e Spiral Jetty
por Patrícia Mourão de Andrade
Em 2020, Spiral Jetty (Píer Espiral), a icônica obra da land art do artista estadunidense Robert Smithson, completou 50 anos. Construído no Great Salt Lake, em uma zona erma do estado de Utah, Estados Unidos, o monumental píer em forma de espiral é conhecido sobretudo pelas fotografias feitas por Gianfranco Gorgoni durante sua construção, pelo filme ensaio e pelo texto aqui traduzido, ambos de Smithson e com o mesmo título da escultura. Foram poucas as pessoas que efetivamente puderam visitar a Spiral Jetty. Não bastasse a dificuldade de acesso, poucos anos após sua compleição o aumento no nível da água no Salt Lake deixou a obra submersa por quase 30 anos. Foi apenas nos anos 2000 que, sem que ninguém pudesse prever, salvo talvez alguns climatologistas, ela reapareceu; agora com uma coloração esbranquiçada, consequência de uma camada de sal depositada e cristalizada sobre as pedras de basalto da espiral original.
Falecido em 1972, aos 35 anos, em um acidente de avião quando sobrevoava o local de um futuro trabalho, Amarillo Ramp – finalizado, um mês após sua morte, por sua companheira, Nancy Holt, e o amigo Richard Serra –, Smithson segue sendo uma inspiração para diferentes gerações de artistas. Nos anos 1970, sua expansão da prática artística para fora do museu foi determinante para a redefinição do campo e dos parâmetros da arte contemporânea – do pós-minimalismo à land art, passando pela arte processual, as práticas pós-estúdio e todos os movimentos expansivos ou antiformalistas. Mais recentemente, face ao crescente interesse do campo arte pela questão climática e a atenção que vem destinando aos efeitos do homem sobre o planeta, o legado do artista ganhou novos enquadramentos e relevância. Seu interesse por geologia, história natural, entropia, áreas degradas e abandonadas, evidente tanto em suas obras site specific quanto em seus textos, pode ser visto como um marco inaugural do antropoceno na arte. Como escreveu Gary Shapiro, Smithson é “a grande falha geológica a deslocar o solo sob nossos pés; uma falha que emerge esvaziando as visões modernistas de progresso social e artístico, a partir do reconhecimento que a história da arte tal como conhecemos não é mais do que um instante irrelevante na nossa lida com a terra”.
Smithson foi um escritor prolífico e deixou uma vasta produção textual, tão ou mais importante (certamente mais acessível) que sua obra tridimensional na sua recepção por novas gerações de artistas. Eruditos, labirínticos e de humor arguto, seus textos fundem e confundem teoria da arte, história da ciência, filosofia da história, e gêneros literários bastardos ou pouco nobres, dos manuais científicos à ficção científica.
O texto Spiral Jetty não é um apêndice ao trabalho site specific. Assim como o filme, ele é uma de suas formas de existência; tem realidade e materialidade própria. Se para a espiral no Salt Lake, Smithson manipulou terra e pedras, aqui ele manipulou gêneros literários: caderno de campo, relato de viagem, teoria da arte, ficção científica, manual de geologia. Entre a descrição exaustiva e burocrática, momentos de sublime low fi, reflexões sobre problemas da arte ou meta incursões à pré-história, o artista dá forma a uma espiral textual que, depois de tantos anos, passou a enquadrar, à distância, o site specific no lago de sal. Se conseguimos nos relacionar com este texto sem jamais termos posto os pés em Utah, por outro lado, parece hoje impossível experimentar a espiral de pedra com os olhos virgens, sem os filtros e percursos estabelecidos por este texto-viagem.
Patrícia Mourão de Andrade é doutora em cinema pela Universidade de São Paulo, com bolsa sanduíche na Columbia University. Programou mostras dedicadas ao cinema estrutural e organizou, entre outros, os livros Cinema Estrutural (coorganização de Theo Duarte, Caixa Cultural, 2015); Jonas Mekas (Cinusp, 2013), David Perlov: epifanias do cotidiano (coorganização de Ilana Feldman, CCJ, 2011) e Harun Farocki: por uma politização do olhar (Cinemateca Brasileira, 2010).
Notas:
[1] Dialética do Site e Nonsite [Lugar e não lugar].Site Nonsite
1 – Limites abertos Limites fechados
2 – Uma série de pontos Uma concentração de matéria
3 – Coordenadas externas Coordenadas internas
4 – Subtração Adição
5 – Certeza indeterminada Incerteza determinada
6 – Informação espalhada Informação contida
7 – Reflexo Espelho
8 – Margem Centro
9 – Algum local (físico) Nenhum local (abstrato)
10 – Muitos Um
Faixa de convergência
A faixa de convergência entre o Site e o Nonsite consiste em uma via de causalidades, um caminho de mão dupla composto por signos, fotografias e mapas, os quais pertencem a um só tempo aos dois lados da dialética. Ambos os lados estão presentes e ausentes ao mesmo tempo. O terreno ou o solo do Site é colocado na arte (Nonsite), mais do que a arte sobre o terreno. O Nonsite é um continente (container) dentro de outro continente – a sala. O terreno ou a área exterior é também um continente. Objetos bi- e tridimensionais trocam de lugar entre si na faixa de convergência. A grande escala se torna pequena. A pequena escala se torna grande. Um ponto no mapa expande-se até atingir o tamanho de uma extensão de terra. Uma massa de terra contrai-se até se tornar um ponto. O Site é um reflexo do Nonsite (espelho), ou é o contrário? As regras desta rede de signos são descobertas à medida que seguimos por trilhas (mentais ou físicas) incertas.
“Nenhum peixe ou réptil vive nele [Mono Lake], no entanto ele está enxameado por milhares de larvas de futuras moscas. Elas ficam na superfície da água, cobrindo tudo na margem da praia. O número e a quantidade dessas larvas e moscas é absolutamente inacreditável. Flutuam aos montes pela praia.” W. H. Brewer, The Whitney Survey, 1863.
[2] Londres, 1960, p. 129. [3] “Apesar da alta concentração salina da água, é comum encontrar formações de gelo no Lago. Claro que as águas salgadas do Lago não congelam; têm sal demais para isso. O que na verdade acontece é que, quando o tempo está ameno, a água fresca de outras afluências chega ao lago e “flutua” sobre a água salgada, sem que elas se misturem. Perto das bocas dos rios e córregos, essa condição de “flutuação” permanece durante o clima ameno. No inverno, a água fresca congela antes de se misturar à água salgada. Logo, uma folha de gelo de vários centímetros estende-se do rio Weber até a ilha Fremont, permitindo que coiotes atravessem para a ilha e ataquem as ovelhas que pastam ali. Algumas vezes, esse gelo quebra e flutua livremente pelo lago na forma de icebergs”. (David E. Miller, Great Salt Lake Past and Present, Pamphlet of the Utah History. Salt Lake, 1949). [4] [N. do T.] Christopher Houston Carson (Kit Carson), lendário explorador do Oeste Americano. Suas expedições, das quais se orgulhava pelo número de índios mortos, foram retratadas em vários romances populares. A cruz de Kit Carson é um sinal de não mais de 15 cm, marcado sobre uma pedra pelo próprio Carson durante uma expedição na ilha de Fremont, no Great Salt Lake. [5] Township 8 North of Range 7 West of the Salt Lake Base and Meridian: Unsurveyed land on the bed of the Great Salt Lake. Se houvesse um levantamento desse terreno, seria assim descrito:“Começando em um ponto mil metros ao sul e 2500 metros a oeste do canto nordeste da seção 8, município 8 norte, faixa 7 oeste; dali 45º sul, 2000 metros oeste. Dali, 600 norte, 1500 metros oeste. Dali, 45º norte, 1500 metros leste. Dali, em direção ao sudeste, ao longo de uma linha serpenteante de 300 metros até o ponto inicial. Contendo mais ou menos 10 acres. (Acordo especial de arrendamento nº 222; testemunhas: Sr. Mark Crystal.) [6] Webster’s New World Dictionary of the American. Language (College Edition). World Publishing Co., 1959, U.S.A. A. S. Eddington, apud Tobias Dantzig, Number, the Language of Science. Doubleday Anchor Books, 1954. p. 232. [N do. T.] No Houaiss: “Escala – lat.tar. scala.ae no sentido de ‘escada’, no lat.cl., mais us. no pl. scalae,ārum no sentido de ‘degraus, escadaria, escada’; portanto, um modo de ascensão”. [7] [N. do T.] “Surd State”, o autor explora o duplo sentido do termo “surd” em inglês: surdo e número irracional. Mesmo o usando no sentido de irracional, o outro, ligado à faculdade da escuta, evoca a escala aural bem como à analogia entre a espiral e a “orelha de Joyce”. [8] A. S. Eddington, apud Tobias Dantzig. Number, the Language of Science. Doubleday Anchor Books, 1954. p. 232 [9] Thomas H. Clark, Colin W. Stern, Geological Evolution of North America. Nova York: Ronald Press Co, s.d, p. 5 [10] John Taine, “The Greatest Adventure”, Three Science Fiction Novels. Nova York: Dover Publications, Inc, 1963. p. 239. [11] [N. do T.] Arthur Conan Doyle, O mundo perdido, 1912. Tradução para o português de Samuel Machado de Machado, Editora Todavia, 2018. [12] [N. do T.] Samuel Beckett, O inominável, 1949. Tradução para o português de Ana Helena Souza, Editora Globo, 2009.
Tags: antropoceno, arte contemporânea, Land Art