Ensaios

A música brasileira nos retratos de Januário Garcia

Januário Garcia & Raoni Moreno Publicado em: 8 de dezembro de 2023

Raul Seixas em ensaio fotográfico para produção da capa do disco Há 10 mil anos atrás (1976). Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Januário Garcia.

A música sempre esteve presente em minha vida, desde a infância. E em 2015 adentrei o mundo do colecionismo de discos de vinil. O que de início era um hobby, acabou se tornando objeto de pesquisa para uma tese de doutorado. Começo esse texto escrevendo sobre minha relação com os discos para contar uma história inusitada: em 2016, na feira de antiguidades da Praça XV, na cidade do Rio de Janeiro, eu garimpava discos e conversava com os meus amigos do mundo do vinil, como fazia quase todos os sábados. Naquela manhã estava em uma banca de um amigo, quando se aproximou um senhor negro, alto, com uma boina de crochê e que simpaticamente apontava para o Há 10 mil anos atrás (1976), clássico disco do Raul Seixas, dizendo “eu que fiz a foto dessa capa”.  Demorei a entender, achei que fosse uma brincadeira de um senhor bem-humorado. Em seguida, ele pega o disco, o vira, e aponta para o seu nome nos créditos na parte que diz “Fotografia: Januário Garcia” e se apresenta: “este sou eu”.

E então começa a contar histórias sobre os bastidores do dia em que fez a fotografia, em 1976. Uma delas:  enquanto pensavam na montagem da fotografia que iria compor a capa do disco, Raul pegou uma peruca loira que tinha no estúdio, colocou em sua cabeça, fez algumas poses e dessa “performance” saiu a foto que seria a capa do disco. Outro fato ocorrido neste ensaio e depois contado por Januário Garcia, é que em dado momento ele perguntou ao Raul se ele tinha medo de morrer. O Raul, pensativo, com um copo de uísque na mão, respondeu que não, que o que ele tinha medo era de deixar de existir. Essa resposta de Raul ecoou em Januário por anos e anos, e ele acabou assumindo como um medo dele também, o de deixar de existir. O que não ocorreu com nenhum dos dois.

 Em 2019 alguns anos após esse encontro promovido pelo acaso, iniciei o curso de doutorado no programa de pós-graduação em Artes da UERJ com uma pesquisa sobre a arte gráfica em capas de discos. Só então pude compreender o privilégio que tive de conhecer Januário Garcia, um dos grandes fotógrafos do Brasil e com uma ligação muito especial com o mundo da música e das capas de discos. Januário faleceu em 2021, vítima da Covid-19, e deixou um importante legado na história da fotografia brasileira [leia no site da ZUM texto sobre Januário Garcia escrito pela jornalista e pesquisadora Vilma Neres].

Sobre esse disco específico de Raul Seixas, a capa deu um certo trabalho para ser produzida. Raul vinha de um disco de muito sucesso, o Gita, com ótima vendagem e importantes canções que marcaram sua carreira. A sua gravadora, a Polygram, o pressionava para que continuasse no embalo e que lançasse mais um álbum com bastante hits e vendesse tanto quanto o anterior.  Para o artista isso representou uma grande pressão. Raul fez algumas exigências para a realização da capa, como levar de São Paulo para o Rio de Janeiro um maquiador de sua escolha para caracterizar a imagem do artista para a capa do disco.

 

A parceria de Januário Garcia com Raul Seixas ocorreu mais uma vez, agora no álbum “Mata Virgem” lançado em 1978, ano em que Raul Seixas foi cuidar da sua saúde, retirando-se da cidade grande e indo para o interior da Bahia. Lá ele conhece a sua terceira companheira, Tânia Mena Barreto, e juntos fazem a canção “Mata Virgem”, que se tornaria título do álbum. Este é um dos discos “menos rock’n roll” da carreira de Raul Seixas, com letras esotéricas e, como de costume, algumas parcerias com Paulo Coelho. Para a capa, Ruth Freihof, sua designer, partiu das fotos realizadas por Januário Garcia para criar uma colagem que mistura galhos de árvores cortados, as roupas e o óculos que Raul Seixas está usando na foto em que está entre pilastras de concreto, com a mão esquerda apertando o seu coração, imagem feita em uma escultura no jardim do MAM do Rio de Janeiro.

Leci Brandão em ensaio fotográfico para produção da capa do disco Leci Brandão (1985). Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Januário Garcia.

A amizade com Leci.

Apesar da sua intensa colaboração com Raul, a grande parceria de Januário Garcia no meio musical foi com a sambista Leci Brandão, artista negra, com quem desenvolveu uma amizade para além dos estúdios de gravação e que se inicia quando Leci ainda trabalhava no setor administrativo de uma universidade, onde a esposa de Januário trabalhava como professora. Leci, ao saber do falecimento do fotógrafo por Covid em junho de 2021, postou em sua rede social um emocionado texto sobre a amizade dos dois:

“Com muita tristeza, recebemos a notícia da morte desse grande amigo, Januário Garcia, por Covid. Januário foi muito importante na minha vida, além de fazer quatro capas de LPs, também propunha os títulos dos discos e dava opiniões sobre o repertório. Foi ele quem me apresentou a musicalidade e as cores do Olodum, além de introduzir na minha vida o pensamento de Lélia Gonzales. Só tenho de agradecer a Deus por ter colocado ele na minha vida. Sou muito grata por tudo! Januário Garcia, presente!”.

Provavelmente por conta da comoção pela perda do seu amigo, a cantora cometeu um engano ao dizer que Januário fez quatro capas de seus discos: na verdade ele fez sete delas. A colaboração entre Leci e Januário começou no terceiro álbum da sambista, no disco Coisas do meu pessoal (1977). Uma curiosidade desta capa é que cada uma das fotografias que compõe a capa foi feita pelo Januário, registros de lugares e espaços relacionados à cantora e o seu cotidiano. Os cinco álbuns lançados por Leci Brandão entre 1977 e 1987 tiveram fotos de Januário Garcia nas capas. Nos álbuns Dignidade (1987) e Atitude (1993), Januário fez todo o design, além da foto. No álbum Dignidade ele também deu nome ao disco, conforme relatado por Leci em um vídeo postado em uma rede social, onde ela diz que mesmo não contendo nenhuma canção chamada dignidade, Januário sugeriu este nome pois acreditava que ele representava o trabalho como um todo. Ele ainda fez a fotografia de Um ombro amigo lançado por Leci também no  ano de 1993.

Ainda no mundo do samba, além das capas de Leci Brandão, Januário fez fotos para as capas dos notáveis Wilson Moreira e Nei Lopes, no importante álbum Arte negra (1980). Já para a capa do disco homônimo do grande sambista Roberto Ribeiro, lançado em 1983, Januário utiliza uma cadeira de vime, conhecida como cadeira pavão (do termo em inglês peacock chair). Este tipo de cadeira aparece em diversas capas de álbuns a partir da década de 1970, principalmente por artistas negros, como o norte-americano Al Green (no seu disco I’m Still In Love With You), entre outros. Importante ressaltar que o próprio Januário pinta a cadeira e a mesa de vime na cor branca, dando um indício que ele possa ter se inspirado na capa do álbum do Al Green. Este tipo de cadeira ganha notável significância para a representatividade negra a partir de 1967, quando um dos líderes dos Panteras Negras posa sentado em uma delas. No Brasil, Elza Soares e Elis Regina também aparecem fotografadas em cadeiras pavão em meados da década de 1970.

Caetano Veloso em ensaio fotográfico para produção da capa do disco Muito – dentro da estrela azulada (1978). Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Januário Garcia.

Grandes álbuns, grandes fotografias

Em meados dos anos 1970, Januário já era bem conhecido no meio artístico como fotógrafo de capas de discos, valorizando o seu envolvimento com o trabalho em construção e sua sensibilidade para fazer fotos que dialoguem bem com a obra do artista. Um bom exemplo disso é a foto de Caetano Veloso deitado no colo de sua mãe, Dona Canô, na capa do álbum Muito – dentro da estrela azulada (1978). Este álbum contém alguns dos grandes sucessos da carreira de Caetano, como “Terra” e “Sampa”. Januário, como de costume, acompanha as gravações, a construção do álbum e suas fotos parecem ser de alguém que convivia intimamente com Caetano. A imagem, sensível e significativa, evidencia a capacidade de Januário em condensar toda a proposta musical de um álbum em uma fotografia. Em um segundo trabalho com Caetano Veloso, Januário recebeu o convite para fazer a foto de uma pena de pavão para compor a contracapa do álbum Outras palavras (1980), pois Caetano não havia gostado das fotos que haviam sido feitas. A questão era que Caetano queria que a foto realçasse as cores e desse o devido destaque para essa imagem de “olho” que há na pena do pavão. A experiência de Januário enquanto fotógrafo de publicidade foi fundamental para conseguir evidenciar toda a textura e as cores presentes na pena de pavão.

Folha de contato do ensaio fotográfico para produção da capa do disco Alucinação (1976), de Belchior. Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Januário Garcia.
Folha de contato do ensaio fotográfico para produção da capa do disco Todos os sentidos (1978), de Belchior. Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Januário Garcia.

Outro importante álbum da música brasileira cuja capa é uma fotografia icônica de Januário é o lendário Alucinação, de Belchior (1976). Este é o grande álbum da carreira de Belchior, o disco que o lança para o grande público. Trata-se de uma obra recheada de sucessos, trabalho que Januário acompanhou de perto, estando presente no estúdio durante a gravação. Ele conversou bastante com Belchior e todos os envolvidos, sendo capaz de imergir na obra e captar através das lentes a melhor forma de sintetizar em uma imagem o “feeling” do disco. Além da foto, Januário também contribuiu com um detalhe na contracapa: um escorpião, signo astral de Belchior e também do próprio Januário Garcia. A capa conta com arte de Nilo de Paula e direção de arte de Aldo Luiz, renomado capista e diretor de arte da Polygram naquela época.

Além de Alucinação, Januário também fez a foto do disco Todos os sentidos, lançado em 1978 por Belchior. Mais uma vez Januário imerge na feitura do álbum, acompanhando a gravação e captando a proposta estética que o disco traz, bem diferente de Alucinação. Na foto de Todos os sentidos, Belchior olha diretamente para a câmera, como se olhasse para o ouvinte, com um ar introspectivo e indagador. Em Alucinação, Belchior foi fotografado em um ângulo incomum, de baixo para cima, e com os olhos fechados, imagem que sugere um estado de meditação, quiçá, alucinatória.

Para além destes grandes artistas e álbuns citados acima, Januário realizou fotografias memoráveis que estão em capas de álbuns de nomes da primeira prateleira da música popular brasileira, como Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo, Fagner e Fafá de Belém, entre outros.

Januário Garcia deixou saudades e um legado expressivo nas relações entre as artes visuais e a música por meio de suas dezenas de fotos em importantes capas de discos e ensaios fotográficos. Concluo esse texto no dia 15 de novembro de 2023, um dia antes do seu aniversário (16/11/2023) em que completaria 80 anos. Sem a pretensão de ter realizado uma homenagem à altura do grande fotógrafo, modestamente tomo esse breve texto como mais um reconhecimento ao grande artista, ativista, pensador e intelectual. Salve Januário! ///

Raoni Moreno é artista, músico, pesquisador musical e professor de design no Colégio de Aplicação da UERJ. Está concluindo o doutorado no Programa de pós-graduação em Artes da UERJ.

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