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Arquivo Zumvi guarda a memória da cultura e dos movimentos negros baianos desde os anos 1970

Publicado em: 29 de novembro de 2019

Arrumadores da Feira de São Joaquim, Salvador, 1992. Foto: Lázaro Roberto.

O fotógrafo Lázaro Roberto e seu sobrinho, o historiador José Carlos Ferreira, guardam um acervo de cerca de 30 mil fotogramas numa casa do bairro da Fazenda Grande do Retiro, em Salvador. Prestes a completar 30 anos, o Arquivo Fotográfico Zumvi surgiu da vontade de dar maior visibilidade a fotógrafos ligados a movimentos de valorização da cultura negra. “Eu percebi que só tinha pessoas brancas fotografando. Não via negro fotografando. Foi daí que surgiu o Zumvi, pra gente discutir nossas experiências como coletivo de fotógrafos e com o objetivo de fazer imagens da cultura afro-brasileira”, comenta o fotógrafo.

ZUM conversou com Lázaro Roberto sobre a carreira, a relação da fotografia com o movimento negro e os desafios para manter um arquivo como o Zumvi sem apoio institucional. 

Caminhada do bloco Afro Olodum no Bairro da Ribeira, Salvador, 1990. Foto: Lázaro Roberto.

 

Como surgiram na sua vida a fotografia e o ativismo no movimento negro? Algum veio antes ou aconteceram juntos?

Lázaro Roberto: O que surgiu primeiro na minha vida foi o teatro. Fui um jovem de periferia. E, nos anos 1960, chegou aqui onde eu moro, no bairro da Fazenda Grande, um padre italiano chamado Paulo Maria Tonucci. No início dos anos 1970 ele já tinha formado um grupo de jovens na igreja, mas queria fundar um grupo de jovens do bairro que não tivesse um comprometimento com a igreja. Eu entrei nesse grupo, que se chamava Grupo Experimental de Artes da Fazenda Grande. Foi ali que eu vi pela primeira vez uma pequena exposição de fotografia com o tema cangaço, de um fotógrafo [e cineasta] chamado Antônio Olavo. E a partir dali a fotografia não saiu mais da minha cabeça.

Na verdade, o grupo era de teatro e nós tínhamos um cara da escola de teatro chamado Godi [Antônio Jorge Victor dos Santos Godi, professor, ator e antropólogo] que passava a experiência de teatro pra gente. E foi o Godi que me apresentou ao movimento negro. Ele trazia muita gente de outras áreas da arte para fazer roda de conversa, para meter a mão na massa, dar experiência pra gente. Nesse grupo de teatro havia muitas pessoas politizadas, porque esse padre era um progressista, naquela época, de ditadura militar, até meio comunista. Nós não éramos jovens alienados, éramos jovens que discutiam a conjuntura política, a situação do país.

E no final dos anos 1970, quando o movimento negro estoura em São Paulo, aqui a gente já estava discutindo essas questões também. Foi aí que eu conheci muita gente. Numa época de ditadura militar, a gente se reunia pra mostrar que estávamos fazendo cultura e também discutindo a questão do racismo. Eu sempre digo que o discurso teórico do movimento negro eu vim constatar na prática com a fotografia quando eu, nos anos 1980, consigo uma máquina fotográfica. Fui trabalhar com o padre Paulo numa gráfica e pedi a ele pra comprar uma máquina pra mim na Itália. Ele me trouxe uma Minolta. Foi aí que comecei a ter as minhas primeiras experiências com a fotografia. Aquela era uma época muito difícil, a gente não tinha muita informação. Comecei lendo alguns livros, pedindo um toque aqui e ali. E depois de uns três anos já estava dominando a técnica.

Eu percebi logo de cara que a fotografia é uma arte muito cara. E quem sempre a gente via com máquina fotográfica eram pessoas brancas. Tanto é que quando eu saia dando os primeiros passos na fotografia, registrando as festas populares aqui em Salvador, as pessoas do meu bairro diziam “você virou turista?”. Eu não dizia nada. Mas você percebe que era um instrumento que estava na mão de pessoas brancas. E eu, ousadamente, fui fotografando. Não tinha a pretensão de ser um fotógrafo documentarista, nem sabia o que era isso. Eu dizia assim: fotografar hoje para o amanhã. E comecei a fotografar em preto e branco, sempre gostei da fotografia em preto e branco. Mesmo sem muita condição eu fotografava e pagava pra revelar, fazia uma cópia de contato e ficava por ali. No final dos anos 1980 fiz um curso de fotografia no Senac e foi aí que me profissionalizei. Aprendi a revelar, a copiar.

Na minha vida veio primeiro o teatro, com o teatro eu conheci a fotografia e logo depois o movimento negro. Sempre digo que a minha fotografia me ajudou a ter uma consciência racial. A Bahia é um estado eminentemente negro. E aquelas questões do movimento negro que a gente discutia, quando você parte pra rua você vê quem é que está jogado na rua, você vê a polícia preta que bate nos pretos. A gente vai vendo isso no dia a dia. Onde é que moram as pessoas negras, onde é que moram as pessoas brancas.

Bloco Afro Ilè Aiyè, Salvador, 1992. Foto: Lázaro Roberto.

 

Ser negro foi um obstáculo para se tornar fotógrafo?

LR: Acho que ser negro sempre foi um grande obstáculo na minha carreira fotográfica. Eu poderia ter desistido na minha trajetória porque as dificuldades foram muito grandes. Aqui em Salvador a gente percebe que tem famílias que dominam a fotografia. Eu tive pouquíssimas exposições, faz muitos anos que não exponho. Mas dentro de tanta dificuldade, de tanto não, de tantas coisas que apareceram pra eu desistir, eu não desisti. Posso dizer que a minha fotografia é uma fotografia de resistência negra.

Comunidade Novos Alagados, subúrbio ferroviário, Salvador, 1992. Foto: Lázaro Roberto.

 

Como surgiu o Zumvi Arquivo Fotográfico?

LR: O Zumvi surgiu da minha experiência como fotógrafo. Em 1989, depois de ter feito o curso no Senac, me juntei a alguns amigos e fundamos uma espécie de coletivo de fotógrafos pra gente discutir sobre uma fotografia negra. Como já disse, eu percebi que só tinha pessoas brancas fotografando. Não via negro fotografando. Foi daí que surgiu o Zumvi, pra gente discutir nossas experiências como coletivo de fotógrafos e com o objetivo de fazer imagens da cultura afro-brasileira. Eu estava trabalhando com o padre Paulo em um espaço na Ribeira, um casarão ligado à igreja, e consegui sala, mesa, cadeira. Ali foi o começo de tudo. O banheiro eu transformei em laboratório e a gente foi revelando os filmes. Um amigo nosso doou um ampliador e a gente foi fazendo ampliações. Fizemos um pequeno folder pra distribuir para os movimentos sociais. Muita gente nos visitava e nos chamava para fazer trabalhos em troca de nos dar uma lata de filme, uma caixa de papel. Foi assim que o Zumvi surgiu no começo de 1990.

O nome Zumvi, que muita gente pergunta, veio de uma tentativa de criar uma palavra fotográfica: “zum”, da lente zoom, e o “vi” do olho. Ficou Zumvi. Depois que soube que em espanhol Zumbi dos Palmares se escreve assim, porque o “vi” tem som de “bi”. Vim saber isso bem depois. Muita gente troca, bota zumbi ao invés de “zumvi”. Foi assim que surgiu essa entidade, com o objetivo de fazer imagens da cultura afro-brasileira, de congregar fotógrafos. E o material que tem no Zumvi não é só de Lázaro, é das pessoas que passaram pelo Zumvi. Tem o trabalho de cinco ou seis fotógrafos, com suas trajetórias. Como o Jônatas Conceição, que não era um fotógrafo profissional, mas era responsável pelo jornal do MNU [Movimento Negro Unificado] e que faleceu em 2006. Ele deixou cerca de 1.600 fotogramas, fortalecendo muito o registro fotográfico de uma coisa que já vinha acontecendo.

Marcha do Empoderamento Crespo, Salvador, 2018. Foto: Lázaro Roberto.

 

Como é lidar com um arquivo tão extenso e importante sem apoio institucional?

LR: Pois é, esse é o grande problema. Há muito tempo que estou nessa luta de preservar esse acervo. Fotografar foi e é difícil, mas preservar é muito mais. Pelo menos é isso que eu observo. Há quase 10 anos eu venho numa luta, buscando apoio. E a gente tem tido a maior dificuldade. Embora hoje, aqui em Salvador, existam pessoas da minha época, inclusive do movimento negro, que ocupam cargos de poder. Mas acho que isso é uma coisa nacional, das pessoas não cuidarem das suas memórias. Parece que memória é uma coisa que fica lá atrás, fica no campo do esquecimento. Há dez anos eu estava sozinho nessa luta, mas hoje estou com meu sobrinho José Carlos, que é historiador. Temos conseguido algumas coisas, alguns apoios nestes últimos anos. Mas a gente precisa de tudo: de espaço, de fazer catalogação, higienização… tudo. Pra mim é a pior parte, porque se não tomar cuidado você acaba perdendo esse acervo. Essa é uma das minhas grandes preocupações. Uma decepção com o Estado, com pessoas que sabem onde está esse acervo, que poderiam ajudar e que não ajudam.

Trabalhador da Feira de São Joaquim, Salvador, 1993. Foto: Lázaro Roberto.

 

Do acervo atual do Zumvi, quais séries ou imagens você destacaria?

LR: Como eu disse, sou fotógrafo documentarista. Nessa trajetória fiz muita documentação, que é o que eu gosto de fazer. O acervo é cheio de documentação que precisa de pesquisadores. Este também é um grande problema, a gente não encontra pesquisadores pra fazer essas pesquisas. Eu não sou etnólogo, sou só fotógrafo. Eu faço algumas pesquisas, que às vezes terminam e outras ficam quase terminadas. E aí a gente corre atrás de pesquisadores que queiram continuar. Mas o pesquisador só se interessa se a gente ganhar um edital ou se tiver grana pra pagar pra ele. Pra arregaçar as mangas, ir lá pro campo fazer, eles não têm interesse. Isso é um grande problema.

Mas eu destacaria algumas dessas documentações. Como a estética negra masculina e feminina, que eu faço desde que comecei a fotografar. Tenho desde o ferro de espichar das minhas irmãs até a influência dos blocos afros na cabeça dessas mulheres de Salvador. E também desses meninos escrevendo na cabeça o que quiserem. Tem também o acervo dos blocos afros e afoxés, um material muito bom. Tem uma documentação sobre o quilombo Ilha de Maré. Um trabalho sobre cestaria que deságua na Feira de São Joaquim. Tem a introdução da música reggae aqui em Salvador no começo dos anos 1980, com a morte de Bob Marley e os bares reggae no Pelourinho e nas periferias. Temos também o trabalho de quatro fotógrafos sobre a vinda de Nelson Mandela a Salvador em 1991. No ano passado ele fez 100 anos e a gente não conseguiu montar uma exposição sobre Mandela aqui em Salvador.

São várias temáticas pra se fazer trabalhos, para exposições. Mas a gente sempre esbarra na dificuldade de não conseguir apoio para fazer essas coisas. O que a gente espera é que isso mude, que a gente consiga fazer exposições, botar esse trabalho dentro das escolas. Este é um dos objetivos do Zumvi. ///

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Mais informações sobre o Arquivo Fotógrafico Zumvi

 

Lázaro Roberto é fotógrafo e arte-educador. Em 1990 foi cofundador  do Zumvi Arquivo Fotográfico. Ganhou em 1995 o prêmio Clementina de Jesus dedicado a pessoas que se destacam na afirmação social do povo negro. Participou da exposição Memórias de Resistências Negras (2018), do Festival Valongo (Santos, 2018) e do Festival Transatlântico de Fotografia (Salvador, 2019).

 

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