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Figurações do tempo: Irving Penn e a fotografia de moda

Brunno Almeida Maia & Irving Penn Publicado em: 19 de fevereiro de 2018

Garota com tabaco na ponta da língua (Mary Jane Russell), fotografia de Irving Penn, Nova York, 1951 © Condé Nast

Ao olharmos para Garota com tabaco na ponta da língua, capa de uma revista Vogue publicada no início dos anos 1950, somos imediatamente atraídos pelo caráter aurático da imagem de Irving Penn (1917-2009). Num primeiro momento, a fotografia em preto e branco pouco nos revela sobre o fascínio exercido pela jovem modelo que segura entre os dedos indicador e médio da mão esquerda um cigarro, enquanto leva a longa e esmaltada unha do dedo anular a ponta da língua, para retirar sobras do tabaco. Nada está em excesso, salvo a provocação do próprio título da obra: a geometria do longo chapéu traça uma linha diagonal com o vestido, que revela, na parte inferior, um pequeno detalhe em laço, contrastante com o corpo que se destaca do fundo da parede branca como uma figuração.

Seria o longo brinco de pérola, que como relíquia ocultada nos lança para as profundezas da terra, o inferno, e nos causa a comoção por uma sacralidade perdida? Ou o olhar da modelo, fotografada de perfil, que mira o vazio? Quem, ao ser atraído por uma “simples imagem de moda”, símbolo máximo da indústria cultural, do mero consumismo – da futilidade, para alguns – não se inquietou diante dessas esfinges, que ao se encontrarem com os nossos olhares nos arremessam para uma plenitude de um vazio sem resposta, como no jogo do erotismo, que oculta aquilo que promete?

Se a autonomia de toda obra de arte se deve à capacidade de suspensão da nossa relação imediata com o cotidiano, é também verdadeiro o seu aspecto que devolve à cultura a possibilidade de leitura do traçado dos gestos que a compõe na história. Com o trabalho de Irving Penn não é diferente. Nascido em Nova Jersey, em 1917, sua carreira profissional na moda foi grande responsável pelas mudanças no papel desta área da fotografia a partir da segunda metade do século 20.

Com forte influência do estilo construtivista-bauhausiano de Alexey Brodovitch – que mais tarde, a convite de Carmel Snow, ocuparia o cargo de diretor de arte da revista Harper’s Bazaar -, Penn soube decifrar o espírito de seu tempo, traduzindo-o para os principais editoriais de moda dos anos 50. No entanto, cabe a pergunta: o que o diferencia de alguns de seus antecessores, como Adolf de Meyer, Edward Steichen, George Hoyningen-Huene, Horst, Man Ray, Erwin Blumenfeld, Cecil Beaton e Martin Munkácsi?

Em suas origens, na segunda metade do século 19, a fotografia de moda estava mais próxima dos caprichos da imaginação da elite burguesa e de uma aristocracia em declínio, do que do status de arte alcançado com as inovações técnicas e conceituais de Irving Penn. Tão logo descoberta a invenção de Niépce e Daguerre, Virginia Oldoini, a Condessa de Castiglione, encantou-se com as possibilidades “excêntricas” da máquina, tornando-se a primeira self-made top model. Nos ateliês de Héribert Mayer e Louis Pierson, entre 1857 e 1859, a Condessa propunha a criação de novos gestos encarnando personagens históricas e da literatura clássica, como Lucrécia Bórgia e a Beatriz de Dante. Seu repertório de interpretações, que beirava o exagero fantasioso, como na imagem vestida de cisne ou nas que representam os êxtases de Nossa Senhora, propõe não apenas a arte do retrato, mas demarca o espaço que seria ocupado pela fotografia de moda nas décadas seguintes: a proposta e a criação de um modo de vida.

Foi somente nos anos 1920, quando revistas de moda como La Mode Pratique, Le Miroir des Modes e La Femme Chez Elle ainda divulgavam as criações dos costureiros com desenhos feitos a mão, que o Barão Adolf de Meyer –considerado o primeiro fotógrafo de moda – afastou-se da utilização da fotografia apenas como documentação da roupa e aproximou a moda e a arte, a pesquisa pura e a indústria cultural, num estilo fortemente influenciado pela teatralidade. Apropriando-se do flou, uma técnica muito difundida entre os pictorialistas, De Meyer criou uma atmosfera onírica e rarefeita, a partir da utilização de uma lente especial, a Pinkerton-Smith. Em outros momentos, o efeito era alcançado de modo mais artesanal, ao colocar uma fina gaze de seda diante da lente da câmera.

No seu imaginário, mulheres da alta sociedade de Londres trajavam toaletes de seda e gaze fina em cenários com naturezas-mortas e vasos de cristais com água. Toda a ambientação logo permitiu a entrada em cena de outra invenção de De Meyer para o sistema da moda: a famigerada pose da modelo – mãos sobre os quadris e o corpo levemente inclinado para trás. Isso influenciaria não somente os fotógrafos e os desfiles posteriores, como delimitaria a própria noção de fotografia de moda, ao retratar personagens se distanciando de mulheres da vida real.

Com uma luz frontal e uma contraluz, a iluminação – que sempre teve um papel de importância na fotografia de moda – realçava o lirismo aristocrático e romântico da encenação, afinando o tempo histórico numa sinfonia de suspensão metafísica.  As vanguardas artísticas da virada do século 19 para o 20, com as suas pretensões modernistas, de depurações geométricas, mecânicas e o apreço pelo rigor do formalismo, logo desbancariam as pretensões do barão em romantizar a realidade.

Se na realidade histórico-social dos anos 50 o desejo prevalecente era o de reconstrução de uma Europa dilacerada pela guerra e pelas ocupações nazistas, na moda ressaltava-se o caráter letárgico das criações dos costureiros, como na proclamação do new look de Christian Dior, em 1947. Como se ignorasse os anos sombrios vividos recentemente, Dior restabeleceu a moda da década revisitando a silhueta em forma de ampulheta do auge da França da Belle Époque. Numa capa da revista Paris Match, de 1952, o mestre da haute couture, sugere a altura ideal da saia de seu new look: 40 centímetros acima do chão.

Foi esse preciosismo matemático, racionalista e formalista que consagrou não apenas o costureiro francês, mas o seu contemporâneo na fotografia, Irving Penn. Nas palavras do fotógrafo: “somente uma pessoa que já conhecia muito bem a moda dos anos 1950 estaria em condições de reconstruir corretamente o desenho dos trajes a partir das informações oferecidas pelas fotos”.

Com Richard Avedon, responsável pela antecipação da narrative art dos anos 70, ao criar a ideia de mini-histórias nos editoriais de moda, Irving Penn soube decifrar o clima laico e mundano do pós-guerra, recusando a importância nominal e temática da fotografia e privilegiando o aspecto formalista. Fortemente marcado pela pintura de Paolo Uccello e Giorgio de Chirico, traduziu a capacidade dos pintores em organizar espacialmente uma imagem. Sua identidade pictórica, realçada pelo refinado estilo gráfico, apóia-se nas poéticas construtivistas e neoplásticas, num rigoroso exercício formal de linhas, volumes, silhuetas e valores cromático-tonais que destacam o espírito racionalizante da perspectiva renascentista.

Nas imagens de Penn, como nos seus famosos retratos, que capturavam as individualidades dos fotografados colocando-os em espaços angulares formados por paredes brancas, o tema é constrangido no esquema estilístico, mais evocado do que representado. Tais escolhas conscientes refletem um desejo de fuga da caducidade do mundo, do transitório, numa explícita provocação: a sensação de atemporalidade transmitida pelas imagens de Penn contradizem a própria temporalidade do efêmero que faz justiça à lógica da moda.

No sistema quase kantiano da moda, a “roupa em si” nada significa, pois ela só se torna moda quando inserida numa categoria de tempo-espaço narrativo – desfile, vitrine, fashion film, fotografia e o próprio corpo – ou mediada por saberes que a decifre. A inserção da roupa num campo de linguagem é o que confere ao objeto uma dimensão aurática. Nas palavras de Walter Benjamin, aura “é uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja”.

A relação de consanguinidade entre o distante e o próximo, que eleva o objeto à aura, pode ser antevista na fotografia de moda como a vestimenta, que é o simbólico cultural/natural mais próximo do corpo vestido/nu; e com a criação de um imaginário como o distante, que propõe, por meio da narrativa, uma existência desejável, inalcançável.

Vilém Flusser, no seu conhecido livro Filosofia da caixa preta – ensaios para uma futura filosofia da fotografia (1985), nos alerta para a inquietação do olhar ao percorrer a superfície de uma fotografia. O olho que vagueia pela imagem estabelece relações temporais com os elementos fotografados, “um é visto após o outro”, num movimento circular que sempre retorna ao já visto antes: “Assim, o ‘antes’ se torna ‘depois’, e o ‘depois’ se torna o ‘antes’. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imaginística por ciclos”.

Se toda a narrativa institui uma temporalidade própria, como nos mostrou o filósofo francês Paul Ricoeur em seus trabalhos sobre o tema, podemos dizer que a fotografia de moda nos capacita não apenas no exercício do olhar e da percepção para as coisas do mundo, mas ela instaura a própria consciência histórica. Afinal, se nos encantamos por essas imagens míticas, que evocam o eterno retorno, que carregam o pathos do mito com modelos-esfinges, que olham para a direção do infinito (o futuro), seria por não percebemos nelas um sopro de ar, no presente, que os nossos antepassados respiraram quando ainda trajavam as vestimentas de suas épocas?

Não há história sem consciência temporal, como não há moda sem a percepção das mudanças das formas no decurso do tempo. Foi a esse belo exercício de artista, em figurar as formas do tempo histórico, que Irving Penn – e toda uma tradição – dedicou sua vida.

Garota com tabaco na ponta da língua retraça a vocação da moda como história do corpo e do gesto. No primeiro caso, a imagem figura um limiar da realidade sócio-política dos anos 50, num duplo jogo de espelho do real e da ficção, no momento em que a moda iniciou o processo de abandono da beleza clássica (aristocrática e burguesa) que a acompanhava desde o século 19.

Por outro lado, enquanto sensibilidade da história da gestualidade, temos a aparente insignificância do gesto da garota retirando as sobras de tabaco da ponta da língua. A dialética distância/próximo se revela como a quintessência do erótico, enquanto gesto, pois aqui, a moda, – nas palavras de Benjamin – com “suas finalidades eroticamente estimulantes”, cumpre o seu destino na obra de Penn.

Como nos conta Claudio Marra em Nas sombras de um sonho – história e linguagens da fotografia de moda (2004), ao contrário de toda uma geração anterior, com um erotismo altamente sacralizado, no sentido de distante e impossível, Penn inovou ao perceber, com a chegada do democrático prêt-à-porter às ruas, que no gesto ínfimo e banal de retirar as sobras do tabaco da ponta da língua se inscrevia a ideia de uma fotografia como comportamento.

Sem dispensar a força narrativa do imaginário, a fotografia como comportamento realiza o eterno da moda, numa espécie de aqui e agora, que conjuga a utopia e o concreto: a promessa de desejo (Eros) e a criação do paraíso na Terra, que torna o grande sonho da moda o mais mundano possível.///

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Irving Penn – Centenário, retrospectiva em homenagem aos 100 anos de nascimento do fotógrafo norte-americano, estará em cartaz no IMS Paulista em agosto de 2018.

 

Brunno Almeida Maia é pesquisador em Filosofia pela UNIFESP, residente do NECMIS (Núcleo de Estudos Contemporâneos do MIS – Museu da Imagem e Som), professor convidado do SENAC Lapa Faustolo, da FAAP, e do Centro Universitário Belas Artes. É autor dos livros O Teatro de Brunno Almeida Maia (Ed. Giostri, 2014), Moda Vestimenta Corpo (Ed. Estação das Letras e Cores, 2015) e São Paulo em Palavras (Ed. Aquarela Brasileira, 2017).

 

 

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