Colunistas

Retrato invisível

Dorrit Harazim Publicado em: 14 de março de 2014

Koto Bolofo tinha quatro anos de idade quando Nelson Mandela foi preso e condenado à prisão perpétua por atos de sabotagem contra o regime segregacionista da África do Sul. Também negro e nascido sob a lei do apartheid, o menino conseguiu sair do país em 1963 como refugiado político junto com os pais. Quase à mesma época, Mandela era desterrado para o gulag-presídio de Robben Island onde o tempo deveria se encarregar de fazê-lo desaparecer da memória mundial. Para o governo de minoria branca não bastava tê-lo condenado a aguardar em cativeiro por uma morte que poderia demorar anos, décadas, talvez meio século. Era preciso apagar Nelson Mandela da lembrança e da esperança sul-africana. Idealmente, também da história do país e da época em que viveu.

A chave trancando a porta da cela de Mandela, 1992, Koto Bolofo

A chave trancando a porta da cela de Mandela, 1992, Koto Bolofo

Para isso, por ordens do regime, a partir do momento em que o condenado pisou no chão pedregoso daquele cárcere perpétuo também o seu nome e, sobretudo, qualquer tipo de foto tiveram veiculação e exibição proibidas em todo território nacional.

O menino Koto, enquanto isso, foi sendo educado na Inglaterra. Tornou-se um fotógrafo de moda conceituado e altamente requisitado. Grifes como Hermès, Dior e Vuitton lhe entregaram campanhas inteiras, calendários Pirelli começaram a trazer sua assinatura e editores da Vogue e Harper’s Bazaar passaram a apreciar o frescor e o humor, do seu estilo. Em um de seus ensaios fotográficos mais memoráveis ele retratou Venus Williams vestida de cisne e sapatilha preta, dando um salto de bailarina numa quadra de tênis e empunhando a raquete com leveza de sílfide. Associar leveza a qualquer uma das irmãs Williams, mais notórias por exalarem potência muscular e presença vulcânica, ilustra o estilo cativante do emigrado sul-africano.

Em paralelo à carreira de estelar fotógrafo comercial, Koto Bolofo desenvolvia projetos de estilo e linguagem quase opostos. Um deles começou a ser trabalhado em 1992, dois anos depois de Mandela ter derrotado seus captores e emergido de 27 anos de solidão com estatura moral de líder da nação multiracial. Foi esse Bolofo “paralelo” que retornou ao país alforriado do apartheid acompanhado da mulher, a também fotógrafa Claudia Van-Ryssen. Estava com 33 anos de idade.

Obteve, na ocasião, valioso acesso ao penedo de 5 km quadrados fincado no mar que os colonizadores holandeses e britânicos haviam transformado em prisão desde o século 17. Quando começou a documentar o lugar impregnado de história e imortalizado no imaginário mundial pelo épico da resistência de um grande homem, Robben Island estava silenciosa e deserta – havia sido esvaziada de todos os presos políticos do apartheid mas ainda não tinha sido convertida em museu.

Seus simples utensílios: uma tigela de metal, xícara, prato e colher, 1992, Koto Bolofo

Seus simples utensílios: uma tigela de metal, xícara, prato e colher, 1992, Koto Bolofo

Por via das dúvidas, temendo que o local viesse a ser fechado para sempre e o acesso à ilha pudesse se tornar restrito, Koto Bolofo tratou de registrar tudo, interiores e partes externas. Procurou manter o foco sempre fechado. Detalhes, minúcias, migalhas lhe pareceram essenciais para traduzir o dia-a-dia em linguagem claustrofóbica.

São essas imagens em preto e branco que compõem a obra “The Prison”, recém lançado pela editora de livros de arte Steidl. As fotos traduzem falta de ar, ausência de som, perda de espaço, negação de luz. Nem poderia ser diferente, dado que a famosa cela 5 da seção B do prisioneiro 46664 (número de Mandela no sistema correcional sul-africano) é impossível de ser captada nos seus espremidos 2,5 por 2,1 metros de espaço. Em compensação, o balde de metal com tampa que fazia as vezes de vaso sanitário nas celas é retratado em dimensão agigantada.

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Capa do livro “The Prision”, Koto Bolofo, Editora Steidl

O imenso vazio de vidas retratado por Bolofo está no escaninho de armários enferrujados entreabertos ou na costura de uma fronha cerzida toscamente. São, ao mesmo tempo, os poucos vestígios de que ali viveu e sobreviveu o espírito humano.

Hoje qualquer visitante ao museu Robben Island, inaugurado seis anos atrás e nomeado Patrimônio da Humanidade em 1999, pode sacar seu smartphone e fazer um registro pessoal da cela que causa impacto e força a imaginação. Mas será sempre a história revisitada, desumanizada com eficácia pelo regime do apartheid.

Falta o retrato principal.

A quase inexistência de imagens de Mandela durante suas décadas de cativeiro roubou da História um registro visual essencial: a transformação do revoltoso líder de uma solução armada contra a minoria branca em resoluto defensor de uma estratégia capaz de fazer da África do Sul uma nação para todos.

A transformação de Mandela de insurgente em estadista está documentada em primeira pessoa nos seus dois livros de memória e nos relatos de seus companheiros de prisão. Mas a ausência de registro fotográfico desse degredo fez com que vinte e sete anos de cativeiro continuem sendo mera abstração. Sem imagens de sua rotina em Robben Island, do surgimento dos primeiros fios de cabelos brancos, das mudanças na fisionomia ou da interação com os carcereiros, a história do período está condenada a permanecer capenga.

Seção B, o corredor no qual está a cela de Nelson Mandela, uma vista do buraco da fechadura, 1992, Koto Bolofo

Seção B, o corredor no qual está a cela de Nelson Mandela, uma vista do buraco da fechadura, 1992, Koto Bolofo

Esta foi, talvez, a maior vingança do regime branco de Pretoria, que tomou o cuidado de não repetir a norma nazista de deixar tudo registrado para os anais da História. Tampouco fotografou um a um seus prisioneiros antes de executá-los como no Camboja dos tempos da barbárie do Khmer Vermelho.

Existe uma rara imagem de Mandela em Robben Island feita em 1977, quando ele já estava isolado na ilha-presídio há mais de uma década. À época, a convulsão inter-racial no país atingira novos picos e o Ocidente começava a apertar o cerco econômico ao regime do apartheid.

Como periodicamente circulavam rumores de que Mandela já teria morrido no cativeiro o governo decidiu pinçar um pequeno grupo de jornalistas para fazer a travessia marítima até a mítica ilha situada a pouco mais de 6 km de distância da Cidade do Cabo – ou meia hora de navegação – e desfazer o boato. Visível a olho nu em dias claros, Robben Island sempre fora considerada inacessível.

Torre de observação, 1992, Koto Bolofo

Torre de observação, 1992, Koto Bolofo

Com a chegada da comitiva, um grupo de presos selecionados para fazer figuração foi retirado do interior do presídio e levado para um pedaço da ilha de solo árido. Cada um recebeu uma pá e aos jornalistas foi informado que aquele espaço era um jardim do qual cuidavam os apenados. Segundo relembrou o escritor Teju Cole, em artigo publicado por ocasião da morte de Mandela, uma das fotos feitas na visita dessa comitiva trazia a seguinte legenda: ‘n Gevangene werksaam in die tuin’ (Um preso trabalha no jardim).

Vale olhá-la com mais rigor. Nelson Mandela não está trabalhando. Ele está ereto, de mão na cintura e encara o fotógrafo. Os óculos escuros que lhe encobrem os olhos já prenunciam a visão arruinada por décadas de trabalhos forçados na pedreira de cal de Robben Island. Não foram poucos os que viram uma fúria contida na imagem do retratado e dela extraíram a mensagem que o regime procurou apagar.

“As coisas […] estão em constante desaparecimento e, uma vez consumado, não dispomos de qualquer recurso capaz de fazê-las reaparecer”, ensinou Henri Cartier-Bresson. Naquele instante, a fotografia trabalhou a favor da História.

A minúscula cela de Mandela, com meros seis metros quadrados, 1992, Koto Bolofo

A minúscula cela de Mandela, com meros seis metros quadrados, 1992, Koto Bolofo

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

© Koto Bolofo, Claudia Van Ryssen-Bolofo