Colunistas

Paradoxos e contradições da pós-fotografia

Ronaldo Entler Publicado em: 19 de agosto de 2020

Pós-tudo, poema de Augusto de Campos, 1984.

 

para Arlindo Machado

 

O termo pós-fotografia tem sido utilizado por artistas, críticos e curadores para designar um contexto em que a fotografia avança sobre as fronteiras que, ao longo de sua história, pareciam defini-la. De modo geral, a revolução digital é apontada como motor desse deslocamento. A expressão foi, muitas vezes, uma resposta mais delicada e produtiva à velha questão da morte da fotografia. Mas raramente houve a preocupação de debater o sentido pretendido por esse prefixo pós. Que lugar exatamente ele dá à fotografia quando decreta que certos experimentos e processos culturais estão fora de suas competências?

Talvez a expressão tire partido do lugar incerto que instaura: é o que tem lhe permitido renovar seu efeito de surpresa. De todo modo, o termo tem sido uma provocação eficiente em sua intenção de agitar um circuito cultural especializado. Muito circunscrito aos espaços de celebração da própria fotografia, o debate da pós-fotografia parece carregar às vezes uma pitada de dissimulação, mais ou menos como ocorre com a expressão “pós-verdade”, quando dita por um político que não quer ser confundido consigo mesmo.

 

O tempo incerto do pós

Talvez outros termos análogos nos ajudem a entender os desejos, os fantasmas e os sintomas que nos acompanham quando habitamos o pós de alguma coisa. Esse prefixo pode indicar um acontecimento do passado que ainda se faz sentir no presente. O pós-guerra é o período que sucede o conflito, mas que ainda sente profundamente seus efeitos. O pós-operatório é o momento em que o corte já suturado ainda não está cicatrizado, dói e está sujeito a infecções. Nessa perspectiva, começamos também a discutir como será o mundo pós-pandemia. O termo pós absorve muitas vezes uma memória traumática.

A história da fotografia também carrega suas dores. Em seus usos populares, ela foi acusada de responder ao gosto malformado das massas, produzindo uma cultura da vulgaridade e do excesso. Como documento, a fotografia viveu o constrangimento de ter colocado sua credibilidade a serviço de uma ciência positivista, de uma política colonialista, de uma comunicação sensacionalista e alienante. Em suas pretensões artísticas, há uma sucessão de desconfortos: primeiro, a dificuldade de ter sua dignidade estética reconhecida; em seguida, o espaço demasiadamente fechado que teve que construir para se proteger dessa hostilidade. Por fim, não é sem dor que a fotografia deixa esse território que lhe foi muito produtivo e confortável, para finalmente interagir com outras linguagens.

Em alguma medida, a pós-fotografia é a fotografia que foi colocada no divã da história para prestar conta desses momentos dolorosos, repensando seu rumo ou, pelo menos, assumindo uma consciência autocrítica dos problemas que persistem ou se agravam. Mas, como é recorrente no processo pós-traumático, a pós-fotografia corre o risco de produzir certo gozo em torno dessas memórias, mais ou menos como alguém que se denominasse pós-enclausurado para se referir à sua liberdade, pós-excluído para indicar seu pertencimento, ou pós-alienado para tratar de uma consciência conquistada.

Em vez de abrigar os fantasmas do passado, o termo pós pode também identificar as marcas que um movimento em direção ao futuro imprime sobre o presente. Noções como pós-humano ou pós-história se constroem nessa perspectiva, assumindo o desafio de reinserir no tempo – e, assim, numa possibilidade de superação – categorias que parecem absolutas e definitivas: a natureza biológica do humano como parâmetro para o entendimento dos papéis sociais (Donna Haraway); a história como visão de mundo que encontra na linearidade da escrita uma forma eficiente de encadear os acontecimentos (Vilém Flusser). São teses controversas que exigem um investimento teórico robusto, com conclusões que não se prestam a verificações fáceis. Quando essas teses são apropriadas por uma futurologia sedenta de ilustrações espetaculares, os destinos que elas vislumbram também aparece como fantasmas, como nos filmes sobre distopias tecnológicas e catástrofes.

Um parêntese: toda ruptura coloca em questão o futuro. Ela é particularmente angustiante quando prolonga o intervalo entre a ordem desfeita e as novas rotinas que não sabemos quando virão e como serão. A comparação é abusiva, mas é o que vivemos nesta quarentena que atravessamos. Tanto na vida social quanto no campo estético, a ideia de que as coisas não serão como antes pode chegar até nós na forma de análises que convidam à reflexão ou de traumas que doem no corpo. Entre uma coisa e outra, há um jogo especulativo que se apressa em dar forma a esse futuro. Esses discursos vestem também uma roupagem analítica para construir respostas sempre rápidas e surpreendentes, que traduzem também em gozo as ansiedades e as dores instauradas pela ruptura.

Os debates sobre a pós-fotografia buscam localizar essa pressão que o futuro exerce sobre o presente, problematizando o lugar demasiadamente estável conquistado pela fotografia para reinseri-la numa história que contempla seus desgarramentos mais radicais, incluindo a possibilidade de sua superação. Não se pode cobrar que esses debates permaneçam imunes à sedução das imagens, quando são justamente elas que estão em questão. Mesmo assim, ocupam-se demais em buscar os efeitos mais imediatos e extravagantes desse processo, capazes de repactuar o sentimento de que estamos, a cada vez, no olho do furacão. O desejo de apreender a arte em seus momentos de maior tensão exige uma terminologia de impacto. A fotografia das últimas décadas já foi construída, híbrida, pensante, contaminada, expandida, plástica etc. O termo pós, com seu sentido de ultrapassagem, surge como uma retórica turbinada nessa corrida que, nos últimos trinta anos, a fotografia contemporânea disputa consigo mesma para afirmar que o momento mais disruptivo é sempre agora.

A consciência de que os valores estéticos são arbitrários, produtos de seu tempo, criou no século 20 a ilusão de que seria possível manipular e acelerar a história da cultura por meio de nomenclaturas e manifestos. Esse processo é marcado, numa ponta, pela ansiedade e, na outra, pela frustração. Como vemos no poema Pós-Tudo (1984), de Augusto de Campo, o desejo de “mudar tudo” leva a um “ex-tudo”, a uma mutação contínua, mas também a um mutismo, um terreno movediço em que nenhum discurso pode ser ancorado.

 

Livro The reconfigured eye: visual truth in the post-photographic, de William J. Mitchell, 1992. Reprodução.

Os diversos pós da fotografia

Sabemos que o termo não é novo. Vários autores creditam a primeira ocorrência ao pesquisador canadense David Tomas, no artigo From the photograph to postphotographic practice: toward a postoptical ecology of the eye (1988). É um texto difícil que, apesar de lembrado, raramente tem seus argumentos convocados pelo debate mais recente sobre a pós-fotografia. Referências mais palatáveis surgem na década que se segue.

William J. Mitchell, em The reconfigured eye: visual truth in the post-photographic era (1992), denomina pós-fotográfica uma era em que as novas tecnologias ampliam os meios pelos quais produzimos nossos discursos visuais e colocam em crise a confiança que a cultura moderna depositou na fotografia. Essa será uma questão recorrente trazida pelo termo: a codificação da imagem dissolve toda possibilidade de pensá-la como impressão direta da realidade. Mitchell reúne uma vasta coleção de exemplos de manipulação da fotografia, efeitos bastante datados que fazem a expressão “novas tecnologias” parecer tão amarelecida quanto um velho albúmen. Mas, naquele tempo, esses experimentos pareciam dar forma ao que poderia ser uma estética da imagem computacional.

Numa direção distinta, o artigo On post-photography (1992), de Geoffrey Batchen, mira as experiências da arte contemporânea que investem na dissolução das fronteiras que distinguem as linguagens artísticas. A pós-fotografia é, para ele, resultado de um processo de hibridização em que a fotografia tende a desaparecer como “entidade isolada”. Batchen destaca a escultura Milk Crown (1988), de Jennifer Bolande, que reconstitui em três dimensões a célebre foto de uma gota de leite tocando a superfície desse líquido, feita por Harold Edgerton, em 1936. Essa passagem do bidimensional para o tridimensional transforma não apenas a materialidade da imagem, mas também a percepção de sua temporalidade: enquanto a fotografia eterniza um instante situado no passado, a escultura “pós-fotográfica” de Bolande “postula uma eterna estase, a presença do presente”.

 

(Esquerda) Milk drop coronet splash, de Harold Edgerton, c. 1936 © 2010 MIT. Cortesia do Museu do MIT. Edgerton Digital Collections: ‘Doc’ Edgerton, Visionary Engineer. (Direita) Milk crown, escultura em porcelana de Jennifer Bolande, 1987. Reprodução do site da artista.

Num artigo posterior, Digital imaging and death of photography (1994), Batchen entra de forma cautelosa na discussão sobre o impacto produzido pelas imagens digitais. Para ele, é insuficiente pensar a fotografia como uma tecnologia que emerge ou se torna obsoleta. Ela é também uma economia de desejos e conceitos e, como ele conclui, “enquanto esses desejos e conceitos persistirem, de um modo ou de outro, a fotografia também persistirá” (BATCHEN, 1994, 48). Ele completa dizendo que “com a pós-fotografia entramos numa era situada depois, mesmo que não ainda além da fotografia”. Numa entrevista concedida a Steve Kemple, 25 anos depois da publicação desse texto, Batchen repensa o termo: “ele foi concebido como uma provocação. (…) Todos os termos têm seu prazo de validade e talvez a pós-fotografia já tenha atingido esse ponto. Hoje, eu usaria simplesmente fotografia. Devemos assumir a dificuldade de definição que o termo pós-fotografia implica”.

No contexto brasileiro, Lucia Santaella e Winfried Nöth tangenciam essa discussão com o texto Os três paradigmas da imagem (1997). Assim eles definem esses paradigmas: pré-fotográfico: os “processos artesanais de criação”; fotográfico: os “processos automáticos de captação”; pós-fotográfico: os “processos matemáticos de geração”. O pós-fotográfico se refere pontualmente às imagens modeladas pelo computador que, apesar de sua permeabilidade, não são aqui pensadas em função das pressões que exercem sobre a fotografia. Santaella volta à discussão em outro artigo, O quarto paradigma da imagem (2013), para responder ao modo como a noção de “pós-fotografia” passou a ser utilizada pela crítica. Ela ainda prefere resguardar o termo para o contexto definido no texto anterior, mas acrescenta um “quarto paradigma” relacionado ao universo das imagens híbridas, que têm o potencial de absorver qualidades identificadas com os demais contextos.

Nessa virada de século, o termo tinha ainda um alcance restrito. Passará a circular como vocabulário corrente, em boa medida, a partir da militância do artista e curador Joan Fontcuberta. Seu texto Por um manifesto pós-fotográfico (2011) tem o mérito de pensar as novas tecnologias além de sua perspectiva ferramental. Seu ponto chave é o modo como esse impacto se enraíza numa cultura visual mais cotidiana, pela produção e pela circulação massiva de imagens captadas pelos smartphones ou pelos dispositivos de mapeamento e de segurança que cobrem todo o planeta. O autor conclui que o papel do artista já não é “produzir obras, mas sim de prescrever sentidos”. Esse personagem, então, “se confunde com o curador, com o colecionista, o docente, o historiador da arte, o teórico”.

Fontcuberta retorna ao tema em um livro mais recente, La Furia de las Imágenes: notas sobre la postfotografía (2016), que inclui seu Manifesto e o ensaio A condição pós-fotográfica que, um ano antes, já havia aparecido no catálogo do Mois de La Photo de Montreal. Aqui, o autor assume o prefixo pós como corte definitivo numa cronologia: “pós indica abandono ou expulsão. Uma porta se fecha atrás de nós, pashhh… e ingressamos numa posteridade”. Mesmo reconhecendo que muitos usos do termo ainda miram a fotografia pelo “espelho retrovisor”, ele é categórico em afirmar uma “disrupção” cujas “consequências anulam ou deixam obsoletas a etapa anterior”. Fontcuberta retorce então o pensamento de Batchen, atribuindo a ele a “visão perspicaz de que não devemos pensar num depois da fotografia, mas num além da fotografia”. Batchen afirmou justamente o contrário, “um momento depois, mas não ainda além da fotografia”. Essa distorção não é apenas formal: onde Fontcuberta decreta uma superação, Batchen preferia relativizá-la.

 

Trabalho de João Castilho no livro Post-Photography- the artist with a câmera, de Robert Shore, 2014. Reprodução.

Além dos debates conceituais, houve esforços consistentes de mapear trabalhos de artistas que dessem à pós-fotografia uma paisagem: a exposição Photography after Photography: Memory and Representation in the Digital Age (Munique, 1996, curadoria coletiva); o livro Post-Photography: the artist with a camera (2014), do editor inglês Robert Shore; o Mois de la Photo de Montreal (2015) que, sob a curadoria de Fontcuberta, reuniu diversas exposições a partir do tema The Post-Photographic Condition. Não há dúvida de que a noção de pós-fotografia constitui um recorte curatorial interessante, que ilumina aspectos relevantes da produção artística e da cultura visual contemporâneas. Mas é precipitado tomar esses recortes como um destino no qual toda a fotografia se resolve ou se dissolve.

O cinema também foi atravessado por essa discussão. Não cabe inventariar esse debate, mas é interessante perceber como os pesquisadores que têm um pé nesse campo tendem a pensar o pós mais como uma condição de abertura do que de superação. No livro Pré-Cinemas & Pós-Cinemas (1997), Arlindo Machado coloca uma questão cronológica: de um lado, as técnicas que antecedem as formas industriais do cinema, mas que já antecipam o desejo de dar movimento às imagens; de outro, as tecnologias audiovisuais que chegam após o cinema (o vídeo e a computação gráfica). Esse pós não sugere nenhuma negação ou obsolescência. Ao contrário: “muitas das experiências anteriores ou posteriores a isso que chamamos de cinema podem ser, na verdade, muito mais cinematográficas (no sentido etimológico do termo) do que a prática regular que leva esse nome”.

Em Pós-Fotografia, Pós-Cinema: os desafios do ‘Pós’ (2019), Philippe Dubois repassa um universo de transgressões que convocam esses termos e assume – finalmente – o desafio de pensar o que o prefixo pós tem a dizer sobre essas imagens.  Sua principal questão é libertar o pós de uma dimensão cronológica, evolutiva, teleológica, que sempre pesa sobre ele quando confundido com um “após”, quando pensado como “ultrapassagem”. Dubois transpõe para esse debate dois conceitos trazidos por Gilles Deleuze e Félix Guattari: desterritorialização e reterritorialização. Dubois conclui que, ao se reinventar, as imagens se desterritorizalizam, isto é, abandonam de suas categorias orgânicas (a fotografia, o cinema), ao mesmo tempo em que produzem nelas porosidades que permitem a reterritorialziação das novas experiências produzidas. Esses conceitos permitem escapar à tentação de atribuir à fotografia fronteiras sempre rígidas e de pensar a pós-fotografia como colapso do território por elas demarcado.

Ontologia e historicismo

O que é a fotografia? A palavra ser é cara à filosofia, dando origem a um de seus braços mais robustos, a ontologia, que se dedica a pensar “o que é” uma tal coisa eleita como objeto de reflexão, como se define seu ser, qual é sua essência. Mas, para fazer desse verbo o operador de uma verdade consistente, foi preciso dar à sua conjugação no presente um aspecto de atemporalidade que exclui toda possibilidade de movimento. Dizer que tal coisa é significa supor que ela sempre foi e sempre será aquilo que tem sido. Tanto que a palavra ser deixa de ser verbo para se tornar substantivo: o ser de uma coisa, isto é, sua substância.

A superação da fotografia só pode ser pensada a partir do reconhecimento de uma essência estável que, supostamente, não sobrevive às novas formas que a imagem adquire. Os anos 1980 produziram muitas teorias ontológicas da fotografia, que tinham em comum o desejo de identificar aquilo que define sua especificidade, que lhe dá um lugar próprio no universo das imagens. À medida que se reconhece a identidade complexa e permeável que a fotografia pode assumir, essas teorias acabam por perder espaço. Esse diagnóstico aparece, por exemplo, no livro A fotografia (2009), de André Rouillé, mais pontualmente no subcapítulo intitulado Miséria da Ontologia, que propõe “ultrapassar o ponto de vista ontológico acerca do ser da fotografia em proveito das alianças e das mesclas”. Apesar disso, o autor não escapa à tentação de identificar uma “natureza da fotografia” que o digital viria desestabilizar, “a ponto de não ser certo que a ‘fotografia digital’ continue sendo fotografia”. Aqui, uma contradição: as dinâmicas múltiplas e fluidas em que essa imagem se insere não mais nos sugerem uma essência estável. Mas, ao flagrá-la despida de seus valores mais característicos, acreditamos não poder mais chamá-la de fotografia.

Essa mesma contradição aparece num modo de situar a fotografia na história. Sabemos que essa imagem está profundamente identificada com a afirmação da modernidade no século dezenove. Na medida em que nos sentimos distantes desse tempo, supomos que a fotografia se torne órfã do contexto que lhe dá sentido. Restam a ela duas possibilidades: resistir como uma espécie de manifestação arcaica e nostálgica (como soa arcaico, por exemplo, quando nos pedem uma “carta de próprio punho”, como soa nostálgico o modo como a caligrafia sobrevive como prática estética entre seus aficionados); ou, então, transfigurar-se em outra imagem mais identificada com os novos tempos. Isto é, ou a fotografia existe fora de seu tempo ou, se sobrevive a ele, já não existe como fotografia. A contradição é: situar algo na história é admitir sua mobilidade. Mas, para realizar bem essa operação de contextualização, é preciso que o objeto de análise seja estabilizado, tratado em suas formas mais rígidas, é preciso que seja “ontologizado”. Ou seja, para que se pense a fotografia como uma imagem essencialmente moderna, para que esse encaixe se realize com precisão, é preciso engessar tanto à fotografia quanto a modernidade.

Podemos insistir na inadequação das teorias ontológicas da fotografia. Ou podemos, como sugere Deleuze, libertar a ontologia de sua atemporalidade, numa abertura em que “o ser se diz do devir, a identidade se diz do diferente, o uno se diz do múltiplo etc.” (Diferença e Repetição, 2000). Ele assume que o ser se evidencia não numa condição de imutabilidade, como propôs a tradição da metafísica, mas na realização de suas potências, num retorno de si que, a cada vez, se realiza por meio da manifestação das variações que esse ser comporta. A ontologia, libertada de sua imobilidade, convida a pensar que, talvez, também o ser da fotografia se realize nas diferenças que abarca. Talvez seja nesse desgarramento de si que ela encontre suas potências. Ao se tornar outra coisa, talvez a fotografia chegue a ser aquilo que ela é.

Para o bem ou para o mal, ainda fotografia

No final do século 20, Flusser via despontar uma revolução, aquela que nos conduziria à “pós-história”: um momento em que o pensamento linear produzido pela escrita, que se reproduz num modo de encadear os acontecimentos que é próprio da história, pode ser             cada vez mais programado e operado por aparelhos. Sem dúvida, Flusser tem em perspectiva o desenvolvimento da computação. Como essa revolução é gestada de forma lenta, ele pode apenas tatear seus efeitos, mas reconhece com clareza algumas de suas manifestações inaugurais: como primeiro aparelho, a fotografia é, para ele, o protótipo de uma máquina de informação programada para processar teorias científicas e traduzi-las em imagens (Filosofia da Caixa-Preta, 2002). Segundo essa tese, a fotografia contém em si o embrião da cultura digital que, agora, supomos surpreendê-la.

Não se trata de exaltar o espaço da fotografia. Duvidar de sua superação é supor que nem suas riquezas, nem suas misérias estejam esgotadas. Uma vez, Fontcuberta disse: “toda fotografia é uma ficção que se apresenta como verdadeira. Contra o que nos inculcaram, contra o que costumamos pensar, a fotografia mente sempre, mente por instinto, mente porque sua natureza não lhe permite fazer outra coisa” (El Beso de Judas, 1997). Ora, se sua natureza permite – ou exige – que ela minta, é estranho supor que, justamente quando a cultura dá vazão a tal vocação, a fotografia se torne outra coisa que não ela mesma.

 

Nadar elevando a fotografia à altura da arte, litografia de Honoré Daumier, 1862 © Museum of Fine Arts, Boston

Precocemente, Baudelaire observou em torno da fotografia valores que tendiam a torná-la excessiva, alheia ao gesto e à subjetividade humana, vulgar em seu desejo de tornar tudo visível (BAUDELAIRE, 1859). Também Daumier tratou dessas questões numa caricatura que ironizava, de um lado, as pretensões artísticas da fotografia e, de outro, o desastroso projeto conduzido por Nadar de realizar a primeira fotografia aérea. Nessa caricatura, o excesso se converte em ubiquidade: um mundo em que a fotografia estaria em toda parte, em cada esquina, mas também no céu, num ponto de vista em que nada lhe escapa. Obviamente, os artistas da fotografia se esforçaram para contornar esses estigmas. Mas quando, em vez de negá-la, os artistas decidem encarar e desdobrar essa vocação para o excesso que desde o princípio havia sido denunciada, então, supomos que suas obras estejam tratando de outra coisa, não mais de uma cultura fotográfica.

Como esforço de apreender o universo de liberdades que a arte oferece hoje aos fotógrafos, a noção de pós-fotografia soa um pouco dispendiosa. Já estamos suficientemente familiarizados com estratégias que permitem aos artistas ancorados no campo da fotografia se desgarrar dos modos convencionais de produzir suas imagens, para dar a suas obras qualidades híbridas. Gestos análogos são encontrados em todos os campos da arte. Nesses casos, a noção de pós-fotografia pode ser apenas uma forma provocativa de reativar o debate sobre fenômenos que já foram nomeados de tantos outros modos.

Mas, também aqui, a questão não é defender a fertilidade do território da fotografia. Ao contrário, é pensar que às vezes esse espaço é atravessado pelo artista sem constituir uma paisagem, sem ser percebido como um território. Não é raro encontrar artistas cujas obras não se identificam com nenhuma linguagem artística, ainda que suas fichas técnicas apontem para alguma delas. Mesmo que seja pela negação, a pós-fotografia pode ser um modo de forçar o enquadramento dessas obras a partir de uma referência que elas não pretendem trazer. Isso não é em si um problema: é mesmo o papel da crítica dar respostas a perguntas que não foram feitas. Iniciativas desse tipo são legítimas desde que se reconheça que a perspectiva construída tem algo arbitrário: elas dizem mais sobre o lugar de origem dos curadores do que sobre um destino pretendido pelas obras. A pós-fotografia é, nesse caso, uma porta de entrada construída à força para satisfazer o desejo de batê-la ao sair.

Aprendemos com Freud que o desejo pode se manifestar pela negação. Num exemplo clínico, ele traz o seguinte diálogo: “ ‘O senhor me pergunta quem pode ser essa pessoa no meu sonho. Não é minha mãe’. E nós corrigimos: Portanto, é a sua mãe’ ” (A negativa, 1925). Poderíamos deslocar esse diálogo: você me pergunta que imagem é essa. É pós-fotografia. Então, supomos: ainda é fotografia. A pós-fotografia é também um desejo de fotografia. E, como sugeriu Batchen, enquanto houver esse desejo, haverá fotografia. ///

 

Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.

 

 

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