A história em preto e branco
Publicado em: 15 de abril de 2015Em 1965, James “Spider” Martin era o fotógrafo mais jovem do jornal Birmingham News, na cidade de mesmo nome no estado do Alabama. Cumpria as pautas tediosas e corriqueiras para iniciantes, que os veteranos lhe empurravam. No dia 18 de fevereiro, um diácono negro de 25 anos, Jimmie Lee Jackson, fora espancado e baleado por policiais brancos durante uma passeata pelo direito de votar, na época ainda restrito nos estados sulistas. A vítima viria a morrer uma semana depois em decorrência dos ferimentos.
O caso tinha tudo para valer apenas um curto registro de mais um negro morto por policiais numa cidade segregada do sul dos Estados Unidos. Daí a decisão do jornal de despachar um novato para cobrir os desdobramentos do episódio. Spider, apelido que Martin adotara como prenome, era um branquela mirrado de 1,58m e 56kg.
Não tinha a menor ideia de que documentaria quase sozinho um dos momentos de maior impacto e relevância da luta pelos direitos civis de seu país. Tampouco lhe passara pela cabeça que a marcha em homenagem a Jimmie Lee, marcada para o domingo 7 de março, se tornaria histórica como “Domingo sangrento” (Bloody Sunday) e mudaria o curso da supremacia branca.
Spider viajou para Selma no meio da noite dirigindo seu Plymouth Valiant. Decidiu levar três câmeras. Por via das dúvidas, escondeu uma pistola calibre 22 embaixo do banco do carona. Além do linguajar normal, armou-se também de um carregado sotaque de redneck sulista para ser menos notado.
São dele as imagens mais icônicas daquela primeira marcha cujos 600 participantes foram recebidos pelas tropas estaduais a golpes de aguilhão, cassetete, bombas de gás lacrimogêneo, cavalos e cães. São dele também as imagens dos canteiros da estrada coalhados de corpos espancados. E é dele a sequência de fotos da ativista negra Amelia Boynton estatelada no chão, golpeada até desmaiar e arrastada para longe do tumulto por companheiros, ainda inconsciente.
No mês passado, a veterana do movimento negro foi vista em uma cadeira de rodas e de mãos dadas com Barack Obama, atravessando a mesma ponte Edmund Pettus que desembocou na brutalidade de meio século atrás. Ainda perfeitamente lúcida aos 104 anos, ela compunha uma figura e tanto na caminhada em homenagem aos 50 anos da marcha, com o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, eleito e reeleito, a seu lado.
“Os cavalos foram mais humanos do que as tropas”, relembra Amelia ao evocar aquele 7 de março de 1965. Naquela noite, a emissora americana ABC interrompera por 15 minutos a exibição do filme Julgamento de Nuremberg e noticiara o que ocorrera no Alabama com imagens de Spider Martin distribuídas pela agência de notícias Associated Press. Selma e a luta pelo fim da segregação passaram a ser notícia internacional. Para Martin Luther King, as cenas mostradas mudaram o curso da história. E o jovem fotógrafo retornou à redação do jornal de Birmingham com outro status: “Spider, nós poderíamos ter marchado e protestado sem parar, mas seria tudo em vão sem caras como você”, lhe dissera o próprio reverendo. “O mundo inteiro viu as fotos de vocês e foi por isso que a Lei do Direito ao Voto foi aprovada.”
O Los Angeles Times defende a tese de que Selma representou a vitória da estratégia dos organizadores de usar a cobertura jornalística para ganhar a opinião pública do país. Sabe-se que em determinado momento da marcha Selma-Montgomery o reverendo King repreendeu um amigo de longa data, o fotógrafo Flip Schulke, por ele não ter registrado uma violência de supremacistas brancos contra um grupo de crianças negras. Em vez de fotografar, o enviado da revista Life baixara a câmera e entrara na briga. “O mundo não vai saber que isso [a violência contra as crianças] ocorreu porque você não fez as fotos”, reclamou King. E acrescentou: “Não estou sendo insensível, apenas é mais importante você registrar em foto essa brutalidade do que ser uma pessoa a mais metida na pancadaria”.
Schulke começara a cobrir o movimento liderado por King uma década antes e havia sido chamado pelo líder negro para participar do planejamento da marcha – foi o único branco a merecer confiança tão irrestrita. Ao longo da vida, produziu um valioso arquivo pessoal de mais de 11 mil imagens do reverendo e de sua família, posteriormente comprado pele Centro Briscoe de História Americana da Universidade do Texas.
Também a obra de Spider Martin integra o acervo do Briscoe, cujo arquivo fotográfico contém mais de 6 milhões de imagens de 1840 até o presente. Foi adquirida pela entidade após a morte do fotógrafo em 2003, por US$ 250 mil . Os negativos haviam ficado em grande parte intocados no Birmingham News, de onde Spider se demitira pouco depois da marcha de Selma para seguir carreira como fotógrafo de publicidade e colecionar clientes corporativos de peso. Passou a fazer parte do jet set da época e aceitou documentar a campanha presidencial do truculento George Wallace em 1968.
Wallace, como se sabe, foi o governador do Alabama que cunhara a frase “segregação agora, segregação amanhã, segregação sempre”. “Não voto no senhor, mas aceito seu dinheiro”, lhe disse o autor das imagens que três anos antes haviam impulsionado o direito de votar do negro americano. “O que diferencia o material de Martin do de tantos profissionais que documentaram o movimento dos direitos civis é que ele testemunhou o ‘Domingo sangrento'”, explica o diretor do Centro Briscoe, Don Carleton. Várias dessas imagens foram utilizadas para definir o ângulo e o enquadramento de algumas cenas em Selma, o premiado filme de Ava DuVernay.
Foram três as chamadas Marchas de Selma-Montgomery. A primeira não passara da ponte Edmund Pettus e deixara um rastro de sangue. Da segunda, ocorrida dois dias depois, sobrara um sentimento de frustração e abandono para os participantes. Liderados por Luther King, que não participara do “Domingo sangrento”, 2,5 mil ativistas seguiram em fila dupla até o local onde a primeira caminhada fora abortada pela força. Uma vez chegados no alto da ponte que porta o nome de um líder do Klu Klux Klan do século 19, viram o reverendo ajoelhar-se, orar, dar meia volta e ordenar a todos que retornassem para evitar novo confronto com as tropas. King anunciou que a arrancada até Montgomery, a capital do Estado situada a 85 km de Selma, se realizaria em época mais propícia.
Na noite daquela “Terça-feira da meia-volta” (Turnaround Tuesday), James Reeb, um pastor branco que saíra de Washington para participar do movimento, foi espancado com porrete por simpatizantes do KKK ao sair de um restaurante multirracial de Selma. Levado inconsciente a um hospital da cidade, ele se transformou no ponto fora da curva.
A morte do jovem negro Jimmie Lee Jackson, ocorrida no mês anterior, aprofundara a indignação dos negros e consolidara os planos de uma marcha pelos direitos ao voto. Mas recebera escassa atenção nacional. A violência contra o branco Reeb, de 38 anos, galvanizou a nação por inteiro e levou a elite dos Estados Unidos a dar mais de 50 telefonemas ao presidente Lyndon Johnson, instando-o a fazer algo. Todos queriam notícias de seu estado de saúde.
Consta do acervo da Biblioteca Lyndon Johnson a transcrição de um telefonema da Casa Branca para o procurador-geral Nicholas Katzenbach, que ilustra a preocupação do presidente:
Johnson: – Esse reverendo vai morrer, não é?
Katzenbach: – Vai.
Johnson: – A que horas você acha que ele vai morrer?
Katzenbach: – Me disseram que ele ainda pode viver umas 24 ou 36 horas.
Reeb morreu dois dias depois de internado, sem recobrar consciência. E deu a Johnson o momento mais propício para agir. No dia 15 de março daquele tumultuado ano de 1965, pronunciou seu histórico discurso televisionado em sessão plena do Congresso, pedindo a aprovação da Lei do Direito ao Voto na qual vinha trabalhando há tempos. Obteve o que queria invocando a morte de Reeb: “Na semana passada, depois de participar de uma marcha pacífica… um homem de Deus foi morto. Todos devemos superar os tempos de preconceito e injustiça. We shall overcome…”. Nenhuma referência a Jimmie Lee Jackson. Em suas memórias, Martin Luther King registrou a discrepância: “A ausência de qualquer referência a Jimmie Lee Jackson apenas reforça a constatação de que para o branco americano a vida de um negro é insignificante e sem sentido”.
Depois do “Domingo sangrento”, da “Terça-feira da meia-volta” e do discurso do presidente, a grande imprensa do país e do exterior desembarcou em massa na pequena Selma para não perder a terceira marcha – essa sim, fadada ao êxito. Assim como Lyndon Johnson, Martin Luther King soube esperar pela hora certa.
Stephen Somerstein era um estudante de Física de 24 anos do curso noturno no City College de Nova York quando decidiu embarcar no ônibus que o levaria ao Sul para registrar a grande revolução social de sua geração. Como editor de fotografia do jornal da universidade, achou que devia testemunhar. Desembarcou em Selma com cinco câmeras penduradas no pescoço e os dez únicos rolos de filme que conseguiu arrebanhar na faculdade. Estava, portanto, limitado a fazer 400 imagens naqueles tempos anteriores ao cartão de memória e à câmera digital.
Somerstein só se deu conta da real dimensão da marcha quando já estava lá e teve dificuldade em não ser soterrado por esse peso. “O risco estava em se sentir heroico, seduzido pelo papel de protagonista, e perder o foco”, declarou em palestra recente na Historical Society de Nova York, onde 55 de suas imagens estão expostas até julho de 2015.
Foi somente ao se aposentar da carreira científica em 2008, aos 67 anos, que Stephen Somerstein decidiu revisitar seu trabalho de fotojornalista amador. Deu-se conta do valor histórico do material que captara – famílias multi-geracionais e multirraciais marchando pela Rota 80, a esperança no olhar e o cansaço no corpo dos moradores negros que observavam a marcha em silêncio, o participante que caminhou cinco dias envergando uma tabuleta de madeira com a inscrição “Eu sou um homem”, o escárnio de pitboys brancos, flagrantes inesperados de James Baldwin, Joan Baez, do próprio Martin Luther King. É dele a foto ícone do reverendo de costas, falando para a maré humana aglomerada na praça central de Montgomery . Cada frame tinha de ser perfeito, ele não podia desperdiçar filme. Os 30 segundos em que esteve posicionado atrás de Luther King renderam a imagem que aparece no minuto 26 de “Selma” e se transformou no cartaz promocional do filme.
Durante os cinco dias da marcha até a sede do governo de Alabama, o estudante de Física produziu uma espécie de diário visual cuja qualidade surpreendeu até mesmo os grandes nomes do fotojornalismo da época. Somerstein chegou a vender algumas imagens para a revista dominical do New York Times, para a rede pública de televisão e para alguns colecionadores. Mas seguiu em frente na vida e foi trabalhar na construção de satélites espaciais do Observatório Astrofísico Harvard-Smithsonian e na Lockheed Martin Co.
Somerstein atribui a qualidade de suas fotos da época às excepcionais condições de luz natural que encontrou: havia chovido nos dias anteriores e o céu estava nublado, proporcionando uma luminosidade natural e constante. Isso permitiu que ele não precisasse mudar a toda hora os parâmetros de luz e velocidade para nivelar as sombras e os claros contrastantes.
Ele também acredita que suas fotos adquiriram valor maior com o passar do tempo, devido ao seu significado histórico. “Uma imagem pode ser tecnicamente perfeita e lindamente composta sem que se torne nada além disso”, diz ele. Em reportagem sobre a atual mostra de Somerstein, a BBC sugere que olhemos para as fotos feitas em 2015 sobre os protestos em Ferguson e em Hong Kong imaginando o seu valor histórico dentro de meio século.
Na galeria Steven Kasher de Nova York, a mostra Selma, Março de 1965 exibe até meados de abril o trabalho de três documentaristas dos protestos: Spider Martin, Charles Moore e James Barker. Dos três, Moore é o único que desembarcou em Selma já consagrado pela bíblia do fotojornalismo da época, a revista Life.
Ele captara o instante certo da prisão de Luther King em Montgomery, no ano de 1958; a integração do estudante negro James Meredith na Universidade do Mississippi diante de uma massa branca cuspindo ódio em 1962; o atiçamento dos cães policiais do comissário Eugene “Bull”Connor, na Birmingham de 1963, contra manifestantes negros desarmados. O conjunto de sua cobertura do Movimento pelos Direitos Civis já fora premiado como seminal para a história da Fotografia americana. Portanto não foi novidade quando esse filho de reverendo batista desembarcou em Selma jogando seu olhar maduro sobre mais um capítulo da história. Como sulista, ele aprendera cedo a evitar qualquer confronto com as forças da ordem. Sua tarefa era documentar, não ser preso. “Deixei que me pisoteassem, me empurrassem, me puxassem pelo cabelo e ameaçassem quebrar minha câmera, mas sempre continuei a fotografar”, ensinou ele. Suas fotos mais celebradas foram feitas em menos de três segundos. “Os maiores fotógrafos vêem a imagem antes de clicá-las”, garante Paul Hendrickson, autor de “Filhos do Mississippi: Uma história de raça e legado”.
Já James Barker, que divide a mostra da galeria nova-iorquina com Charles Moore e Spider Martin, caiu de paraquedas em Selma. Trabalhava na Divisão de Pesquisa Industrial da universidade do Estado de Washington ao ser informado que fora sorteado para representar sua faculdade na marcha final de Martin Luther King. Teve apenas um dia para se organizar. Pegou todos os rolos de filme que encontrou na geladeira e levou consigo apenas uma Leica com grande angular média, para otimizar deslocamentos e liberdade de movimento. Propôs-se a documentar somente as entranhas da marcha, como observador participante, não como repórter fotográfico focando de fora para dentro.
Enfiou-se no meio das 3,2 mil pessoas que iniciaram a marcha de cinco dias no dia 21 de março. Por acordo entre os organizadores e as autoridades do Alabama, a massa precisou ficar reduzida a 300 participantes nos trechos rurais da caminhada. E engrossaria novamente para 25 mil pessoas ao atingir as franjas urbanas de Montgomery. Apesar de ser branco e ter espichado para 1,90m de altura, Barker tinha a habilidade de não se fazer notar . O segredo? “Tento captar momentos de interação e expressão humanas tomando o cuidado de jamais fazer contato visual com quem fotografo”, explicou. “Se você não cruzar o olhar com quem vai fotografar a pessoa tende a ignorar que você está por perto.”
A chegada da corrente humana a seu destino deu-se em meio a um dilúvio bíblico. Barker reservou seu último frame para um grupo de jovens negros cantando na chuva. “Achei que o retrato daquela garotada feliz traduzia o que vi e senti”, explicou mais tarde à revista do Smithsonian Institution.
Veteranos testados na profissão ou amadores designados pelo acaso como testemunhas da História, Spider Martin, Stephen Somerstein, Charles Moore e James Barker eram todos brancos, como a grande maioria dos fotógrafos que se consagraram na época. Embora seus estilos, enquadramento, técnica, foco e linguagem tenham assinatura pessoal, eles têm em comum a forma convencional de eludir a dificuldade de dar vida à cor da pele negra: calibrando os meios-tons, clareando os claros e contrastando as sombras.
Quem chama atenção para essa questão é o escritor, historiador de arte e fotógrafo americano de origem nigeriana Teju Cole. Em recente artigo para a revista do New York Times, Cole explica que parte do problema deve ser atribuída às emulsões utilizadas na fabricação de filmes. Tomava-se como referência as tonalidades de pele da pessoa branca para fazer a calibragem dessas emulsões – portanto com sensibilidade baixa para variações de marrons, vermelhos e amarelos. Os fotômetros tinham viés semelhante – sua configuração “normal” visava a pele branca. Ainda em 2009, a tecnologia de reconhecimento facial em webcams da marca HB apresentava dificuldade em reconhecer rostos negros.
É com esse pano de fundo que vale concluir com uma referência a Roy DeCarava, considerado o mais poético, denso e instigante fotógrafo negro do século passado. Nascido no Harlem, DeCarava estudou pintura, escultura e arquitetura no prestigioso Cooper Union Institute antes de se dedicar à fotografia como arte. Encarou de frente o desafio de captar em imagem o que é negritude e deixou uma obra de tirar o fôlego, carregada de melancolia e profundidade.
A jovem negra retratada em Manifestante pela liberdade em Mississippi, Washington D.C., 1963 serve de exercício fascinante para se mergulhar na arte de DeCarava. Como escreveu Teju Cole, essa foto exige uma exploração das reticências: “Ao invés de contrastar a negritude, ele a escurece ainda mais. O que é escuro nada tem de vazio, está repleto de uma luz contida que, quando olhada com a paciência que merece, leva o observador à glória”.///
Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.
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