O meme despido pela imagem histórica
Publicado em: 12 de abril de 2021
Em dezembro de 2020, Leo Índio, primo dos filhos de Bolsonaro, publicou em uma de suas redes sociais um meme com uma montagem feita a partir da emblemática foto de Evandro Teixeira, que mostra um estudante indo ao chão enquanto é perseguido por dois policiais. A foto original foi feita em 1968 durante uma manifestação contra a ditadura ocorrida no centro do Rio de Janeiro. Esse dia ficou conhecido como “Sexta-Feira Sangrenta” e, conforme o Centro de Documentação de História Contemporânea da FGV, deixou um saldo de 28 mortos. A montagem postada por Leo Índio acrescenta a figura de Jair Bolsonaro, fotografado na véspera, no momento em que marcava um gol durante um jogo amistoso de futebol na Vila Belmiro. Nada amistosa, a leitura produzida é a de que o presidente estaria, ele próprio, derrubando o manifestante com uma rasteira.
O meme de Leo Índio é ofensivo para qualquer pessoa que cultive alguma memória ou sensibilidade histórica. Ao ignorar voluntariamente o contexto de violência denunciado na foto de Evandro Teixeira, a ironia acrescenta nova dose de perversidade à cena. E, levando em conta a importância do trabalho do autor, a montagem macula não apenas uma história contada pela fotografia, mas também a história da fotografia. Fotógrafos, veículos da imprensa e também o Instituto Moreira Salles, que detém os direitos patrimoniais da foto de Evandro Teixeira, manifestaram repudio à publicação.
O absurdo existe apenas sob a nossa perspectiva. Quem compartilha um meme executa um gesto sem grande pretensão de singularidade, um fragmento de distração que não reivindica nem autoria, nem grande responsabilidade sob a mensagem produzida. Mas, produzido e disseminado em massa, constitui um fluxo estratégico de informação que tem sua eficácia.
Preenchimento de espaços
A consciência de que a história é constituída não tanto de fatos, mas de discursos construídos em torno deles, leva a produção de narrativas para a linha de frente das disputas políticas. Não se diz mais que “alguém está mentindo”, se diz que “está impondo uma narrativa”. Sem dúvida, a imagem tem um papel importante nesse embate.
É saudável supor que a realidade pode ser interpretada e descrita de modos diversos, mas essa relativização abre espaço para abusos e riscos. Numa espécie de revisionismo preventivo, negocia-se em tempo real a história que será contada no futuro. E, mais do que isso, a narrativa tem o poder performativo de conduzir os acontecimentos na direção daquilo que é narrado, ou seja, de produzir o futuro.
Nessa economia de guerra das narrativas qualquer estilhaço de informação tem sua importância. Uma piada, cujo efeito é uma gargalhada breve que reverbera nas redes, não é algo a se desperdiçar. Como disse Giselle Beiguelman, um meme, com sua força de disseminação, produz “uma espécie de comentário à queima-roupa de todos os acontecimentos cotidianos, constituindo um noticiário paralelo, baseado em imagens” (Ocupar os memes é preciso, 2018).
Um parêntese sobre o termo: durante muito tempo, tive dificuldade de entender como essas postagens tão efêmeras que circulam pela internet chegaram a merecer o nome de “meme”. Imaginava que a palavra derivasse do grego mneme, isto é, memória. Mas não, vem de mimeme, imitação. A origem do termo é unanimemente atribuída ao biólogo Richard Dawkins, que concebeu a hipótese de um “replicador” equivalente ao gene, mas que, em vez de determinar traços biológicos por hereditariedade, transmite referências culturais por imitação. Por exemplo, “melodias, ideias, slogans, modas do vestuário, maneiras de fazer potes ou de construir arcos”, mas também valores mais perenes, como a crença num deus (O gene egoísta, 1976). A confusão que fiz foi de algum modo prevista por Dawkins. Ao nomear o meme, ele admite fazer uma adaptação forçosa da palavra mimeme, justamente para aproximá-la da sonoridade de gene. E, com alguma ironia, sugere: “se servir de consolo, pode-se, alternativamente, pensar que a palavra está associada à memória”. Afinal, na hipótese de Dawkins o meme tem suas estratégias de longevidade, ela dá ao conteúdo que replica um “valor de sobrevivência”. Ou seja, não deixa de constituir uma memória por imitação. Em sua versão para a internet, o meme se multiplica com rapidez, mas não tem a pretensão de durar.
No contexto de uma guerra política, a função dos memes é preencher um espaço. Sua eficácia não está tanto no que diz, mas no fluxo que alimenta. As fakenews, que também participam desse processo, podem produzir danos mais duradouros e, portanto, uma memória. De modo geral, os memes não esperam tanto. Eles compõem uma linguagem-espasmo que geram movimento independentemente de produzir sentido.
A ironia dos memes pode ser bastante gratuita. Ao contrário das charges, os memes políticos não precisam explicar, não precisam analisar coisa alguma. Produzem “ataques de riso”, também no sentido mais tradicional dessa expressão: gargalhadas que se autodisseminam até o ponto em que ninguém mais se lembra do que está rindo. Mesmo que haja sobreposições e intercâmbios, e que um possa ocupar o espaço do outro, a charge mais eficaz é mais sutil e contundente. O meme é espalhafatoso e viral (spreadable, como prefere o marketing quando a palavra “viral” impõe literalidade).
Sua força está no poder de agitação das redes que se constituem a partir de afinidades ideológicas. Por si só, os memes não são capazes de produzir essas afinidades, mas ajudam a mapeá-la, incluindo ou excluindo aqueles que acham ou não acham graça. Assim, eles participam da construção de bolhas dentro das quais a ironia apenas atiça e reforça uma visão de mundo já consolidada. Por isso, erros, sejam de informação, de contexto ou de ortografia, são irrelevantes. O que está dito só é importante para aquele que está fora da bolha e que se sente indignado pela inadequação da mensagem, justamente porque é, direta ou indiretamente, alvo da piada.
A disseminação de memes não é um privilégio desta ou daquela vertente ideológica, ele não é menos ou mais relevante conforme o lado a que sirva. Mas encontra sua maior eficácia quando o esquecimento e a dessensibilização se tornam estratégicas. É assim que eles participam do processo de negação da história e da ciência, ou que ajudam a fazer de armas, discriminação e intolerância uma pauta cristã. Para aqueles que esperam fazer um uso mais responsável desse recurso, essa é uma guerra perdida.
Há personagens que se confundem com seus memes e que se beneficiam de seu poder. Leo Índio que, como empreendedor, transformou uma sala comercial no centro do Rio no hostel Oca do Índio, é ele mesmo uma montagem de mau gosto, sobretudo considerando o lugar dado às comunidades indígenas nas políticas do governo com o qual colabora. Quando seu hostel faliu, ele deixou de ser apenas um membro informal do gabinete do ódio e ganhou um cargo oficial no Senado (Revista Isto É, 31/05/19).
Outro exemplo mais significativo: “estou vibrando de excitação, amigos. Nós realmente elegemos um meme”, dizia uma postagem no 4Chan, fórum norte-americano de extrema direita, muito ativo na campanha que elegeu Donald Trump. Segundo o escritor Dave Beran, o 4Chan inventou o meme tal como o utilizamos hoje (Ilustríssima, 19/03/2017). Não há nada de ingênuo na atuação politica do grupo, mas essa afirmação porta uma honestidade arrogante que se autodenuncia. Tanto que a frase acabou sendo apropriada pela oposição, inclusive no Brasil, referindo-se ao processo correlato que levou à eleição de Bolsonaro.
Resistência da história
Analisando a retórica das imagens veiculadas pela família e pela cúpula de Bolsonaro, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz identifica uma série de aproximações ao imaginário fascista. São construções premeditadas, “um projeto estético”, conforme ela observa (Bolsonaro e seu reino: retóricas visuais do poder, 2020). Eu acrescentaria que esse projeto é um exemplo dessa mesma honestidade sintomática convocada pelas referências históricas citadas e parodiadas, que desnudam filiações mal assumidas. Afinal, será sempre mais confortável negar o que essa retórica afirma, mesmo que para isso seja preciso fazer novas contorções da história. Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores recém demitido do governo Bolsonaro, afirmou numa entrevista que “nazismo e fascismo são fenômenos de esquerda”. Por sua vez, Bolsonaro disse não restar dúvidas sobre isso. As imagens devolvem as coisas a suas devidas relações com a história.
Entre os casos analisados por Schwarcs está o discurso do ex-secretário da cultura (16/01/2020), Roberto Alvim, que reproduziu com uma fidelidade habilidosa um discurso de Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. Apesar de paródico, não é um meme porque se pretende sério. Uma vez que reconhecemos o cenário, o figurino, a cadência e o tom da fala, a música de fundo e trechos literais da fala de Goebbels, a historiadora constata que “não há espaço para o azar, para o acaso ou a mera coincidência”. Antes de se converter à extrema direita, Alvim era um profissional do teatro e, sem dúvida, tem domínio do texto e da cena. Aquela foi a chance que encontrou de pleitear para a pasta da cultura – um apêndice burocrático que restou do desmonte do antigo ministério – algum protagonismo dentro do projeto bolsonarista. Era para ser uma homenagem ao chefe, mas sua falta de sutileza foi constrangedora e custou sua demissão. Minha hipótese – ao menos, minha esperança – é a de que a memória convocada pela imagem histórica acaba por trair uma retórica cuja eficiência está calcada no apagamento das referências que utiliza.
Uma questão particular levantada pelo meme de Leo Índio diz respeito justamente ao uso de uma imagem histórica. Toda foto que se torna icônica está sujeita a apropriações que a deslocam de seu contexto e de sua autoria. Um artigo dos historiadores Ana Maira Mauad e Maurício Lissovsky, As mil e uma mortes de um estudante: foto-ícones e história fotográfica (2021), dá conta de uma série de descaminhos tomados por essa foto, incluindo memes, mas também usos imprecisos feitos pela grande imprensa. Concluem que “a força simbólica dos foto-ícones é, pois, também sua fragilidade (…) pois suas ressignificações participam das disputas pelo sentido da História”.
De fato, uma imagem só alcança tal poder de abstração – isto é, a capacidade de representar de modo generalista uma experiência histórica – à medida que se descole do fato pontual que registra. Mas gostaria de seguir numa outra direção: pensar uma espécie de efeito rebote, o retorno de uma empatia recalcada na imagem que lhe dá a capacidade de interpretar o gesto que a reinterpreta, de impor o sentido de seu contexto sobre o gesto que a descontextualiza.
Essa não foi a primeira vez que a militância bolsonarista recorreu à foto de Evandro Teixeira. Em 2018, outra montagem substituiu o rosto do estudante pelo de Lula, com a seguinte legenda: “Anos 60 / 70. Esta foto não tem preço… o vagabundo do Lula apanhando”. Essa informação, que adquire o estatuto de fakenews, foi rapidamente corrigida pelos serviços de checagem de notícias. Mas não é de se duvidar que a postagem de Leo Índio estivesse ainda contaminada pelo imaginário construído por ela: talvez fosse Lula o personagem que Leo Índio gostaria de ver Bolsonaro derrubando. Esse seria o gol que sua militância gostaria que ele marcasse. A mentira e a ironia têm sempre algo de verdadeiro, ao menos, no que diz respeito ao desejo que a move.
O meme veiculado por Leo Índio demonstra total falta de solenidade com uma violência histórica que, no entanto, a militância bolsonarista não reconhece. Várias das notas de repúdio a essa imagem lembraram que essa postagem aconteceu no mesmo dia em que o presidente lançou dúvidas sobre a tortura sofrida por Dilma Roussef, quando foi presa em 1970. Mas a montagem desnuda uma contradição: ela celebra aquilo que é negado. Seu subtexto é: “mereceram que isso acontecesse, apesar de nunca ter acontecido”. Aqui também uma honestidade sintomática que se autodenuncia.
Os discursos dessa militância – e, não raramente, do próprio presidente – oscilam entre negar a ditadura e dizer que ela foi necessária, entre admitir a ditadura e negar o uso de seus instrumentos, entre fazer desfilar a palavra democracia e supor o golpe – o de 1964 e o que desejam para o presente – como única forma de garanti-la. Esse meme dissolve toda a contradição e coloca as coisas em seu devido lugar, em seus devidos engajamentos, revela o gozo de uma violência que tem outra razão além do direito reivindicado de usá-la contra o inimigo. Há uma verdade nessa montagem: nela, o presidente está onde deseja, onde de algum modo sempre esteve. Isso não representa qualquer constrangimento para a militância que não apenas está identificada com essas contradições, mas é movida por elas. Mas, para os olhares que ainda cultivam alguma sutileza, ela indica um elemento de resistência que a imagem histórica infiltra nos discursos que a distorcem.
Na polarização política que vivemos, as metralhadoras giratórias do riso gratuito não estão distribuídas de forma igualitária. Por isso, a guerra dos memes está perdida. A não ser que esse riso seja desconstruído pela contraironia certeira da história. ///
Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.
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