Documento de barbárie, arquivo de resistência
Publicado em: 24 de abril de 2017No dia 17 de abril de 2016, a Câmara dos Deputados do Brasil votou majoritariamente – em sessão transmitida ao vivo pela televisão para mais de 100 milhões de espectadores – pela admissibilidade do processo de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff. Foram 367 votos a favor da continuação do procedimento e apenas 137 contra seu envio ao Senado Federal. Na falta de evidências que embasassem legalmente o pedido de impedimento, não espanta que a maior parte das declarações de voto favoráveis ao seguimento do processo tenha evitado fazer referências às acusações formais lançadas contra a presidenta. Em vez de argumentos, o que as falas de muitos deputados despudoradamente revelaram foram os valores que efetivamente regem ou ancoram o comportamento e as decisões de porção significativa do parlamento brasileiro na atualidade. Valores que pouco têm a ver com os preceitos que dão fundamento à República brasileira, tais como a laicidade do Estado e a impessoalidade dos atos daqueles que ocupam posições em qualquer um dos seus três poderes. O que deveria ser assunto público se mostrava, ali, ser coisa mediada por relações próprias do campo do indivíduo: consanguinidade, fé e afeição. Valores não-republicanos que foram brandidos, por diversas vezes naquela sessão, com o auxílio simbólico da bandeira do Brasil, agitada nas mãos ou posta sobre os ombros dos votantes como se fosse uma espécie de manto pátrio.
Diante de tão flagrante contradição entre princípios e signos, a artista Marilá Dardot produziu, poucas semanas após a votação, um trabalho apropriadamente chamado A República, formado por três bandeiras em preto e branco que destacam, separadamente, as principais formas geométricas que constituem o estandarte brasileiro: um retângulo, um losango e um círculo. Cada uma dessas formas foi preenchida, nessas bandeiras, pela sobreposição gráfica da transcrição dos votos dos deputados que, para justificá-los, apelavam à família, a Deus e aos amigos. De modo sintético, a artista sugere a criação de um pavilhão nacional que, transformado em tríptico, afirme de modo claro o que move e informa os atos da maior parte da classe política no Brasil. Uma bandeira apropriada para tempos sombrios.
As consequências imediatas da votação do dia 17 de abril foram, como é sabido, o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff e a tomada do poder pelo seu até então vice-presidente, talvez o principal articulador para a deposição do governo do qual supostamente era parte. No dia 12 de maio do mesmo ano, Michel Temer assumiu interinamente a Presidência da República e empossou seus 23 novos ministros, em cerimônia que, tal como a vexatória sessão da Câmera dos Deputados fizera menos de um mês antes, escancarou, sem ambiguidades, traços definidores dos que ainda exercem o poder de fato no Brasil. As imagens do aglomerado de pessoas em torno da mesa onde o então presidente interino e os ministros firmavam seus nomes nos documentos mostram um grupo homogêneo de pessoas claramente autossatisfeitas com o fato de terem alcançado aquela posição, pouco importando o controverso caminho trilhado até chegarem ali.
No trabalho que faz logo em seguida a esse ato e ao qual deu o nome de Tratado, a artista Clara Ianni destaca duas das principais características daquele grupo, reveladoras do governo que se instalava naquele momento. Em 23 dípticos fotográficos, a artista associou as imagens – apropriadas da cobertura jornalística do evento – das mãos do presidente interino e das mãos de cada um dos ministros que entravam no governo, no momento exato em que assinavam os termos de posse das pastas. A indumentária que monotonamente aparece envolvendo os braços dos signatários em todas as cenas tomadas – paletó de tecido escuro – sugere, de imediato, a ausência de mulheres no primeiro escalão do governo Michel Temer, situação que não o constrangeu em nada quando foi com ela confrontado. Clara Ianni, contudo, vai além em sua análise crítica de signos e cria, acima e abaixo dessas fotografias, um campo cromático equivalente à cor de pele daqueles que assinavam os documentos. Estabelece, por meio desse procedimento, espécie de cartela tonal que comenta, em termos puramente visuais, o fato de não haver um único ministro negro no gabinete do presidente interino.
O anúncio dos 23 ministérios confirmou também, por exclusão, a decisão de Michel Temer de extinguir o Ministério da Cultura, em sintomática demonstração do quão pouco apreço dispensa ao campo de produção de sentidos. Essa medida foi rechaçada de imediato por artistas, produtores culturais e todos aqueles que se viram por ela diretamente atingidos, levando a uma reação em rede que incluiu manifestações de rua e ocupações de órgãos públicos federais associados ao Ministério extinto, como as sedes regionais da Funarte (Fundação Nacional de Arte) em diversas cidades do país. A repercussão dessas ações surtiu efeito e a decisão de acabar com o Ministério da Cultura foi revertida, embora a mobilização daí advinda não tenha se estancado nessa demanda urgente, tendo se desdobrado, ao longo dos meses seguintes, em muitos gestos político-artísticos contrários ao afastamento da presidenta eleita e a muito do que está violentamente implicado nessa ruptura.
Entre as iniciativas de maior visibilidade e abrangência no campo das artes esteve o autodenominado Aparelhamento, surgido no processo de ocupação da sede da Funarte em São Paulo e definido, em manifesto lançado em julho de 2016, como um “grupo aberto de pessoas doando seu tempo, pensamentos, ideias e poéticas no intuito de gerar questionamentos e fundos para ações contra o GOLPE de Estado em curso no Brasil”. O Aparelhamento se estruturou, como projeto estendido no tempo e de alcance geográfico amplo, por meio da organização de um leilão de arte para o qual terminaram contribuindo 260 artistas de todas as regiões do Brasil, que concordaram em estabelecer preços inferiores aos praticados pelo mercado de arte na comercialização de seus trabalhos, além de destinarem todo o valor arrecadado com as vendas para o financiamento de ações definidas pelo coletivo. Embora não houvesse imposição alguma de temas para as contribuições feitas pelos artistas – a “poética é o CONTRAGOLPE”, dizia o manifesto, dispondo-se a receber qualquer tipo de contribuição –, é evidente que vários dos trabalhos cedidos foram produzidos tendo como referência imediata os acontecimentos políticos recentes, gerando um conjunto de imagens e formas que se contrapunham àquelas construídas, direta ou indiretamente, pelo recém-instalado governo. Nesse sentido, um dos trabalhos mais bem-sucedidos do conjunto leiloado – pelo teor crítico, humor ácido, reprodutibilidade infinita e capacidade de articular conteúdo e forma – foi o de autoria de Roosivelt Pinheiro: um pano de chão usado serigrafado com a imagem do rosto de Michel Temer olhando intimidado para o alto e a palavra GOLPISTA escrita logo abaixo. Arte para ser usada até se transformar em relíquia rota e emblema de uma estranha época.
O resultado monetário do leilão das obras reunidas pelo Aparelhamento – ocorrido na própria sede da Funarte – permitiu a realização de uma série de outras ações poético-políticas, escolhidas pelos membros do grupo a partir de discussões que assumiam o conflito como parte do aprendizado de quem trabalha com o outro e em rede. Algumas das ações foram anunciadas e assumidas pelo coletivo, enquanto outras foram feitas silenciosa e anonimamente; algumas foram inseridas no contexto propriamente artístico, enquanto outras foram inscritas em campos mais abertos de disputas; algumas foram mais exitosas em seu intento, enquanto outras escaparam às expectativas criadas no início. Talvez o que mais importe, contudo, é que tanto os atos efetivamente realizados no âmbito do Aparelhamento como os processos de negociação que levaram à sua consecução (e, consequentemente, ao descarte de outros projetos possíveis) são formas de resistir, como prática pública e de subjetivação democrática, a um governo autoritário. Formas de inventar e confundir arte e política.O período final do processo de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff coincidiu com os jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, convenientemente dividindo a atenção da imprensa do país entre os dois fatos ao longo de duas semanas do mês de agosto de 2016. A sobreposição de calendários – forçada por aqueles que detinham o poder para fazê-lo no Senado Federal – favorecia, evidentemente, o acobertamento de um processo de julgamento viciado e de resultado previamente sabido, independentemente da culpa não provada da ré. O ambiente farsesco e diversionista então criado foi explorado por Dora Longo Bahia na série chamada Olimpíadas, apresentada em 2017. O trabalho é formado por 16 trípticos, cada um deles composto pelas capas de um mesmo dia de três jornais de São Paulo, cidade onde mora: O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Agora São Paulo. O período demarcado pelas capas é o da realização dos jogos, perfazendo um total de 48 páginas de jornais. Sobre cada uma delas, a artista pinta um palhaço diferente e colorido, encobrindo parte das notícias impressas, mas deixando entrever a partição entre política e esporte que quase dominava as manchetes escritas naqueles dias. Valendo-se dessa figura comumente associada ao riso, Dora Longo Bahia estabelece um comentário soturno sobre o sitiado espaço público do Brasil, tornando cada capa de jornal pintada em uma espécie de espelho para quem teve o seu voto para a Presidência da República cassado por um processo de impedimento sem ancoragem em comprovação de fatos.
Entre tantas mais imagens que surgem no meio artístico em resposta ao que se tem passado no Brasil desde o fim de 2015, algumas das mais eloquentes estão contidas na extensa produção audiovisual do período. São muitos os filmes e vídeos que, exibidos na internet ou em salas de cinema improvisadas em cantos diversos do país, registram a repressão desmedida das polícias militares dos Estados – solidárias na imposição violenta da vontade das forças mais regressivas que habitam hoje o Brasil – àqueles que teimam em não se submeter ao arbítrio instalado e insistem em manifestar-se a esse respeito abertamente nas ruas. Mas em vez de citar alguns poucos dentre tantos desses documentos da barbárie em curso que têm sido feitos tanto individual quanto coletivamente em tempos recentes, talvez o que mais importe aqui seja apontar o fato de eles todos constituírem, junto com tantos mais trabalhos realizados em outras mídias, o esboço de um arquivo de resistência. Arquivo vivo por onde ressoam desejo, medo, alegria, dor, possibilidades e interdições. Arquivo que muitas vezes borra quaisquer limites que possam existir entre arte e política e que continuará crescendo na medida e na potência necessárias para contrapor-se ao desmanche conservador do país. Por último, mas não por isso menos importante, Fora Temer.///
Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010) e Local/global: Arte em trânsito (2005), entre outros volumes e ensaios em livros.
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