Claudia Andujar – no lugar do outro

O corpo, a cabeça e os adeuses

Miguel Del Castillo Publicado em: 19 de outubro de 2015

A quem pertence esta cabeça que parece descolada do corpo, envolta por uma leve penumbra?

Considerando o tamanho do Brasil, pode-se dizer que é um país praticamente sem trens – o rodoviarismo de Juscelino Kubitschek e daqueles que o sucederam não deu muitas chances para o transporte sobre trilhos. Mas poucos comboios de passageiros foram tão marcantes na história da nação como o chamado “trem baiano”, que Claudia Andujar fotografou para uma reportagem da revista Realidade, em 1969. Os vagões levavam sobretudo migrantes que haviam ido a São Paulo tentar ganhar a vida e que, por um motivo ou outro, fracassaram, recebendo então do Departamento de Imigração e Colonização da Secretaria da Agricultura uma passagem de volta nos trens cujo destino final era Salvador, com muitas escalas pelo caminho.

Andujar retratou muitos passageiros, mas só neste da imagem acima há essa qualidade quase surrealista: uma cabeça fora do corpo. O corpo deitado e contorcido e os olhos fechados parecem demonstrar cansaço. Ele dorme? Pensa? Ou terá adoecido? Está bem arrumado, usa paletó, mas o pé é coberto apenas por uma meia, e não há sapato à vista. A mão e o braço poderiam apoiar a cabeça, porém se limitam a desenhar com ela uma linha na foto, quase perpendicular àquela formada pelo corpo, diagonais que lembram os oblíquos caminhos de ida e de volta.

A novela Los adioses (Os adeuses, 1954, sem edição no Brasil), do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-94), tem uma temática semelhante e inversa à história registrada por Andujar: se o trem baiano despejava os migrantes de volta em suas cidades de origem, o livro de Onetti é ambientado numa localidade na montanha onde muitos tuberculosos vão para tentar se curar. O narrador em primeira pessoa é o dono da mercearia local, ex-tuberculoso; observador perspicaz, é famoso por conseguir discernir se os recém-chegados vão se curar ou não, tão logo os vê. A doença acaba sendo o que estrutura aquela sociedade e revela muito a respeito de cada indivíduo – tanto pacientes como enfermeiros, médicos e empregados dos hotéis. Essa observação da realidade movimenta a história, centrada num forasteiro misterioso que fala pouco e desafia a habilidade do dono da mercearia. Estática à primeira vista, a atmosfera melancólica do livro é destrinchada por Onetti de tal forma que resulta numa novela dinâmica – embora seu narrador praticamente não saia de trás do balcão.

Como o narrador de Los adioses, a fotógrafa observa a realidade do trem a partir da ótica de quem foi migrante – fugida da Hungria para a Suíça durante a Segunda Guerra Mundial, de lá para a independência em Nova York, e da capital cultural dos Estados Unidos para o reencontro com a mãe no Brasil, onde se estabelece em 1955 – e tenta, num primeiro momento, compreender através da câmera a realidade do país em que vive (como ela mesma já disse) e nesta série, catorze anos após ter chegado, carrega também em seu trabalho um forte teor político. As imagens que faz dos passageiros quase inertes movimentam aquela pequena sociedade, composta não de tuberculosos, mas de migrantes indesejáveis e sem “sorte”. A atmosfera no “trem do diabo”, como era chamado alternativamente, e na pequena cidade fictícia de Onetti não é outra senão de despedida: os adeuses. E eis a nossa versão do misterioso forasteiro do romance, estirado num banco na fotografia de Andujar, deixando-nos tantas perguntas:

“Queria ter visto do homem, na primeira vez que adentrou a mercearia, apenas as mãos; lentas, intimidadas e torpes, movimentando-se sem fé, compridas e ainda não tostadas, desculpando-se por sua maneira desinteressada. Fez algumas perguntas e tomou uma garrafa de cerveja, de pé, no canto mais sombrio do balcão […]. Queria ter visto apenas as mãos, me bastaria vê-las quando devolvi o troco de cem pesos e os dedos apertaram as notas, tentaram sem sucesso acomodá-las e, em seguida, resolvendo de repente, embolaram-nas e achataram-nas e esconderam-nas com pudor num bolso do paletó; bastaria-me ter visto aqueles movimentos sobre a madeira repleta de veios cheios de gordura e sujeira para saber que ele não iria se curar, que não tinha de onde tirar vontade para ser curado.”

Qual terá sido o destino deste corpo sem cabeça, desta cabeça sem corpo?

Houvesse internet quando esta fotografia foi publicada, meu palpite é que teria se tornado emblemática e, pelo menos no Brasil, viralizado. O migrante desesperançado, deslocado, contorcido, exaurido. O migrante que não pensa e vai, guiado pelo instinto do corpo, ou que pensa muito e carrega o corpo consigo, para depois voltar dividido, despedaçado. O migrante que perde a cabeça, ou que se perde em pensamentos obscuros, na penumbra. Tal é a potência política e de denúncia da fotografia de Claudia Andujar.

Mas ainda é tempo de resgatar esta imagem, que, embora menos tragicamente, nos remete àquela impossível de esquecer do menino Aylan Kurdi, estendido na areia de uma praia turca. E a um vídeo de um brasileiro hostilizando um imigrante haitiano no sul do país. E a um comentário recente de um policial no Facebook, defendendo que recebamos apenas crianças e mulheres sírias, já que os homens deveriam ficar e “lutar” por seu país contra o Estado Islâmico. E a tantas outras fotografias, vídeos e textos que surgem semanalmente, diariamente, fazendo-nos pensar como o Brasil trata e sempre tratou os imigrantes que recebe de fora, e também os que se deslocam por suas próprias entranhas.///

 

Miguel Del Castillo é escritor, autor de Restinga (Companhia das Letras, 2015, contos), tradutor e editor do site da revista ZUM.

A exposição Claudia Andujar, no lugar do outro está em cartaz no IMS-RJ até 15 de novembro. Saiba mais aqui.

 

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Claudia Andujar, no lugar do outro

Catálogo da exposição
Organização de Thyago Nogueira
Formato: 21 x 26 x 2cm
Número de páginas: 268
ISBN: 978-85-8346-025-1
Preço: R$ 129,90
Compre aqui
Leia trecho da entrevista publicada no catálogo

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