O turismo da desolação
Publicado em: 14 de setembro de 2015
Tudo começou com uma notícia curta na internet. Nos idos de 2008, o fotojornalista francês Ambroise Tézenas, então com 36 anos e uma carreira consolidada em publicações conceituadas como The New Yorker e The New York Times, prospectava novos projetos quando uma notícia sobre o Sri Lanka o intrigou. O fatídico trem da rota Colombo–Galle, engolido pelo tsunami que arrasara vários países do Oceano Índico em 2004, continuava no meio da selva para onde fora arremetido.
Considerado o maior desastre ferroviário da história em número de mortos, o trem trafegava superlotado pela costa sudeste do Sri Lanka, a menos de 200 metros do mar, quando foi ejetado dos trilhos por ondas dantescas, com todos a bordo – os 1700 pagantes e um número jamais sabido de clandestinos. Poucos se salvaram da asfixia na água enlameada que os aprisionou nos vagões.
Naquele 26 de dezembro de horror, um domingo em que os budistas comemorariam a lua cheia e os cristãos festejariam o fim de semana natalino, Tézenas passava férias justamente no Sri Lanka. Alojado numa parte mais elevada da ilha, passou uma semana cercado de morte, em meio a famílias que procuravam parentes e de cadáveres sem dono. A devastação humana e ambiental foi terrível. Impossível para ele esquecer “dos sobreviventes, estirados em leitos de hospital com olhar opaco, como a se perguntar se ainda existiam”.
Catástrofes naturais têm isso de desconcertante, brutal e cruel: não há culpado.
Quatro anos depois, ao ler que os vagões sinistrados continuavam no mesmo local e haviam se tornado lugar de peregrinação, o fotógrafo quis entender “o que levava pessoas a ir ao local onde vi tanta gente morta”, disse ao jornal Le Monde. “O que procuravam ali?”
Fez da busca por uma resposta o projeto fotográfico que lhe consumiu seis anos de labuta (2008-14) e ao qual deu o título de Turismo da desolação. Ou, na versão em inglês, Eu estive aqui. O Les Rencontres de La Photographie, o prestigioso festival de Arles cuja edição de 2015 se encerra este mês, dedicou uma de suas 35 mostras a esse trabalho. O evento de dois meses de duração e que contou com um apaixonado público de 85 mil visitantes não poderia ter escolhido tema mais oportuno. E que estava maduro para ser retratado.
Antes de partir a campo para a longa empreitada, Tézenas foi procurar o professor J. J. Lennon na Universidade de Glasgow. Criador do termo dark tourism, ou turismo mórbido, que há uma década designa a indústria de roteiros sombrios, Lennon o orientou na elaboração de um protocolo rígido e coerente para o projeto.
Para Tézenas, a chave foi abrir mão de suas prerrogativas de fotojornalista profissional e retratar o tema na condição de turista. De modo a não falsear a experiência, deveria limitar-se a fotografar o que era permitido aos demais visitantes, mesmo que a luz fosse estourada, o enquadramento, infeliz, e o tempo, insuficiente. Tézenas selecionou uma dúzia de locais simbólicos, inscreveu-se em excursões de grupo, pagou pelos ingressos, amargou filas e fotografou tudo a cores, como os companheiros de viagem. Jamais os retratou de forma atrevida nem buscou neles o insólito, como Martin Parr. Suas imagens são convencionais, pudicas e descritivas, feitas com câmera ostensiva. Nada de microcâmera.
A ideia, explicou ao Le Monde, era mostrar como a História está sendo oferecida aos não especialistas. Explorar o hiato entre a gravidade dos fatos ocorridos e a realidade trivial da atividade turística. O confronto irreconciliável, num mesmo espaço, entre o horror testemunhado por quem ali morreu e o cotidiano corriqueiro dos vivos munidos de tablets, guarda-chuvas e lanchinhos. “E se, sob o pretexto da memória, não estamos simplesmente na presença de um mercado da barbárie?”, pergunta o autor na introdução de Turismo da desolação, publicado em 2014.
Não que a curiosidade humana pelo espetáculo da morte seja nova. As lutas de gladiadores na Roma Antiga e as execuções públicas na Londres do século 15 sempre fizeram sucesso. A batalha de Waterloo de 1815 atraiu visitantes a partir da manhã seguinte. As decapitações de prisioneiros do Estado Islâmico e a imagem do menino Aylan ancorado sem vida à beira-mar causam horror, mas se tornam virais em nanossegundos. “Hoje, procura-se injetar um valor educativo a estes locais, como se eles pudessem impedir que a história se repita”, diz, sem grande convicção, o professor Lennon. A seu ver, visitar locais de genocídio jamais impediram outros genocídios. Esse tipo de turismo, com suas lojinhas de souvenirs e pequeno comércio adjacente, pode no máximo injetar algum benefício financeiro às economias locais que se recuperam de desastres.
Já existe até mesmo uma cadeira acadêmica voltada para a atividade. É o “comercialismo da morte”, define o dr. Philip Stone, diretor executivo do Institute for Dark Tourism Research da Universidade de Central Lancashire, na Inglaterra. E cita como exemplo o local em que o voo 93 se espatifou. “Pouco após a ocorrência, agricultores da região já se ofereciam para levar curiosos até os escombros. Hoje já existe ali um memorial formal. Da demanda inicial brotou um destino de excursão formal.”
Tézenas retratou um século 20 de desgraças. Do “tour do genocídio” em Ruanda à vida interrompida em Chernobyl, na Ucrânia; de Karostas Cietums, na Letônia, a única prisão militar da Europa aberta a turistas, à trilha do assassinato de J. F. Kennedy em Dallas, e muito mais. Captou nossa curiosidade ambígua por catástrofes com status de celebridade, sejam elas horrores industriais ambientais ou humanos. Sobretudo, Tézenas tomou o cuidado profissional de não condenar essa compulsão universal que mistura sincero interesse por história, voyeurismo e crescente facilidade de acesso. Excetuando-se a introdução escrita por J. J. Lennon para as 92 imagens contidas em Eu estive aqui, e uma breve apresentação do próprio fotografo, os demais textos explicativos das fotos foram todos extraídos das brochuras turísticas dos respectivos locais. Com isso, Tézenas pretendeu chamar-nos à reflexão sobre esse tipo de comportamento e busca.
Ele não é o único. É apenas quem fez melhor até agora. O cardápio de novos roteiros aumenta de forma consistente. Dois anos atrás, a notória penitenciária do estado da Pensilvânia, chamada de “os 19 hectares mais sangrentos da América”, inaugurou um programa de visitação pública à câmara de gás usada para execuções no passado. No Japão de hoje já há quem planeje transformar em destino turístico a usina nuclear de Fukushima, perigosamente danificada pelo tsunami que varreu o país em 2013. Teriam de aguardar mais um quarto de século, porém, já que o grau de radioatividade na área impede qualquer visitação em massa antes de 2040.
A imersão turística em experiências degradantes é outro filão com crescente demanda. No Vietnã comunista de hoje, quem visita os túneis cavados na terra pelos guerrilheiros vietcongues para derrotar primeiro o exército francês e depois o dos Estados Unidos é convidado a rastejar por seu interior. Enquanto isso, em zonas de tiro ao alvo montadas na superfície, turistas têm de testar a pontaria com metralhadoras AK-47. Blogs de profissionais de “reality shows de verdade” proliferam, e encenações adquirem características bizarras. A agência War Zones Tours, por exemplo, oferece um roteiro pelo México, onde “sequestros são de brutalidade incomparável”, com paradas em Ciudad Juárez, “conhecida como a capital mundial de assassinatos”, e na epidemicamente violenta Tijuana. Também organiza tours pelo Iraque, “um de nossos destinos mais populares”, e pela África sombria (Sudão, Somália, República Democrática do Congo), “onde vida selvagem e AK-47s abundam”.
Tempos atrás, a fotógrafa alemã Ina Fassbender, da agência Reuters, publicou o ensaio Uma noite no bunker, no qual retrata uma excursão turística ao bunker de Rennsteighoehe, construído pelo Ministério da Segurança Nacional da antiga Alemanha Oriental comunista. A fortificação subterrânea fincada no meio da floresta de Thueringer fora transformada em museu privado e oferecia fins de semana de imersão, com direito a pernoite.
Cada integrante da excursão recebe jaqueta, calça e quepe como os dos soldados do extinto Exército Nacional do Povo e passa a ser tratado como tal. Uma máscara de gás de uso obrigatório complementa o uniforme. Enfileirado diante de um guia que faz as vezes de oficial durão, o grupo é instruído a marchar pela floresta até o bunker, cada integrante carregando a própria bagagem. De dia, as mulheres do grupo são designadas para descascar batatas, e os homens se revezam na guarda do bunker. À noite, o conforto é escasso no dormitório espartano. A fotógrafa observou que boa parte dos participantes recebeu a viagem como presente de filhos ou consortes.
Cabe a pergunta: quanto tempo falta para algum empreendedor montar algo que atraia turistas dark à prainha do balneário de Bodrum, onde o corpo inerte de Aylan Kurdi comoveu o mundo, chacoalhou consciências de poderosos e entrou para a história? Por definição, o projeto de Ambroise Tézenas será sempre uma obra incompleta, mesmo que ele continuasse a trabalhar só nisso. Ainda assim, e pela própria natureza do tema, será sempre atual.
Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.
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Tags: Ambroise Tézenas, catástrofe, desastre, desolação, Ina Fassbender, turismo