Primeiro como farsa, depois como meme
Publicado em: 18 de setembro de 2024
A cadeirada do duelo que entrou para a história das redes como “Dapena versus Boçal” consolidou o vale-tudo das políticas da imagem que nos desgovernam desde as manifestações de junho de 2013. Esse momento é chave para compreender a passagem da política que instrumentaliza imagens para aquela que se faz a partir e de dentro da imagem.
Como esquecer os roteiros inéditos de manifestação política que atravessavam a Ponte Estaiada, em São Paulo, para infiltrar-se nos telejornais da Globo, aparecendo no cenário de fundo de programas? E a pré-produção golpista dos deputados que votaram pelo impeachment da presidente Dilma com seus cartazetes de “Tchau Querida!”, antecipando a foto que, todavia, não era fato?
A estratégia não começou naquele momento, tampouco nasceu da direita brasileira. Basta lembrar da antológica intervenção da Frente Três de Fevereiro no estádio do Morumbi, durante a final da Libertadores de 2005, quando abriram a bandeira “Brasil Negro Salve”, replicada para milhões, via transmissão da partida. Ou da invasão do famoso “triplex do Guarujá” pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ocorrida em 2018, quando 30 pessoas ocuparam por 3 horas o apartamento que levou Lula a ser condenado, cobrindo a fachada com a frase “Se é do Lula, é nosso. Se não é, por que prendeu?”.
O protesto invadiu a pauta dos principais noticiários da tevê e sua mensagem foi estampada na primeira página dos jornais mais relevantes do país, contornando as bolhas algoritmicamente dirigidas das redes, nas quais os grupos tendem a falar entre si e para si, e a imprensa que jamais vocalizaria os statements do MTST.
A possibilidade de ocupar as imagens é uma das principais dádivas da internet. Deu direito à tela para todos que, por séculos, foram excluídos do campo da representação, exceto quando apareciam subjugados. Da pintura ao cinema, passando pela fotografia e a televisão, tornar-se imagem era, até os primeiros fotologs e a criação do YouTube, no começo dos anos 2000, algo para poucos e menos ainda poucas.
Essa ocupação instaura um bem-vindo processo de canibalização das telas e cria todo um repertório de transgressão de cânones e protocolos estéticos que analisei em Políticas da imagem (Ubu Editora). Isso aparece no genial Pacific (2009) de Marcelo Pedroso, e vai até a “câmera ofegante” do Mídia Ninja, que corre com o acontecimento, como descreveu Ivana Bentes. Mas o que estamos vivendo hoje é um efeito bumerangue, mapeado por Esther Hamburger nas manifestações de 2013, quando a ação política, que se dá nas ruas, é organizada como performance para se tornar imagem sincrônica nas redes e nos meios de comunicação tradicional. O aparato do candidato Pablo Marçal leva essas pontuações ao limite.
Difícil conjecturar que a cadeirada do candidato Datena foi planejada por Marçal. Mas é preciso ser muito ingênuo, para não dizer completamente alienado, para não entender que o roteiro já estava pronto. Ele irritaria, como já havia feito com o candidato Boulos em outro debate, e provocaria a imagem (mais que um antagonista), que sua equipe transformaria em novo viral das redes.
E assim foi. Teve reels com “sanduíche” de vídeos de Marçal sofrendo um “atentado”, com Trump, alvo de um tiro que colocou sua orelha nos trending topics da internet, e Bolsonaro, óbvio, sendo esfaqueado durante a campanha de 2018. Teve grito de bastidor revelado, antes dos canais jornalísticos, com Marçal corrigindo a futura nota da TV Cultura (“Abandonou, não! Foi agredido”). Teve “cenas inéditas”, tipo E. R., dos tempos de George Clooney, com Marçal na ambulância, e muuuuuuita câmera ziguezagueando o céu e o asfalto para dar dramaticidade. Tudo isso foi publicado em segundos e tornou-se “o” assunto da eleição municipal convertida em tema de conversa nacional.
Desse ponto em diante, vieram as imagens profissionais da TV Cultura, abrindo o plano com a câmera que, de cima do palco, documentou Datena pegando a cadeira da candidata do Novo, Marina Helena, e partindo para cima de Marçal para provar que “era homem”.
Mas isso já era residual do jornalismo, correndo atrás do prejuízo e tentando formular uma nova periodização “a.C/ d.C”, ou antes e depois da cadeirada, sem deter-se no nervo da ação: o protagonismo dos candidatos “antipolítica tradicional”. O principal já havia corrido as redes, num 18 Brumário revisitado, no qual a história se repete, primeiro como farsa, e depois como meme. ///
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Pesquisa de imagens: Cassia Hosni e colaboradores do projeto Acervos Digitais e Pesquisa.
Giselle Beiguelman é colunista do site da ZUM, artista e professora da FAUUSP. É autora de Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera (2021) e Memória da amnésia: políticas do esquecimento (2019), entre outros. Site: desvirtual.com.