Para resistir à asfixia
Publicado em: 20 de novembro de 2020Em 25 de maio de 2020, George Floyd – homem negro e norte-americano – foi detido por um grupo de quatro policiais brancos quando conversava com dois outros homens em uma esquina qualquer de Minneapolis, estado de Minnesota, Estados Unidos. A abordagem fora provocada por uma denúncia de que ele teria comprado cigarros em um supermercado próximo com uma nota supostamente falsa de vinte dólares. Após ter recebido voz de prisão e ter suas mãos algemadas, George Floyd se recusou a entrar na viatura policial, sendo por isso derrubado ao chão e posto de bruços no meio da rua. Mesmo diante de um homem imobilizado, um dos policiais pressionou os joelhos sobre o pescoço e as costas do preso durante oito minutos e 46 segundos. Dois dos outros policiais o auxiliaram a manter deitado o suspeito já detido, enquanto o último cuidou para que a situação não fosse interrompida pelos passantes, que protestavam contra a ação violenta e desmedida. George Floyd se debateu como pode contra o crescente sufocamento a que estava sendo submetido. Pediu várias vezes por socorro, apelou por sua mãe e alertou por mais de vinte vezes, com voz cada vez mais fraca, que não conseguia respirar. Após seis minutos de imobilização, não se mexeu nem falou mais. Mesmo assim, o policial permaneceu pressionando seu pescoço e suas costas por mais dois minutos e 46 segundos. Não houve sequer a tentativa de reanimá-lo quando finalmente foi aliviado do peso sobre seu corpo. Foi morto. De acordo com a autópsia solicitada por sua família, George Floyd faleceu em decorrência de asfixia mecânica: a compressão sofrida no pescoço restringiu o fluxo sanguíneo para o cérebro e a compressão nas costas a possibilidade de continuar respirando. Seu corpo foi impedido de fazer o que fez, de modo natural, por 46 anos. Poderia também constar do documento médico, como causa da morte, racismo.
No Brasil, pessoas são igualmente mortas por asfixia e racismo. Em 14 de fevereiro de 2020, Pedro Gonzaga – negro e jovem –, foi imobilizado por um segurança branco de um supermercado no Rio de Janeiro, que para tanto lhe aplicou uma “gravata”, levou-o ao chão e colocou todo seu peso sobre ele. O motivo da reação violenta, segundo o segurança narrou mais tarde, teria sido o fato de o rapaz ter supostamente tentado pegar a arma que o funcionário trazia na cintura, fato não confirmado pelas imagens captadas por câmeras de vigilância instaladas no local. Ou, em outra versão, ter tentado assaltar o estabelecimento, o que foi negado por testemunhas. O que as câmeras e os celulares de clientes da loja registram, porém, é uma abordagem violenta que mantém Pedro Gonzaga, por tempo longo, em posição que o impossibilitava de respirar. Abordagem presenciada por sua mãe, que o acompanhava na ida ao supermercado. A despeito de ter logo ficado desacordado e dos alertas dos passantes de que ele estaria sendo sufocado ou de suas mãos já estarem arroxeadas, o segurança manteve-se firme na posição que apertava o pescoço do outro, enquanto pressionava seu corpo sobre o piso. Quando finalmente se levantou, Pedro Gonzaga permaneceu no chão, inerte. Foi levado ao hospital, onde faleceu depois de três paradas cardiorrespiratórias. Foi morto.
Antes desses casos, muito mais gente foi morta por asfixia e racismo. Mecânica ou simbólica. Pela impossibilidade de respirar. Nos Estados Unidos, no Brasil ou em outras partes. O sufocamento de parcelas da população do mundo é violência que une tempos e territórios diversos. Une a morte de milhares de negros e negras amontoados nos porões sem ventilação de navios negreiros na travessia atlântica entre África e Américas (embarcações conhecidas como “tumbeiros”) à morte de oito jovens pobres, quase todos pardos ou pretos, encurralados e também amontoados uns sobre os demais em viela sem saída de Paraisópolis (favela de São Paulo), em decorrência de brutal ação policial no final de 2019 – mortes tecnicamente provocadas por “sufocação indireta”. E não é certamente por acaso que a maioria dos vitimados por asfixia, no passado ou agora, seja racializada, posto que é o racismo o que define, em contextos os mais distintos, quem tem ou quem não tem sua humanidade preservada. Quem é e quem não é atingido por essa prática de radical anulação de diferenças.
Criar equivalências sensíveis (imagens, formas, gestos) para essa violência extrema tem desafiado vários artistas que vivem nos lugares onde ela se manifesta, quase sempre inseridos em tradição artística que negocia e comenta a presença do corpo humano em situações de convívio e conflito; artistas que borram os limites que apartam o universo íntimo do indivíduo e o ambiente social em que este está inscrito. São artistas que não se amparam em noções abstratas de disputa, mas nos termos que definem as situações de violência que experimentam ou testemunham. É através da reflexão crítica sobre o que é próprio a seus lugares de vida que melhor evocam histórias semelhantes ocorridas em outros cantos. Para tanto, quase sempre tomam o próprio corpo como suporte de seus trabalhos, fazendo-o lugar privilegiado da enunciação de seu discurso, embora reflitam nele também a experiência inalcançável do outro. O caráter efêmero desses trabalhos faz, ademais, com que registros em fotografia ou vídeo se transformem na principal maneira de lhes dar permanência e de fazer com que alcancem outras audiências além da mais imediata. É de alguns poucos deles que este texto busca dar notícia.
O sufocamento aparece como questão frequentemente aludida, embora nem sempre de modo explícito, na obra de Paulo Nazareth, descendente do povo krenak e da população negra escravizada no Brasil. Em uma série de trabalhos (Sem título, 2011-2012), o artista se fotografa deitado de costas em lugares ao ar livre com a cabeça completamente coberta por algo que potencialmente o impede de respirar: seja um monte de pedras grandes e irregulares, seja uma pilha feita de pedaços de troncos e galhos de árvores. Em uma dessas imagens, sua cabeça está totalmente imersa na água represada por um molhe de pedras junto ao mar, enquanto o restante de seu corpo permanece estirado em área seca. Já em dois de seus vídeos – Antropologia do negro I e Antropologia do negro II (2014), ambos filmados em branco e preto –, Paulo Nazareth se deita na mesma posição em que aparece nas fotografias, tendo sua cabeça gradualmente coberta por crânios humanos. No primeiro trabalho, são as mãos de alguém somente parcialmente mostrado que vão acumulando os restos mortais dessas tantas pessoas sobre o artista, enquanto no segundo é ele mesmo quem opera o processo de sufocar seu corpo com o que sobrou dos corpos de outros. Os crânios pertencem ao acervo do Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima, em Salvador, instituição cuja origem remonta ao museu de antropologia criminal fundado em 1901 pelo médico Nina Rodrigues, então dedicado a estudar e difundir as supostas relações entre criminalidade e características físicas dos criminosos, entre as quais o formato e a dimensão de suas cabeças. Apoiado nesse determinismo biológico à época desenvolvido e pregado pelo médico italiano Cesare Lombroso, Nina Rodrigues criou uma coleção de objetos e outros vestígios que, no seu entender, demonstravam a propensão ao crime das parcelas inequivocamente racializadas da população brasileira. São crânios que um dia integraram, portanto, um projeto cientificista e racista: crânios de homens e mulheres indígenas, negros e mestiços que sequer são identificados nominalmente na coleção do museu, sendo agrupados como matéria para estudos que serviram para justificar o sufocamento social de indivíduos e grupos. Empilhados sobre a cabeça de Paulo Nazareth, parecem dificultar sua respiração e metaforicamente reclamar, através desse contato próximo com alguém vivo, algo da humanidade subtraída de tantas pessoas. Ao fim da ação registrada em cada um dos vídeos, os crânios são lentamente retirados de cima do rosto do artista, aliviando-o da asfixia; marcando-o, contudo, com a lembrança de violência justificada por uma racionalidade supostamente científica.
De fato, ciência e polícia historicamente se entrelaçam para permitir ao Estado maior controle sobre os corpos, dissuadindo-os de dissentir de uma ordem vigente e punindo-os em caso de infração das normas sobre eles impostas. Controle que não obedece a critérios absolutos para medir o que seria justo ou certo em dada circunstância, sendo fruto de embates sem fim certo em que os interesses de uns são, ainda que sempre de modo provisório, impostos aos demais. Faz sentido, assim, que além de ser desde há muito usada em delegacias de todo o Brasil contra acusados de delitos comuns (majoritariamente jovens pobres e negros), a tortura por sufocamento tenha sido procedimento largamente aplicado pela polícia política naqueles que se opunham à ditadura militar no país, entre 1964 e 1985. Não importa se em ambiente supostamente democrático ou de exceção política, é método que busca obter confissões ou informações de presos durante interrogatórios, impedindo-os de ver o rosto de quem os questiona e pondo-os no limite da asfixia e da morte. Impedindo-os, ao final, de realizarem o primeiro movimento aprendido por qualquer vida humana: aspirar o ar para dentro do corpo e depois expirá-lo. Vários artistas buscaram inventar meios de representar e denunciar tal violência (tornando-a coisa socialmente visível) ainda durante o regime de força no país. Entre tais tentativas, inclui-se a primeira das intervenções urbanas realizadas pelo coletivo artístico 3Nós3, formado por Hudinilson Jr., Mario Ramiro e Rafael França. A ação, chamada de Ensacamento e realizada na madrugada de 27 de abril de 1979, consistiu em encapuzar, com sacos de lixo, as cabeças de pedra ou metal de dezenas de estátuas comemorativas espalhadas em ruas, parques e praças de São Paulo. Gesto obviamente feito de modo clandestino e anônimo que evocava a prática de deliberado sufocamento usada para obter depoimentos de homens e mulheres presos – muitas vezes sem acusação formal – por autoridades policiais ou do exército brasileiro. Além do ensacamento das estátuas feito às escondidas e logo fotografado, os artistas ligaram para redações de jornais cedo na manhã seguinte fazendo-se passar por moradores da cidade espantados e revoltados com a violação do patrimônio cultural. Chamaram, dessa maneira, a atenção da imprensa que, ao registrar e reportar o fato (então não revelado como intervenção artística), tornou pública e permanente a ação que seria logo fisicamente desmanchada por agentes da prefeitura de São Paulo.
A asfixia a que parcelas da sociedade do país estiveram sempre expostas é também evocada por Jaime Lauriano no trabalho que desenvolveu a partir de convite da Folha de São Paulo para participar de uma série de intervenções artísticas usando página inteira do jornal – parte de campanha instituída pela publicação em defesa da democracia no Brasil. Para tanto, o artista fez-se fotografar, do busto para cima, com o pescoço e a cabeça completamente envolvidos por uma larga fita amarela. Fita que, além de ocultar os traços do rosto – parte do corpo que mais rapidamente identifica e distingue uma pessoa –, bloqueia voz e olhar, dificulta a escuta e impede a respiração. Fita que, no limite, mata. Essa imagem, publicada na edição do 12 de setembro de 2020 da Folha de São Paulo, evoca ao menos outras duas. A primeira, a de um trabalho anterior do próprio Jaime Lauriano chamado Morte Súbita (2014). Trata-se de vídeo em que a câmera filma e passa em revista frontal uma série de homens perfeitamente alinhados, um ao lado do outro. Todos têm as mãos unidas e postas sobre as nucas e estão vestidos com a camisa oficial usada pela seleção brasileira de futebol durante a copa do mundo de 1970, ano em que o Brasil se sagrou tricampeão do torneio. As camisas do uniforme, entretanto, estão levantadas e cobrem as cabeças dos supostos jogadores, deixando-os em posição que evoca vulnerabilidade e perigo. Ao fundo, ouve-se uma trilha que mistura barulhos de torcida em estádios e outros que remetem a confrontos entre manifestantes e polícia nas ruas. Sobre esses ruídos que se amalgamam, a voz clara de um homem nomeia, como se fosse locutor esportivo que apresentasse a escalação da seleção brasileira antes do início de uma partida, pessoas mortas ou desaparecidas durante aquele mesmo ano, momento mais abertamente violento da ditadura militar no país. A outra imagem convocada pela fotografia apresentada no jornal é a de uma pintura do artista surrealista René Magritte, intitulada Os Amantes (1928). Sua versão mais conhecida mostra um homem e uma mulher – pintados também dos bustos para cima – com as cabeças inteiramente cobertas por um tecido e, a despeito disso, se beijando, como se resistissem à impossibilidade de um encontro. Em outra versão do trabalho, o casal não se beija, mas volta os rostos envoltos no pano opaco na direção de quem olha o quadro, tal como Jaime Lauriano o faz em seu autorretrato fotográfico. Embora sejam muitas as possibilidades interpretativas da pintura – nenhuma corroborada ou recusada por Magritte –, interessa notar que são vários os seus trabalhos em que rostos pintados são ocultados e assim destituídos da força vital dos sentidos ali contidos. Em relação às pinturas aqui mencionadas, importa o fato de que a mãe do artista se matou por afogamento – por asfixia, portanto –, tendo sido resgatada das águas com a camisola encharcada envolta no rosto. Fato testemunhado pelo pintor ainda adolescente e que certamente o instruiu sobre o risco que é próprio da mera circunstância de estar vivo. Risco que é maior para quem se opõe a atos violentos e arbitrários do Estado ou simplesmente para aqueles que possuem uma condição de vida mais precária do que a de outros no Brasil, seja porque são pobres, negros, indígenas, gays, lésbicas ou travestis.
A escolha da cor da fita com que Jaime Lauriano se cobre e potencialmente se sufoca não é, tampouco, arbitrária. Em plano mais imediato, responde a uma demanda do próprio convite feito pela Folha de São Paulo, posto que o amarelo foi definido como símbolo da campanha para a qual convocou a participação de artistas – tentativa de disputar, junto a outros supostamente empenhados na defesa de um regime democrático, os significados que possam ser hegemonicamente atribuídos a essa cor entre os habitantes do país. Afinal, se o amarelo é cor convencionalmente associada a uma ideia de Brasil como nação – presente, com destaque, na bandeira do país e no uniforme dos atletas que o representam em competições esportivas –, não existe relação definida entre seu uso simbólico e as formas políticas que historicamente regulam o confronto agonístico entre interesses que não se conciliam. Se a cor amarela esteve fortemente associada à ditadura militar no Brasil – em particular, na propaganda ufanista do regime autoritário na década de 1970 –, foi também a cor símbolo da campanha pelo retorno ao voto livre e direto para presidente nos anos 1980 (campanha Diretas Já), sendo, todavia, novamente sequestrada pelo governo autoritário e regressivo em curso. Mas para além de atender a um requerimento para sua participação no projeto, Jaime Lauriano parece querer, valendo-se do uso que faz da cor escolhida, escapar ao binarismo e simplismo implicados nessas apropriações e reapropriações de símbolos nacionais, fazendo uma inflexão crítica na adesão cromática que o jornal solicita e promove. Ao utilizar uma fita amarela na construção de uma imagem que lembra tortura e morte por asfixia em uma campanha que quer associar a cor a garantias democráticas, o artista recusa a concordância rasa com simbologias que, ao longo de séculos, referendaram violências que publicamente negavam. Usa o amarelo somente para afirmar, a contrapelo do que a publicação advoga, que ele deveria ser “a cor oficial do luto brasileiro, um luto por uma democracia que acabou antes mesmo de começar”. Para sugerir, por consequência, que democracia não terá cor certa enquanto o sufocamento for uma possibilidade maior para alguns do que para outros que vivem no país. Enquanto não houver democracia de fato.
Também vivendo em país marcado por racismo sistêmico e regimes autoritários, a guatemalteca Regina José Galindo usa seu corpo para de algum modo representar tais violências no campo do sensível. Não como corpo individual, “mas como corpo social, corpo coletivo, corpo global”, buscando refletir nele a experiência traumática dos corpos de outros. Em um de seus trabalhos, a ação filmada Tierra (2013), evoca a violência extrema cometida por autoridades da Guatemala no contexto do conflito armado acontecido no país entre 1960 e 1996, responsável pela morte de mais de 200 mil pessoas. Conflito em que o exército (com o apoio da oligarquia nacional) definiu os povos indígenas como seus inimigos, por serem supostamente simpatizantes da guerrilha que se insurgia contra os governantes, levando à apropriação de seus territórios e, no processo, ao assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças. Muitos dos indígenas mortos foram enterrados em valas comuns, abertas pelo exército do país com a ajuda de máquinas escavadeiras. Depois de atirados lá dentro, as valas eram fechadas com o auxílio de pá mecânica que jogava terra sobre os corpos. Inúmeros dos enterrados estavam, contudo – de acordo com depoimentos obtidos no julgamento dos implicados –, ainda vivos quando empurrados para o interior das fossas. Estes, morreram porque não puderam mais respirar. Morreram por racismo. A recordação dessa violência extrema cometida pelas autoridades guatemaltecas em sua vontade de capturar e anular vidas é feita pela artista ao colocar seu corpo frágil, despido e imóvel em área aberta no campo e à mercê de escavadeira que gradualmente retira a terra que há em sua volta. Com o passar do tempo, a máquina escava um buraco quadrangular de vários metros de lado e outros tantos de profundidade em seu entorno. Escavação que continua até ela se encontrar isolada em uma porção de terra pouco maior do que a necessária para abrigar seu corpo em pé. O trabalho, registrado em vídeo, acaba quando o braço bruto da escavadeira se detém diante de Regina José Galindo – aqui representando seus antepassados indígenas assassinados – como se em dúvida se avança para o golpe final ou se se retrai frente àquele gesto de resistência física e simbólica. Gesto de resistência que afirma a vontade inquebrantável de não se deixar mais sufocar.
A violência de Estado que mata e soterra parte da população do Brasil é evidenciada no vídeo Apelo (2014), trabalho de Clara Ianni em colaboração com Débora Maria da Silva. As imagens mostram uma mulher atravessando a paisagem silenciosa de um cemitério, caminhando ao longo de amontoados retangulares de terra e grama espalhados regularmente no terreno amplo: covas sem identificação nominal dos corpos enterrados nelas. Algumas covas mostradas estão ainda abertas, aguardando outros mortos de quem se desconhece quase tudo de quando eram pessoas vivas. A partir de certo momento, ouvimos a voz da mulher. Uma voz que reclama, com firmeza, do fato de tantos e tantas que um dia tiveram nome e família serem enterrados como se não tivessem origem e como se não houvessem deixado rastros de seus percursos. Voz que acusa um corpo social que sufoca parte de seus membros em vida a ponto de negar-lhes não somente esse pertencimento comunitário, mas até os próprios nomes depois de mortos. Voz que, por fim, exige a nomeação dos sepultados e a condenação dos responsáveis – diretos e indiretos – por tal estado de destituição absoluta da humanidade de alguns, quase sempre negros e pobres. Destituição que remete às maneiras como no Brasil os corpos – marcados por diferenças de raça e de classe – se distribuem desigualmente nos espaços de vida e também de morte. Tanto antes quanto agora. O cemitério onde faz seu vigoroso apelo se chama Dom Bosco, e é localizado em Perus, periferia de São Paulo. Construído para sepultar indigentes ou mortos não identificados, foi utilizado pela polícia política da ditadura militar, ao longo da década de 1970, para enterrar em valas comuns – clandestinamente e sem identificação alguma – corpos de opositores do regime de exceção. Muitos deles mortos em sessões de tortura em que o sufocamento era frequente. Violência e abuso que persistem mesmo após a redemocratização formal do Brasil, quando pessoas consideradas remotamente suspeitas de algum crime – mesmo sem comprovação – continuam a ser executadas pelas forças de segurança de Estado. Pessoas assassinadas sem acusação constituída e sem julgamento em um país onde não existe, oficialmente, pena de morte. Como o filho de Débora Maria da Silva – a mulher que empresta sua imagem e sua voz ao vídeo –, que trabalhava como gari e foi morto em 2006 em uma operação da polícia militar feita como represália ao ataque de uma organização criminosa no estado de São Paulo. Operação que, em poucos dias, matou mais de 600 pessoas. Edson Rogério Silva dos Santos tinha 29 anos e foi morto com cinco tiros. Por nada. Ou talvez por ser negro e pobre. Como se fosse ninguém. Como se nem nome tivesse. A fala forte e doída de Débora Maria da Silva aproxima processos distintos que resultam da violência excludente que funda o Brasil e que ainda o ancora, como indica a cena no final do trabalho, que mostra mais um corpo sem nome que chega ao cemitério e é jogado em vala rasa sem apreço ou cuidado. Corpo violentado em morte porque o foi em vida. Que é apressadamente coberto por areia depois de morto porque foi socialmente sufocado quando vivia. Corpo que não é merecedor de luto na morte porque não foi comunitariamente cuidado em vida. E é por isso, parece implicar a voz ouvida, que é tão necessário o esforço de rememorar o que se passou com cada um dos mortos: “Temos que lembrar dos mortos. Temos que lembrar dos nossos. Esse é o dever dos vivos”. Lembrar dos que foram vitimados pela violência racista e classista que estrutura o país é, de algum modo, reinscrever no presente possibilidades de outras formas partilhadas de vida. É resistir à asfixia.
E é justo a projeção de um tempo em que se combata e supere essa violência que anima a performance Soterramento, de Jota Mombaça, a cada lugar e a cada vez em que a realiza e registra em vídeo. Em duas dessas ocasiões – em São Paulo, em 2014, e em Belgrado, em 2015 –, deita-se imóvel sobre o chão e passa a ser enterrada por pessoas que, munidas de pás, gradualmente a cobrem de uma mistura de areia e brita disposta ao lado de onde ela fica. Simultaneamente, alguém lê uma lista de nomes de homens e mulheres recentemente feridos ou mortos em razão da violência policial em regiões pobres do Brasil. Aqueles para quem, no país, o Estado não apenas se ausenta de suas funções protetivas, mas que ativamente os elimina. Aos poucos, o corpo da artista vai desaparecendo sob a matéria opaca que gruda em sua pele, até que reste somente parte do rosto de fora. Corpo que ela define como o de uma “bicha não binária, racializada como parda, nascida e criada no nordeste do Brasil”. Corpo de vários modos dissidente em um país machista, racista e que ainda discrimina os que vivem em sua porção mais pobre. Corpo que é, na situação criada por Jota Mombaça, também o corpo de muitas outras e outros que estão sujeitos a um apagamento histórico que se atualiza a todo instante. Pouco antes de ter seus olhos, ouvidos, nariz e boca totalmente cobertos por areia e brita, porém – pouco antes de ser asfixiada pelo soterramento a que é submetida –, a artista move lentamente o corpo para cima, gradualmente livrando-se da mistura espessa que a cobria. Ao finalmente levantar-se, deixa para trás os vestígios do enterro em vida que simbolicamente interrompe. O que parecia ser cova, transforma-se em rastro de resistência; transforma-se, ao mesmo tempo, em memorial para aqueles que não resistiram à violência sistêmica de um Estado que implementa e reforça uma distribuição desigual de corpos em espaços de moradia, trabalho, lazer e outras instâncias da vida. A precisão e a vontade de resistir à asfixia que essa condição engendra são ainda mais reforçadas em versão posterior do trabalho, realizada por Jota Mombaça em 2017, no Rio de Janeiro. Nela, o processo de soterramento não é mais mostrado integralmente em vídeo, restando apenas dois curtos registros filmados e um volume de areia grossa no chão, trazendo impressas nele as marcas de quem esteve ali deitado. Em um monitor, vê-se a imagem repetida de parte do corpo da artista já coberto dessa terra e o movimento ritmado de uma respiração que, por baixo dela, combate a asfixia. Em outro monitor, a imagem, também continuamente repetida, do momento exato em este corpo se levanta decidido e se desgarra daquilo que é destino para muitos. O que mais importa, parece afirmar, é resistir ao poder da morte. É sobreviver ao extermínio. ///
Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010), Local/global: Arte em trânsito (2005) e Contraditório. Arte, globalização, pertencimento (2017) entre outros volumes e ensaios em livros.
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