O que vemos, nos olha
Publicado em: 6 de agosto de 2018O filme Blade Runner – O caçador de androides (1982), de Ridley Scott, entrou para a história do cinema e do nosso imaginário colocando em pauta uma Los Angeles distópica, chuvosa e sombria, marcada pela assimetria de poder entre replicantes e humanos.
Nesse mundo, carros voadores, prédios altíssimos e painéis eletrônicos gigantescos davam o tom de previsão do que seria a paisagem urbana no século 21. Exceto pelos carros voadores, a projeção se confirmou.
Esses elementos se repetem na continuação do filme, Blade Runner 2049 (2017), dirigido pelo franco-canadense Denis Villeneuve (1967), mas se atualizam e se acentuam. Entram na pauta a popularização da engenharia genética e novas formas de relacionamento afetivo entre humanos e escort girls digitais.
Encarnada (na falta de palavra mais precisa) na personagem Joi (Ana de Armas), ela é um misto de aplicativo e holografia, que se apresenta com o sugestivo slogan “Tudo o que você quer ouvir. Tudo que você quer ver”.
Par romântico de K (Ryan Gosling), o caçador de androides da vez, Joi é muito mais que uma versão futurista das bonecas infláveis. Ela é o futuro das imagens. Isso fica claro quando K, desolado pela rua, encontra Joi estampada em um painel eletrônico enorme, do qual ela sai holograficamente linda para conversar com ele.
Momento que repete uma série de cacoetes misóginos da relação entre os dois, do ponto de vista da história do audiovisual é um anúncio do que podemos esperar para nossa relação com as imagens. Imagens expandidas, para além das telas, que mobilizam o corpo na sua integralidade, sem se limitar aos olhos.
A cena traça um inequívoco paralelismo com a versão de 1982, quando uma misteriosa geisha aparece engolindo pílulas em uma megatela de LED. Ficcional para a época, esse tipo de tela tornou-se um acessório recorrente na paisagem contemporânea. Não seria exagero pensar que as holografias “vivas” do filme mais recente também o serão.
Mas não é apenas como indicativo da presença da imagem em escala urbana que esse momento é importante. É também como prenúncio de um outro olhar e de uma outra forma de ver o mundo. Rompe-se aí com o pressuposto da separação dos sentidos e da autonomia da visão, reintroduzindo o corpo no campo das imagens. Algo que já estava presente na estereoscopia oitocentista, mas que agora enuncia a brecha para que nos vejamos dentro do quadro enquanto olhamos.
Já aprendemos com o crítico de arte norte-americano Jonathan Crary (1951), em Técnicas do observador (Techniques of the observer – 1990), que a subjetividade que se constitui a partir da emergência do observador externo, que vê a imagem do seu exterior, marca a vitória da fotografia sobre a estereoscopia no fim do século 19 e se dá em um processo de profundas transformações.
Essas transformações estão relacionadas à adequação ao trabalho nas fábricas e à vida burguesa, no contexto da “reorganização industrial do corpo”, do aparecimento de uma série de técnicas para administrar a atenção e de um observador sob medida para o consumo espetacular e a distribuição controlada das pessoas no espaço.
Sabemos hoje, seja seguindo a trilha dos emaranhados quânticos ou a do repertório das ciências humanas contemporâneas, que os sistemas não são independentes, mas que influem um nos outros. O observador externo, fora do quadro, só existe de forma idealizada. Dito de outra forma, e parafraseando o filósofo francês Georges Didi-Huberman (1953), o que vemos, nos olha.
É verdade que o entretenimento de massa funciona ainda sob princípios clássicos, sugerindo um mundo regido por uma subjetividade introspectiva, que contempla imagens como se delas estivéssemos separadas por uma linha divisória.
Contudo, os regimes de interação contemporâneos permitem compreender experiências de outra ordem, porque operam sistemicamente, com interfaces permeáveis e variáveis.
Não se fala aqui, obviamente, de rotinas meramente clicáveis, como a maior parte da indústria de mídias oferece para consumo rápido. Mas de uma compreensão mais radical das potências que a imagem no tempo do digital traz consigo, reconfigurando as relações do olhar e da percepção.
Essas novas relações transcendem, também, a figuração indicial, mimética, da produção tradicional de imagens, que pretendia criar identidades entre o mundo da imagem e do real e foram tensionadas em obras como Blow-up – Depois daquele beijo (1966), do italiano Michelangelo Antonioni.
Uma das mais profundas discussões já feitas sobre a natureza e o lugar da imagem na cultura contemporânea, e sobre como lidamos com os fenômenos do visível e do invisível, Blow-up conta a história de um fotógrafo de moda, Thomas (interpretado por David Hemmings), que teria registrado, por acaso, um crime em um parque. Ao revelar suas fotos, surpreende-se ao ver o que parece ser um homem com uma arma nos arbustos e, mais tarde, um corpo.
Sua investigação sobre o suposto crime testemunhado é feita através de sucessivas ampliações dos registros fotográficos que captou acidentalmente. Nesse processo de ampliação, a foto desaparece e a imagem se impõe reduzida à sua materialidade: nitrato de grãos de prata sobre papel. Em outras palavras, a imagem não estava lá e Antonioni parece nos perguntar: o que você visualiza é o que você vê?
Thomas não conseguia interpretar imagens. Sua frivolidade permitia-lhe apenas ver fotografias enquanto superfícies planas. Ele confiava nos dispositivos técnicos como ferramentas meramente instrumentais, mas não conseguia lidar com a tecnologia como produção de percepção.
Artistas como Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti têm se notabilizado por incursões nesse campo de reflexão que problematiza a tecnologia no horizonte de novos regimes do olhar e a imagem para além de suas capacidades miméticas. Em trabalho mais recente, Tubo (2018), exploram as possibilidades de fazer os visitantes imergirem simultaneamente em diferentes paisagens e temporalidades e ver a si e os outros dentro das imagens que produzem.
Em exposição no Farol Santander, em São Paulo, até 9 de setembro, a instalação consiste em um cilindro de madeira recoberto por espelhos, com 3 metros de diâmetro e cerca de 14 metros de comprimento, no qual se projetam ao fundo imagens do entorno, gravadas ao longo de quatro dias. Ao entrar, apagam-se os limites entre o que está dentro e o que está fora, e o corpo entra em simbiose com a arquitetura e com os olhos.
Enquanto nos movemos, projetamos-nos outros e nas superfícies espelhadas. A sensação é de flutuar, como se o chão e as paredes do lugar físico em que nos encontramos não existisse.
Coletivamente produzida, a imagem torna-se um lugar provisório que subverte a referência do ponto de vista como norma organizadora do espaço. Anuncia um regime de visão pautado por um observador que é, a um só tempo, interior e exterior às imagens que produz e consome.
Sistêmicas, além tela e mediadas pelo corpo como um todo, essas imagens indicam algumas das possibilidades futuras de sua fruição. Toda a expectativa de revolução da realidade virtual (RV) passa por aí.
Isso porque a RV, como imagem imersiva e em rede, permite pensar em um outro campo de produção dos sentidos. Nele, a experiência de compartilhamento não se reduzirá ao espaço físico da sala e da tela (ou ao confinamento dos óculos e displays de cabeça), como acontece com o cinema desde sua invenção e com a realidade virtual no seu atual estágio técnico.
De Joi, em Blade Runner, ao Tubo, de Cantoni e Crescenti, tudo indica que a imagem será tocável, porosa e produzida por um sujeito que olha, enquanto vê a si mesmo, de dentro da imagem.///
Giselle Beiguelman é artista e professora da FAUUSP. Assina a coluna Ouvir Imagens na Rádio USP e é autora de Futuros Possíveis: arte, museus e arquivos digitais (2014), entre outros. Entre seus projetos recentes, destacam-se Odiolândia (2017), Memória da Amnésia (2015) e a curadoria de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes (2015).
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