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Marc Asnin na veia

Dorrit Harazim Publicado em: 17 de dezembro de 2014

Uncle Charlie #93

Uncle Charlie #93

 

Para quem conhece o americano Marc Asnin pelo seminal trabalho anterior – a estupenda biografia fotográfica Uncle Charlie da qual se falará aqui mais adiante –, seu projeto atual é, no mínimo, surpreendente. Last Words inclui uma única imagem de sua autoria – um autorretrato. E ainda por cima, um selfie.

Asnin recorreu ao selfie para alavancar uma cruzada contra a pena de morte nos Estados Unidos. Primeiro convocou seus colegas de profissão para participarem da campanha. Pediu que postassem um selfie nas redes sociais e anexassem um comentário de não mais de 140 caracteres sobre a pena capital. A suposição de que buscariam instigantes formas visuais para retratar seu posicionamento foi acertada.

Alguns criaram algo literal, outros foram mais conceptuais. O documentarista britânico Can Sengunes, por exemplo, participou com um selfie de cabeça para baixo e a legenda: “Ô, carrasco… Como você dorme à noite?”. Seu compatriota Gary Knight, cofundador da VII Photo Agency, acrescentou à imagem a máxima “Olho por olho acaba tornando cego o mundo inteiro”, de Gandhi. O autorretrato em exposição dupla postado pelo americano Ed Kashi o mostra com o rosto voltado para polos opostos. Uma série de dez participações pinçada pela revista American Photo confirma a variedade de caminhos.

Lançada na internet dois meses atrás, a campanha de Asnin, que em poucos dias extravasou as fronteiras da profissão, visa captar US$ 320 mil através de crowdfunding. Com os recursos obtidos ele pretende publicar o livro Last Words, destinado às 14 mil escolas públicas dos 32 estados americanos onde ainda vigora a pena capital. Simultaneamente, uma exposição itinerante com o material do livro mais a coletânea de selfies rodará pelo país. 

 

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Selfies da série Last Words

 

“Não quero ser um fotógrafo de 51 anos que não sabe abrir espaço para a nova mídia. Seria enfiar a cabeça na areia. O selfie não faz parte da minha geração nem é a maneira pela qual eu confronto injustiças sociais, mas é a linguagem de hoje para comunicar algo”, explicou recentemente ao New York Times.

Last Words será a compilação das últimas palavras pronunciadas por 517 condenados, minutos antes de sua execução. Para Asnin, é essencial incorporar essas vozes ao debate nacional, disseminá-las, sem abrir mão do rigor documental. “Não me proponho a glorificar essas pessoas, elas foram condenadas por terem praticado crimes hediondos. Apenas acho que suas vozes precisam ser ouvidas”, diz ele.

O compêndio em formato de caderno espiral terá uma página dedicada a cada condenado. Nela o leitor encontrará sua ficha criminal, com número de matrícula, data e local de nascimento, data do crime, data da condenação, data da execução, escolaridade, raça, descrição do crime pelo qual foi condenado e foto. Além disso, apenas a íntegra das palavras finais que pronunciou em vida.

Em algumas dessas despedidas verbais transparece o medo, em outras, o remorso. Há revolta, há fé, há expressão da vontade de que tudo acabe logo. “Espero que o lugar para onde eu vou seja melhor do que aqui.” De acordo com as normas processuais, todo condenado tem direito a fazer um último pronunciamento quando já estiver na sala de execuções, afivelado à maca, prestes a receber a injeção letal de pentiobarbital. Um microfone suspenso à sua frente capta cada palavra, mesmo que pronunciada em tom baixo. Uma estenógrafa instalada longe dali faz a transcrição do que for dito.

Nas fichas dos que ficam calados consta uma anotação obrigatória: “O criminoso se recusou a fazer uma última declaração”. A maioria, contudo, quer falar – nem que seja para ouvir a própria voz  balbuciando frases como “Eu te amo mamãe, adeus”, ou “Vou esperá-lo do outro lado. Seja forte, meu filho… Jesus, me perdoa”. Alguns jorram frases inteiras, outros optam por se despedir da vida em espanhol : “Pela dor que lhes causei tenho vergonha até de olhar em seus rostos. Vocês são maravilhosos, meus irmãos do corredor da morte. México, México…”. Ao final, a frase de praxe endereçada ao carrasco: “Estou pronto”.

Um dos libelos mais contundentes a constar do planejado livro é de Henry Porter, duplo homicida executado em 1985. “Não afivelei ninguém a uma maca. Não injetei veneno nas veias de ninguém numa sala fechada à chave. Vocês chamam isso de justiça. Eu chamo isso e chamo essa sociedade de bando de matadores a sangue-frio”, disse Porter, que vivenciou a agonia adicional de ter a execução suspensa por duas vezes à última hora.  

 

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Spread do livro Last Words

 

Introduzida na América colonial ainda antes de os Estados Unidos se tornar nação independente, a pena de morte esteve próxima de ser abolida em 1972 quando a Corte Suprema impôs uma moratória em todo o país. Mas a decisão foi revertida quatro anos mais tarde e, desde a retomada dos procedimentos, é a penitenciária de Huntsville, no Texas, que produz os dados mais estarrecedores: ao longo dos últimos 32 anos, ali se realiza mais de uma execução por mês.

Final Words tem o propósito de evocar a complexidade e as diferenças de cada indivíduo que passou pelo corredor da morte de Huntsville. Dar-lhes voz e conferir-lhes humanidade, em suma. Na concepção do fotógrafo, o livro constituirá uma espécie de testamento para a História do tipo de sociedade que os americanos escolheram ter. “Embora o livro seja um documento sobre a morte, tanto dos criminosos como de suas vítimas, a obra vai tentar construir um debate sobre a vida”, explicou Asnin no lançamento do projeto. Para ele, avaliar a pena de morte à luz do seu amplo leque de consequências é uma forma de honrar o sistema democrático americano.

Foi uma visita ao site do Departamento de Justiça Criminal do Texas que levou Asnin a querer difundir as vozes dos executados para além da câmara da morte e para fora do formato de planilha burocrático-administrativa em que são arquivadas. O site oficial da Justiça texana, por sinal, fornece um retrato valioso do tratamento estatístico dado à matança institucionalizada.

É difícil não se surpreender com o volume e a precisão de dados à disposição do interessado. Há até mesmo uma seção de “Perguntas mais frequentes” e de faits divers. Qual o menor e maior tempo de espera de um condenado até ser executado? Nove meses e 31 anos, respectivamente. Qual o mais jovem e o mais velho até hoje? 24 e 66 anos. Quantas vezes ocorreram execuções de irmãos? Seis.

A página tem uma versão em espanhol (40% dos executados em 2014 eram hispânicos) e se mantém constantemente atualizada para acompanhar o ritmo das execuções. O livro planejado por Asnin, por sinal, sairá defasado. Lisa Coleman, executada no dia 12 de outubro passado, deixou de ser a última de 2014. O hispânico Miguel Paredes a sucedeu dez dias depois, tornando-se o executado de número 518; no dia 3 de dezembro foi a vez de Scott Panetti receber a última injeção letal do ano. Na tabela de execuções agendadas para 2015 já constam 10 nomes.

Marc Asnin tem consciência do quanto uma campanha de cunho social movida a selfies está distante de sua trajetória de fotógrafo documental. Mas também sabe que não há mais espaço nem verba para os clássicos ensios visuais do passado, considerados onerosos e demorados demais para a realidade da indústria da comunicação atual. Hoje dificilmente alguém designaria o indomável mestre do gênero W. Eugene Smith, autor de épicos seminais como Pittsburgh e Minamata, a perseguir um tema até exauri-lo. “Não se ganha mais a vida como fotógrafo documental. Quando tenho interesse jornalístico por um tema, procuro ser criativo usando outros meios”, contou Asnin à American Photo. Isso explica por que guardou temporariamente a câmera e optou por ilustrar Final Words só com material de arquivo do governo, além de turbinar a campanha através de selfies.

 

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Selfies da série Last Words

 

Por sorte, quem tem no currículo uma obra tão marcante e autoral como Uncle Charlie pode tudo.

Marc Asnin, nascido e criado no viver da comunidade judaica do Brooklyn, é formado pela School of Visual Arts de Nova York. Publicou trabalhos na lendária Life e tem presença frequente nas páginas da New Yorker e do New York Times Magazine. Também costuma ser requisitado por publicações europeias. Museus de acervo fotográfico robusto como o MoMA de Nova York, o Museu de Arte de Baltimore e o Museu de Arte Moderna de Moscou já realizaram exposições individuais de sua obra. Fotografias de sua autoria integram a coleção permanente de instituições como a Smithsonian Institution e o International Center of Photography (ICP), fundado por Cornell Capra em homenagem ao irmão Robert.

Nada disso, porém, compete com a série Uncle Charlie, narrativa visual de uma vida vivida no fio da navalha. Definido pelo crítico de arte Michael Kimmelman como talvez o retrato mais íntimo e perturbador da história da fotografia americana, o ensaio de Asnin reunido em forma de livro homônimo não tem similar. Nem poderia ter, dadas as suas características.

Foi no início dos anos 1980, quando tinha pouco mais de 20 anos, que Asnin começou a fotografar seu padrinho e tio predileto Charles Henschke. No início tratava-se de mero trabalho de faculdade. Aos poucos, contudo, foi adquirindo contornos de projeto sem prazo para acabar ao qual o sobrinho fotógrafo se dedicou de forma obsessiva ao longo de mais de duas décadas.

Concluído só em 2007, esse documentário fotográfico em preto e branco, propositalmente granulado, narra não apenas a existência atormentada do cidadão Charles. Revela também a evolução do olhar de Asnin sobre o seu herói de infância.

“No começo, quando eu procurava a figura de um durão para emular, encontrei no tio Charles o cara que reunia tudo o que eu queria ser”, escreve Asnin no prefácio do livro. Mas o que era admiração incontida pelo padrinho tatuado que não tinha medo da marginália, era inteligente e rufião, amoral e amoroso, virou desencanto com um homem atormentado por distúrbios psicológicos, carências afetivas, abuso de drogas, destituído de tudo. Um homem à deriva, completamente só num abissal vazio.

Asnin teve a magistral ideia de pontuar seu testemunho fotográfico com as reflexões sem complacência que o tio fazia sobre a própria vida. Por si só, a transcrição dessas reflexões na primeira pessoa já são um soco no estômago. E no conjunto, texto e imagens, reunidos em mais de 400 páginas de diagramação cortante, fazem de Uncle Charlie uma experiência ímpar para o leitor. Ali convergem crueza e honestidade. Asnin conseguiu fundir, como já escreveu alguém, o estilo visceral de Nan Goldin com o humanismo sereno de W. Eugene Smith numa linguagem própria.

Vale torcer para que alguma editora nacional presenteie os leitores com a notícia da compra dos direitos de Uncle Charlie para o Brasil. No mercado americano a obra custa a bagatela de U$ 35 dólares. Para quem aprecia, vale mais do que ações da Petrobrás.///

Uncle Charlie #20 Uncle Charlie #29 Uncle Charlie #37 Uncle Charlie #83 Uncle Charlie #86Fotos da série  Uncle Charlie

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

 

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