Colunistas

Olhares distantes e lugares de fala

Ronaldo Entler Publicado em: 11 de janeiro de 2022

 

Imagem da exposição The Family of Man, MoMA, 1955. Foto: Rolf Petersen

Somos seres falantes e políticos. Assim Aristóteles definiu aquilo que de mais abrangente identificava os humanos, e que garantia também sua organização em coletividades. Mas os bárbaros, isto é, aqueles que não falavam o grego, foram excluídos dessa condição política porque, segundo o filósofo, tinham uma natureza semelhante à do escravo (A Política). O “universal” nunca foi exatamente aquilo que unifica a humanidade. Ao contrário, é um elemento distintivo, o parâmetro que emana de um lugar privilegiado para aquilo que se supõe que todas as pessoas deveriam ser ou almejar. Na prática, essa noção se torna um instrumento de poder que serve ora à exclusão, ora à imposição de um modo de pensar e de viver.

A Europa do século 19, já fragmentada em diversos idiomas, identidades nacionais e estilos artísticos, encontrou na fotografia a expressão da racionalidade moderna que ainda a unia. Como tal, essa imagem rapidamente se tornou para as ciências um instrumento que permitia medir a distância que separava dessa boa universalidade os primitivos, os criminosos e os histéricos. Quando submetia esse “outro” ao enquadramento de sua câmera, o homem de bem demarcava a autoridade que exercia sobre aqueles corpos, ao mesmo tempo em que testava generosamente suas possibilidades de inclusão no processo civilizatório.

Por mais bem-intencionada que fosse, a fotografia humanista do século 20 não escapou a esse exercício de poder: os comportamentos humanos só podem ser mostrados em sua diversidade graças à singularidade desses olhares que exploram o mundo. Isto é, graças à subjetividade, essa liberdade própria do espírito humano – portanto, universal – que se traduz na imagem como assinatura autoral. No final das contas, permanece existindo uma hierarquia entre o sujeito que olha e o objeto observado, de modo que o principal legado deixado pela fotografia humanista não é tanto o que ela pode ter descoberto sobre a humanidade, mas o “olhar fotográfico” deste e daquele autor.

Mesmo em suas mensagens pacifistas, a fotografia humanista traz algo problemático. Pode-se dizer que uma exposição como The Family of Man (MoMA, 1955), projeto de Edward Steichen que reuniu cenas captadas em 68 países numa grande e única narrativa sobre a vida humana, engaja a fotografia na visão anticolonialista que se esboça no pós-guerra. Mas, ao nivelar as diferenças humanas num recorte muito amplo e otimista, antecipa o princípio universalizante que agora reencontramos no all lives matter.

 

À flor da pele

Nas primeiras décadas do século 20, o antropólogo Bronislaw Malinowski assim descrevia o início de uma pesquisa de campo: “imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista” (Os Argonautas do Pacífico Ocidental, 1922). Essa imagem demarca não apenas uma distância territorial, mas também o desafio heroico que o antropólogo assume ao carregar sozinho, em ambiente desconhecido, o peso de uma perspectiva que se pretende universal. A pesquisa de campo é essa cruzada, espécie de guerra santa em nome do deus único da ciência que, com sua bênção, pode ser empreendida por uma só pessoa.

Como que em resposta a Malinowski, o antropólogo Clifford Geertz dirá no final desse mesmo século que “o sentimento de ser estrangeiro não começa à beira d’água, mas à flor da pele”. Sua crítica ao etnocentrismo, esse universalismo que o cientista branco atribui à sua perspectiva, não tem a ver com o fato de que o observador seja incapaz de se despir de seus valores. Isso é incontornável. “O problema com o etnocentrismo é que nos impede de descobrir em que tipo de ângulo (…) nós nos postamos em relação ao mundo” (Os usos da diversidade, 1986). Podemos entender “flor da pele” como metáfora do lugar em que deve começar o trabalho do antropólogo: na compreensão de si mesmo como medida da diferença, qualquer que seja a distância percorrida. “Flor da pele” é também a representação de uma sensibilidade, uma irritabilidade produzida pela relativização dessa posição de universalidade.

Mas a metáfora de Geertz oculta ainda uma literalidade que ele não se atreveria a colocar: a “pele”, por si mesma, constitui um território, um lugar de fala racializado que sua ciência ajudou um dia a demarcar. Ou seja, é também pela pele que podemos distinguir historicamente a posição de quem observa e de quem é observado. Ainda que tenha se empenhado em produzir uma autocrítica, sabemos que a antropologia herdou da antropometria o seu interesse pelas diferenças humanas, disciplina positivista que buscou na aparência do corpo as medidas objetivas que definiam o que entendiam como estágios evolutivos dos diversos povos originários. Sabemos também que a fotografia foi, no século 19, uma tecnologia de ponta usada nessas pesquisas.

A antropologia – assim como todas as ciências humanas, a comunicação e a arte – se confronta agora com a demanda de baixar a voz, de passar a palavra e dar protagonismo aos sujeitos que, tratados como o outro lado de seu saber, foram silenciados ao longo da história. Em contrapartida, não pode abrir mão de pensar, mesmo diante dessas urgências, de que modo ainda é possível abordar a diferença e de falar a partir da alteridade. Essa é a questão que recoloco aqui, acrescentando um dado que nos interessa e que não é em nada estranho à antropologia: de que modo ainda é possível fazer isso com a câmera?

Essa interrogação é pequena e hesitante diante de tudo o que deve ser realinhado para decolonizar as imagens. Mas a pergunta pode ser redesenhada para situar numa perspectiva histórica as responsabilidades dessa tarefa: de que modo é possível portar, além da câmera, certa consciência de que tais abordagens produziram tantas violências, de que os ajustes metodológicos não desresponsabilizam esses saberes pelas heranças colonialistas que deixam, de que toda sensibilidade cultivada não autoriza falar pelo outro. Enfim, a consciência de qual é o lugar de fala daquele que se aproxima com sua câmera. Essas perguntas não demandam um direito de falar: não cabe reivindicar um privilégio que sempre se teve. Também não vislumbram a construção de um método que permita contornar todos os riscos. Trata-se apenas de apontar algumas práticas documentais que trazem algo dessa consciência e um gesto autocrítico a respeito desse lugar a partir de onde se constroem.

 

Chegada na aldeia em A arca dos Zo’é (1993). Povos Waiãpi e Zo’é. Imagens de Vincent Carelli. Direção de Vincent Carelli e Dominique Gallois.

Por que filmar?

Em algum momento, as regiões periféricas do mundo se viram em condições de produzir, elas mesmas, a etnografia de suas comunidades. Esse movimento é paradoxal: de um lado, mesmo que a noção de “lugar de fala” não esteja necessariamente colocada, isso representa o esforço de produzir um discurso mais próximo e identificado com os sujeitos observados.  De outro, como lembra o antropólogo José Jorge Carvalho, é preciso pensar em que medida essa apropriação dos saberes dos mestres europeus não contribuiu para um processo de ocidentalização do mundo (O olhar etnográfico e a voz subalterna, 2001).

Em 1966, os pesquisadores Sol Worth e John Adair propuseram que um grupo de jovens Navajo filmasse a si mesmo para permitir que as imagens captassem seu modo próprio de ver o mundo. A dupla reconheceu nesses filmes uma especificidade de estilo e notou um maior grau de interação da comunidade com esses resultados. Quando Worth e Adair apresentaram sua proposta a Sam Yazzie, um ancião da comunidade, ele devolveu algumas perguntas: “o filme vai fazer algum mal às ovelhas?” Certamente, não faria. “O filme vai fazer algum bem às ovelhas?” Também não. E Yazzie conclui: “Então, por que filmar?” (Through Navajo Eyes, 1997). É uma questão simples e legítima: mesmo que, desse modo, a imagem possa representar mais adequadamente a cosmologia daquele que filma, a quem interessa esse conhecimento?

Podemos questionar o que significa dar ao outro acesso à produção de imagens, ensinar a ele uma técnica, uma linguagem ou um idioma que não pertence a suas tradições. É certo que não haverá pureza nesse olhar educado para a fotografia ou para o cinema. Mas há três coisas a considerar. Primeiro, essa pureza é em si mesma um mito que o observador europeu projetou sobre os novos mundos para opor a complexidade de sua cultura a um modo de vida que ele supõe harmoniosamente entregue às exigências e às contingências da natureza. Segundo, o reconhecimento de que o território e as tradições dos povos originários devem ser preservados não autoriza supor essas culturas como estáticas e impermeáveis. Terceiro, uma vez que a colonização tenha produzido transformações violentas ao longo de séculos, uma vez que as tecnologias da imagem tenham participado desse processo e impactado de modo irreversível o imaginário dessas comunidades, permitir que o outro assuma o controle de sua representação tem sido, senão uma estratégia de reparação, ao menos uma política de redução de danos.

Algumas potências desse descentramento podem ser observadas no projeto Vídeo nas Aldeias, concebido em meados dos anos 1980 pelo antropólogo franco-brasileiro Vincent Carelli, e que resultou um vasto acervo audiovisual sobre os povos originários do Brasil. Num primeiro momento, é ele quem opera a câmera, mas já com o esforço de demandar desses sujeitos as decisões que orientam as narrativas. Ao fazer circular essa produção entre diversas comunidades indígenas, seus filmes permitiram o reconhecimento de tensões e intercâmbios culturais que, já naquele momento, constituíam suas identidades. Em seguida, as ações do projeto, agora transformado em ONG, se desdobram numa ampla atividade de formação de realizadores indígenas que passam a produzir seus filmes com uma autonomia que não tem a ver apenas com a operação da câmera, mas com a gestão dos sentidos que essas imagens produzem.

Desde as experiências de Worth e Adair com os Navajos, essa estratégia de autorrepresentação tem sido utilizada com frequência em pesquisas etnográficas e projetos sociais. Mas a força dos resultados alcançados pelo Vídeo nas Aldeias está no fato de não projetar sobre esse método a expectativa de um olhar menos contaminado por interferências externas. Em paralelo ao registro das tradições que sobrevivem, o que se constrói ali é a oportunidade de compreender o curso de suas transformações, sendo uma delas a presença rotineira da câmera, do aparelho de TV, do telefone celular. Essa visão menos purista tem garantido ainda que alguns desses realizadores militem ativamente pelos interesses de suas comunidades, atuando em embates políticos que tem nas “narrativas” um de seus campos de batalha.

 

Vista dos retratos de Frederick Douglass na 34ª Bienal de São Paulo. © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

A partir de certo ponto da história, não se trata mais da autenticidade que a imagem é capaz de restituir, mas dos agenciamentos que ela é capaz de produzir. Não é, portanto, uma questão de veracidade, mas de performatividade. Um outro exemplo, que ganha visibilidade numa grande parede da edição atual da Bienal de São Paulo, são os 120 retratos de Frederick Douglass: um homem negro que foi, entre todos os estadunidenses do século 19, aquele que mais vezes esteve diante da câmera fotográfica. Nascido escravizado, Douglass fugiu aos 20 anos de idade, aprendeu a ler e escrever, militou pela abolição, produziu textos e discursos cuja influência alcançou diversos países e refletiu sobre o papel da fotografia na construção de um lugar social na modernidade. Essa presença diante da câmera, suas poses e vestimentas, e sua crença no progresso podem soar como uma adesão aos valores da sociedade branca e burguesa que o escravizou. Mas não se pode falar em alienação: essa retórica agencia as condições para que possa falar e se fazer ouvir, e produz um imaginário capaz de desnaturalizar a representação do negro como escravo, já bastante difundida pela literatura, pela pintura e pela fotografia de seu tempo.

 

Dois ou três passos para trás

E quando a câmera permanece na mão daquele que chega de fora? Como lembra Djamila Ribeiro, não se pode confundir a representatividade com lugar de fala (O que é lugar de fala?, 2017). Alguém que não tem raízes fincadas em certo local e nem vivências de certo corpo não poderá falar em seus nomes ou esperar que aqueles de quem fala se reconheçam em seu discurso. Mas, assumir que existe aí um lugar de fala é importante justamente para que se possa assumir as responsabilidades por todas as identificações que o demarcam. Penso aqui em dois trabalhos que, com estratégias muito simples, revelam esse lugar e desnudam a autoridade que nele se constitui.

Na série Sertanejos (2009), de Alexandre Severo, dois ou três passos para trás foram suficientes para revelar aquilo que sempre foi preciso esconder para que a imagem soasse universal aos olhares já familiarizados com ela: os artifícios técnicos que reenquadram o mundo e lhe garantem legibilidade. Mesmo que a fotografia já não seja alheia a esses sertanejos que agora são também “travestis, motoboys, pirateadores e b-boys”, conforme o texto do artista, entendemos que o aparato não é ali uma presença leve e fluida, e a imagem não é o simples desvelamento de uma forma que pertence àqueles corpos. Parte daquilo que sustenta o discurso é uma parafernália trazida de fora, algo que modifica a paisagem e que produz ruído.

Em Santiago (2007), João Moreira Salles retoma um projeto inacabado, iniciado treze anos antes: um documentário que traça o perfil do homem que dá nome ao filme, e que trabalhou por trinta anos para sua família, como mordomo da casa em que o cineasta cresceu. Trata-se de uma figura excêntrica e solitária que abre agora seu apartamento ao espectador, mostrando seus gostos musicais e cinematográficos, e a estranha mania de colecionar histórias da nobreza europeia. Na montagem que vemos, o filme expõe fragmentos da preparação das tomadas, os comandos do diretor e, ao final, uma fala que reconfigura tudo o que vimos até então: quando Salles pede que Santiago regrave uma cena, seu tom deixa claro que a relação entre o diretor e seu personagem permanece sendo a de um patrão e um empregado, como assume a narração.

Dois ou três passos para trás, dois ou três segundos após o “corta!” são capazes de criar fissuras na eficiência do discurso, de onde escapa um subtexto que diz: eu sou o outro, sou distante, e minha presença produz atritos e, mesmo assim, é minha voz que se impõe aqui.

 

Retratos da série Marcados, de Claudia Andujar, 1991-1993.

Empatia

Em Marcados (2009), Cláudia Andujar apresenta uma extensa série de fotos realizadas entre 1981 e 1984 que, originalmente, respondiam a uma necessidade bastante prática: para identificar numa ficha médica indivíduos Yanomami que estavam sendo vacinados e que não possuem nomes convencionais, a fotógrafa produziu retratos em que cada um deles aparece com uma placa no pescoço que traz um número que foi atribuído a cada um deles. Após três décadas de militância pela demarcação das terras Yanomami, Andujar revisitou seus arquivos, produziu releituras e montagens que sintetizam as memórias que carrega desses encontros. No caso de Marcados, bastou expor os retratos do modo como eles foram feitos para revelar o espaço de uma incomunicabilidade: somos incapazes de entender o modo como aqueles indígenas são identificados em sua comunidade, tanto quanto à estratégia de identificação adotada nas imagens é estranha a eles.

Andujar comentou muitas vezes que essas imagens tocam outra memória pessoal: de origem judia, seu pai foi levado para um campo de extermínio durante a segunda guerra e, dali, nunca mais retornou. A primeira exposição que fez dessas imagens, em Londres, recebeu o titulo de Marcados para viver, marcados para morrer (2005), opondo a ação humanitária que visava proteger a comunidade Yanomami de um surto de sarampo, aos campos nazistas que marcavam os judeus para conduzi-los à morte. Essa oposição pode ser problematizada porque suas imagens não deixam de conter em si uma violência simbólica, ainda que bastante justificável dentro de uma política necessária de redução dos danos causados pelos brancos.

Clifford Geertz nos conta a história, que supõe ser verdadeira, de um “índio bêbado” que se encontrava na fila de um projeto de saúde pública, que lhe daria acesso a um aparelho de diálise. Quando finalmente teve a oportunidade de iniciar seu tratamento, apesar das orientações médicas, o indígena não manifestou qualquer interesse em controlar o alcoolismo que o conduziu até ali. Ele permaneceu sendo atendido até a morte, mas os “médicos jovens e idealistas” ficaram consternados, porque imaginavam para seus pacientes a chance de uma vida melhor, isto é, uma vida semelhante a deles. Essa história não guarda nenhuma semelhança com a experiência de Andujar, mas nos dá pistas de que o atendimento universal da medicina, que é a forma mais justa e democrática que se pode dar a essa ciência, não deixa de expor certos conflitos de valores.

É muito provável que a decisão de mostrar aqueles retratos não tenha a ver apenas com a celebração de uma iniciativa humanitária. A força que conduziu essas imagens dos arquivos para as galerias está também no modo como as placas de identificação pesam sobre aqueles corpos, porque arrastam consigo uma história residual de outros tantos efeitos problemáticos dessa mesma incomunicabilidade. Apostaria que essa violência não passa despercebida a Andujar, ainda que a artista não consiga nomeá-la quando distingue a má e a boa marcação. Isso não desqualifica o trabalho, ao contrário, situa seu valor num lugar mais autêntico: o da empatia.

Esse sentimento, que é um tanto raro, tem pouco a ver com uma ciência, com uma justificativa técnica que se possa construir. Empatia, é um sintoma, um pathos, um “não-saber” que se manifesta na imagem, para dizê-lo ao modo de Didi-Huberman (Diante da Imagem, 1990). É uma cicatriz no próprio corpo que lateja diante da dor do outro. Algo que não se confunde com solidariedade ou com altruísmo. É o oposto de quando alguém diz: eu sei o que você está sentindo!, eu sei o que você está passando!, frases que tendem a ser, por si mesmas, abusos de lugares de fala. O que Andujar sabe é o benefício agenciado por essas imagens. Mas algo da história Yanomami reverbera em sua história.

 

Frame do filme Terremoto santo, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, 2017

Negociação

Bárbara Wagner e Benjamin de Burca têm trazido para o campo erudito da arte contemporânea manifestações populares e regionais que se materializam sobretudo na música e na dança. Sabemos que aquilo que vemos não constitui para os artistas uma experiência cotidiana. Trata-se de uma pesquisa. Mas não é simples medir a distância em que eles se colocam quando retratam essas pessoas. Podemos testar essa distância por meio da diversidade de preposições que problematizam o lugar de fala. Nesses trabalhos, a dupla de artistas fala sobre esses sujeitos? Fala a eles? Fala junto com eles? Deixa que falem por meio de sua obra?

Houve alguma surpresa e um debate muito produtivo entre público e educadores quando a 32a Bienal de São Paulo mostrou Estás vendo coisas (2016), curta que alterna passagens ficcionais e videoclipes conduzidos por jovens expoentes da música brega de Recife. O desconforto foi mais explícito quando o X Janela Internacional de Cinema mostrou, em Recife, o trabalho Terremoto Santo (2017), que coloca em cena cantores evangélicos de Palmares, zona da mata de Pernambuco. Nessa ocasião, enquanto uma parte da plateia ria com algumas passagens do filme, outra parte culpava o tratamento dado ao tema por essa reação. A crítica Bárbara Bergamaschi comparou o experimento aos “gabinetes de curiosidade”, manifestação espetacular e perversa que o olhar colonialista produziu em sua aproximação a mundos recém descobertos.

Não é incomum que os trabalhos da dupla produzam estranhamento. Suas obras combinam exuberância técnica e exagero estilístico, elementos que podem soar como intervenções deslocadas e arbitrárias sobre aquilo que documentam. Mas o que sabemos nós, público da arte e do cinema contemporâneo, sobre essas pessoas que vemos, sobre seus gostos, sobre seus imaginários? Por que supor que tal exuberância e exagero sejam alheios àquele universo? Se o risco em questão é o de que os artistas estejam se atrevendo a falar por essas pessoas, o que nos autoriza, a uma distância ainda maior, a nos doermos por elas? De onde vem o desconforto? Tenho a impressão de que esses trabalhos nos flagram na suposição de que certos conteúdos tão distantes de nosso gosto erudito não mereçam o investimento de olhares que já deram mostras de seu refinamento. Para resolver esse curto-circuito entre bom e mau gosto é mais confortável tratar essa relação como paródica ou denunciar uma distância que, no final das contas, é nossa.

Os filmes revelam pessoas confortáveis em suas performances, ao mesmo tempo em que a narrativa se revela descaradamente dirigida. Para resolver esse paradoxo, é preciso entender que popular não é sinônimo de vernacular, essa cultura que supomos tão espontânea e intocada que parece brotar da terra. A oposição entre o espontâneo e o construído se dissolve quando percebemos que as pessoas filmadas já entendiam suas produções como imagem, como montagem, como pose, como retórica, como artifício.

Neste caso, a negociação parece calculada demais para que se possa falar em empatia. Mas, após um longo histórico de parcerias com pessoas e grupos tão diversos, difícil negar que exista ali uma sensibilidade e um pacto bem construído nesse cruzamento de autorias. Essa sensibilidade está na capacidade que a dupla tem de interpretar as potências de uma estética que segue em busca de suas materialidades possíveis e de negociar um modo de atuar nessa abertura. A questão não é saber se esses grupos chegariam por si mesmos a esses resultados, mas se, uma vez que tenham sido alcançados, se reconhecem neles.

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Por fim, penso no modo como Pierre Verger – francês formado por pelo Musée de l’Homme, instituição que tem em seu currículo uma forte atuação colonialista – pôde vivenciar tão profundamente, com o olhar e com o corpo, as tradições Iorubá que descobriu no Brasil e na África. A identificação não é uma coincidência que se descobre. É um processo, um movimento que permite que alguém se descubra em algo que está no entorno e que, a partir de então, será sentido como algo que o constitui. Difícil operar isso por meio de uma fórmula, por um domínio puramente técnico. Ainda que haja encontros bem-sucedidos, não se pode reproduzir essa experiência em laboratório, muito menos em cativeiro. Mas, assim como Geertz percebeu que o sentimento de ser estrangeiro começa não à beira d’agua, mas à flor da pele, será que o pertencimento não consegue às vezes alcançar a outra margem do rio? Ou mesmo uma praia distante? ///

 

Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.

 

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