Loving Story
Publicado em: 19 de agosto de 2015
Mildred Jeter e Richard Loving nunca almejaram ser famosos. A índole de ambos era temperada. Haviam nascido e crescido numa região rural isolada do estado da Virgínia, onde a vida transcorria mansa para os padrões americanos da primeira metade do século passado. Tampouco pretendiam fazer história ou entrar para o calendário americano com uma data comemorativa dedicada a eles. Eram apenas dois jovens apaixonados e felizes. Richard, aos 24 anos, tinha cabelo escovinha, olhos azuis-celestes, estampa de astronauta e físico de quem trabalhava na construção civil a céu aberto. Apesar de socialmente xucro e de pouca conversa, era um grandalhão doce que se derramava de amor por Mildred.
A longilínea gazela cor de jambo, filha de pais multirraciais, enfeitiçara-o desde rapazote. Namoraram durante anos sem gerar estranheza entre vizinhos ou familiares, porque naquela região da Virgínia, Caroline County, o trespasse racial havia se generalizado ao arrepio de uma legislação ainda draconiana.
Certos de terem encontrado no outro a pessoa sonhada para compartilhar a vida inteira, Richard e Mildred decidiram casar quando a noiva, grávida, completou 18 anos. Iriam constituir família, envelhecer lado a lado e ser felizes para sempre. Coisa simples. Ou quase.
Os noivos sabiam que nos Estados Unidos de 1958 nem tudo era simples assim. A começar pela Virgínia, um dos 24 estados americanos em que o casamento entre brancos e negros continuava proibido. Viajaram então 145 quilômetros para legalizar a união em Washington, a capital do país, no vizinho distrito de Columbia. Retornaram no mesmo dia radiantes, de papel passado como sr. e sra. Loving. Raras vezes um sobrenome foi tão ditoso.
Tiveram cinco meses de calmaria na modesta casa de Central Point, onde as noites eram envoltas em silêncio infinito e escuridão profunda. Nada, portanto, poderia tê-los preparado para o despertar traumático da madrugada de 11 de julho de 1958, em que foram arrancados da cama para a realidade.
Dormiam enlaçados com a certidão de casamento amorosamente emoldurada na cabeceira da cama quando potentes fachos de lanterna miraram seus rostos enquanto uma cacofonia de vozes hostis tomava conta do quarto. Literalmente debruçado sobre o casal estava o temido xerife local. Viera acompanhado de dois sub-xerifes e tinha em mãos o mandado de prisão contra Richard e sua nigra (termo que designava filhas de pai negro e mãe índia). O diálogo foi breve:
“Por que vocês estão na mesma cama?”
“Sou a esposa dele”, respondeu Mildred.
“Não na Virgínia.”
Forçados a sair da cama e vestir-se às pressas, foram levados para a prisão local e, ainda atordoados, colocados em celas separadas. Por ser branco, Richard teve direito a pagar fiança e ser solto no dia seguinte. Mildred, não.
A pena mínima por violação da Lei de Integridade Racial da Virgínia era de um a vinte anos de prisão em regime fechado. Ou então, “banimento imediato do estado por um período de 25 anos, sem permissão de retornarem juntos ou em separado à Virgínia no mesmo período”.
Assim, única maneira dos recém-casados poderem ficar juntos era o exílio. Aceitaram a condenação de viver um quarto de século longe dos pais, dos amigos de sempre e da terra que os moldara.
Foram acolhidos de favor na casa de uma prima em Washington, mas a vida na cidade grande os assustava. A mesma capital do país que lhes parecera tão esfuziante no dia do casamento agora sugava sua energia e alegria. Sentiam falta dos horizontes abertos, da vida cadenciada do campo.
Começaram a se arriscar. De início retornavam a Caroline County para visitas em separado. Pouco a pouco passaram a cruzar a fronteira um de cada vez, viviam alguns dias felizes escondidos na antiga casa e retornavam a Washington separados. Porém, cada partida representava um novo dilaceramento. Ainda assim, Mildred fez questão de parir os três filhos na Virgínia de seus ancestrais.
A corda esticou demais em 1963, quarto ano de banimento do casal Loving. Faltavam outros 21 até o cumprimento total da pena quando uma das crianças foi atropelada em Washington e o medo de uma tragédia ocorrer longe de casa se tornou real. Coube a Mildred, a mais letrada do casal, jogar ao mar um pedido de socorro. Aconselhada pela prima, fez um minucioso relato da situação familiar e o endereçou ao procurador-geral dos Estados Unidos, cargo à época ocupado por Robert Kennedy, irmão do presidente que seria assassinado em Dallas poucos meses depois.
Ela não poderia ter escolhido melhor destinatário. Bobby Kennedy não apenas leu sua carta como encaminhou a missivista ao combativo amparo jurídico da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês). A partir daí, seu caso, assumido com entusiasmo por Bernard Cohen e Philip Hirschkop, dois advogados recém-saídos da faculdade, deixou de ser uma entre tantas histórias de vidas atrofiadas pela cor da pele para entrar na história oficial dos direitos civis nos Estados Unidos.
Richard e Mildred Loving não sabiam que não haveria mais retorno ao anonimato: estavam destinados a se tornar cause célèbre. E quem os tirou do casulo, revelou seu rosto, sua alma, sua voz e sua dimensão nacional foi o fotógrafo Grey Villet, da lendária revista Life.
Fazer parte do staff permanente da publicação que revolucionou o ensaio fotográfico significava chegar ao topo da carreira, e Villet conseguira uma vaga no seleto time por extravasar tenacidade e audácia. E talento, certamente.
Nascido numa região desértica da África do Sul, ele era filho de médico e parecia condenado a seguir a carreira do pai quando largou a faculdade de medicina e descobriu o universo da fotografia. Escapuliu para Londres, iniciou-se na profissão aos vinte anos num jornal local e pouco depois já estava contratado pela agência Reuters. Em 1954 bateu à porta da Life em Nova York com o portfólio debaixo do braço, sem conhecer ninguém.
Sempre que o veterano farejador de talentos John Bryson, editor de fotografia da revista, recebia um portfólio que lhe parecia vagamente promissor, chamava o candidato e passava uma pauta-teste. Pauta deliberadamente tediosa, acrescente-se.
A de Villet tinha por título genérico “Homem-pombo”. A tarefa consistia em fazer algo original sobre um personagem já exaustivamente fotografado, que todos os dias alimentava milhares de pombos nas escadarias da gloriosa Biblioteca Pública situada na esquina da Quinta Avenida com a rua 42. Villet quase retornou à redação derrotado, sem bater uma só chapa, pois o sujeito dos pombos simplesmente sumira. Foi salvo por um estalo de criatividade que lhe garantiu a vaga. Arriscou um plano B. Subiu até o quinquagésimo quinto andar de um arranha-céu vizinho à biblioteca e convenceu os funcionários de um dos escritórios em horário de almoço a deixá-lo fazer algumas fotos da janela. Autorização concedida de boa-fé, pois o grupo imaginou que ele se aproximaria da janela para captar a magnífica vista de Manhattan à sua frente. Mas qual não foi o pânico de todos quando Villet abriu as vidraças, sentou o corpanzil de 1,95 m sobre o peitoril, voltou o foco da lente para o precipício urbano e deixou os pés abanando como pombos sobrevoando a biblioteca lá embaixo.
Conseguiu bater antes de ser puxado de volta para dentro do escritório. Elas lhe garantiram o emprego sonhado e o respeito instantâneo dos colegas veteranos. Além disso, seu rompante entrou para os anais das famosas provas-testes da Life com o título original inalterado: Pigeon Man, 1955.
O recém-chegado integrou-se rapidamente ao consagrado time da revista e já em 1955 ganhou o prestigioso prêmio de Fotógrafo do Ano, primeiro de uma notável coleção de honrarias por seus ensaios em preto e branco. Assim, uma década depois de aportar em Manhattan sem conhecer uma só alma, Villet teve o talento e o arrojo reconhecidos na meca do fotojornalismo. Só que esse arrojo sempre foi estritamente profissional. Na maneira de ser, o sul-africano conservava o jeitão sereno e compassado de quem aprendeu a ser gente numa região isolada como o deserto de Karoo.
Talvez tenha sido essa índole aquietada de Grey Villet que desarmou o casal Loving quando o fotógrafo bateu à sua porta em abril de 1965. Tinham em comum o apreço ao silêncio.
Por viverem num limbo jurídico, Richard e Mildred continuavam retraídos. Não mais escondidos e se esgueirando pela fronteira da Virgínia, pois seu caso corria oficialmente com recurso na justiça. Contudo, não sabiam se ou quando poderiam sentir-se legalmente marido e mulher, se viveriam presos ou livres, se a liberdade multirracial de seus filhos seria de repente tolhida.
Os sinais continuavam contraditórios. De um lado, o mundo havia mudado bastante desde os tempos da sentença de 1958. Na década do “paz e amor” em que Bob Dylan entoava The Times They Are a-Changin’, a dupla de advogados Cohen e Hirschkop apostara ter chegado a hora para pedir a revisão da pena ao juiz local que condenara o casal em primeira instância. Só que para juiz Leon Bazile, de Caroline County, o tempo continuava parado. “O Deus Todo-Poderoso criou as raças branca, negra, amarela, malaia e vermelha e as colocou em continentes separados”, sentenciou pela segunda vez. “O fato de Ele ter separado as raças é prova de que não pretendeu que se misturassem.”
No recurso encaminhado à instância seguinte, a Corte Federal de Apelação da Virgínia, o veredicto foi idêntico. A esperança dos Loving virara um fiapo.
Do ponto de vista jurídico, nada mais havia a esperar ou fazer. Exceto, é claro, encaminhar o caso à Suprema Corte dos Estados Unidos e torcer pela minguada chance de Loving vs. Virginia ser aceito para apreciação do tribunal constitucional mais alto no país. Os dois causídicos decidiram tentar. Na hipótese do Supremo aceitar o caso, o que já seria um feito considerável, não seria proibido sonhar que votassem pela aprovação do casamento multirracial no país.
Para os dois advogados, tratava-se de uma batalha cívica, moral e ideológica visando à erradicação da última grande peça de legislação racista dos Estados Unidos. Eles batalhariam o tempo que fosse, eram jovens. Tão jovens, por sinal, que ainda lhes faltava o tempo mínimo de exercício da profissão para terem o direito legal de submeter uma petição à Suprema Corte – tiveram de se associar a um colega sênior para dar entrada no caso Loving.
Richard e Mildred também persistiriam o tempo que fosse necessário, mas não para figurar nos anais do Movimento pelos Direitos Civis; aliás, a militância jamais os atraiu. Queriam apenas poder viver sem sobressaltos a história de amor que haviam escolhido para si.
Grey Villet passou duas semanas observando o casal para a reportagem que os exporia pela primeira vez ao país. A tiragem da Life então era de 8,5 milhões de exemplares semanais e a curiosidade em torno de personagens já célebres porém desconhecidos era grande.
Villet fez o mais difícil para um fotógrafo: fez-se ausente, evitou brilhar, deixou fluir aquelas vidas serenas. Cada frame de seu ensaio transmite a cumplicidade amorosa do casal, o respeito mútuo da relação entre Richard e Mildred, a naturalidade do cotidiano multirracial da família inteira, filhos e avós incluídos. Nenhuma das imagens é posada, todas são instantâneos da vida em movimento, à luz natural.
Publicado na edição de março de 1966 sob o título O crime de estar casado, o ensaio pegou os Estados Unidos de surpresa. Na época, havia perto de meio milhão de casamentos mistos no limbo no país, e Mildred contagiou os leitores com a força e a simplicidade de sua lógica: “Nós nos amamos e casamos. Não contraímos matrimônio com o Estado. A lei deveria permitir a cada um casar com quem quiser”.
Um ano após a publicação da reportagem, a Suprema Corte marcou a audiência que decidiria o mérito do caso. O advogado Bernard Cohen correu ao encontro dos Loving com as alvíssaras e querendo convencer o casal da importância de sua presença na sessão de arguição. Perdeu seu tempo. Richard logo se declarou por demais privado e avesso a exposição tão direta. Homem de poucas palavras, apenas pediu que o defensor anotasse o que tinha a dizer aos nove justices em Washington: “Diga à Corte que amo minha mulher e não acho justo não poder viver com ela na Virgínia”. Mildred também decidiu ficar em casa – aguardaria ao lado de Richard o veredicto final do Estado sobre suas vidas.
O caso Loving vs. Virginia foi a julgamento no dia 12 de junho de 1967. Por voto unânime, os nove juízes declararam inconstitucional não apenas a Lei de Integridade Racial da Virgínia, que datava de 1924, como toda e qualquer legislação antimiscigenação do país. A relatoria da histórica decisão coube ao presidente da Corte, Chief Justice Earl Warren. Uma das frases de seu texto de meio século atrás chegou a ser reutilizada em 2015 na luta em favor do casamento gay aprovado agora: “A liberdade de casar é reconhecida como um dos direitos essenciais e vitais da pessoa na busca da felicidade de todo homem livre”.
Finalmente livres para serem legalmente sr. e sra. Loving, inclusive na Virgínia, Richard pôs-se a construir uma nova casa para a família no terreno herdado do pai. Em Caroline County, é claro. Ali viveram por oito anos a “felicidade de todo homem livre” citada pelo juiz Warren. Até que, numa tarde de junho de 1975, um motorista alcoolizado perdeu a direção e bateu no carro dos Loving. Richard morreu na hora. Mildred perdeu um olho, mas nunca se queixou do destino. Resumiu assim sua existência: “Casei com o único homem que amei e fomos felizes. Hoje estou rodeada de filhos e netos maravilhosos e sei o quanto significou para mim a liberdade de poder escolher”.
Mildred morreu de pneumonia aos 68 anos, em 2008, pouco antes da publicação de um estudo que a teria alegrado. Segundo a pesquisa realizada pelo Centro de Pesquisas Pew, quatro décadas depois do voto da Suprema Corte sobre miscigenação o número de casamentos multirraciais ou multiétnicos entre jovens americanos aumentara em 300%, representando um em cada sete uniões.
Para sorte dos filhos e netos do casal que preferiu viver na sombra dessa epopeia, um documentário de 2010 permitiu que revivessem a dimensão histórica do sobrenome que portam. The Loving Story, de Nancy Buirski e Elisabeth Haviland James, está ancorado nas setenta fotografias 24 x 30 que Grey Villet deixara com o casal, além de filmes inéditos de 16 mm e dos noticiários da época.
Desde sua estreia pelo canal HBO, o documentário tem sido exibido a cada 14 de fevereiro, o Valentine’s Day nos Estados Unidos, e integra a programação nacional do Black History Month, o mês de celebração anual da história da diáspora africana. Mas é a cada dia 12 de junho, data do histórico voto de 1967, que The Loving Story alcança sua audiência máxima em todo o país. Há mais de quatro décadas esse dia, chamado nacionalmente de Loving Day, vem sendo comemorado com eventos multiculturais e com a celebração em série de casamentos mistos.
A contribuição vital de Grey Villet para toda essa história foi ter conseguido traduzir em imagens o cotidiano de duas pessoas decentes e comuns, e ao mesmo tempo tão excepcionais. Seu ensaio fotográfico mostrou que, apesar de aprisionados numa muralha de leis impessoais, Richard e Mildred tocavam os afazeres, compartilhavam silêncios e desfrutam do que podiam como todo mundo. Villet conseguiu fazer da cor da pele do casal um elemento meramente incidental. Através de suas lentes, Richard e Mildred começaram a ser vistos como de fato eram.
Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.
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IMAGENS © ESTATE OF GREY VILLET
A revista ZUM envidou todos os esforços para entrar em contato com os detentores de direitos de imagem e texto e agradece toda informação suplementar a respeito.
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