Colunistas

Independência do Brasil, Debret e violência colonial

Moacir dos Anjos Publicado em: 26 de maio de 2022

Um jantar brasileiro, colagem digital de Gê Viana da série Atualização traumática de Debret, 2021. Cortesia a artista.

No ano que marca os 200 anos da independência do Brasil de Portugal – independência formal do colonizador europeu que ocupou à força esta porção do mundo já habitada por muitos outros povos –, é importante atentar para a memória que se possui daquele tempo no país. Memória informada, em importante medida, pelas pinturas, desenhos e gravuras em que artistas fixaram os modos de viver no Brasil nas primeiras décadas do século 19. A despeito de qual tenha sido, em cada caso, a motivação íntima de seus autores ao criá-las, são imagens que, quando consideradas em conjunto, constituem um contundente inventário da ocupação desigual de lugares pelos corpos que então habitavam o país. Imagens produzidas ou concebidas, em sua maior parte, por artistas estrangeiros, trazidos para a terra colonizada pelos donos do poder desde quase o início de sua ocupação, e que tinham como objetivo oficial registrar – por razões políticas ou científicas – a natureza e a cultura de um mundo em formação. Essas representações da construção social do Brasil, feitas por aqueles usualmente chamados de “viajantes”, constituem parte importante do que se convencionou chamar de brasiliana – coleções de informações visuais (por vezes acompanhadas de textos) que tematizam o país do ponto de vista do colonizador e que, ao fazê-lo, reforçam uma relação de dominância.

Um dos maiores dinamizadores da presença de artistas viajantes no Brasil foi a criação, em 1816, da chamada Missão Francesa no país, resultado do desejo do Estado francês de se aproximar do Reino português após o desmanche do regime bonapartista. Por meio da vinda de artistas e arquitetos que se instalaram por anos no Rio de Janeiro, a Missão Francesa contribuiu para a instituição de uma escola de belas artes nos moldes das existentes na França e para o início do que se pode considerar, em termos canônicos, um campo artístico no Brasil. Entre os artistas que constituíam essa Missão, incluía-se, com destaque, Jean-Baptiste Debret (além do pintor Nicolas-Antoine Taunay e do arquiteto Auguste-Henri Victor Grandjean de Montigny), residente no país entre 1816 e 1831. Realizador de pinturas que retratavam cenas da vida oficial e da Corte, Debret foi também autor de desenhos e aquarelas que buscavam fixar, em imagens, o cotidiano do Rio de Janeiro no período que imediatamente antecede e sucede a declaração da independência do Brasil. São trabalhos em que caracterizava, para além do interesse que porventura pudesse ter na arquitetura das casas e edifícios da cidade, muitos dos personagens que encontrava nas ruas. As aquarelas, em particular, serviriam como base para as gravuras publicadas pelo artista, em 1835, no segundo dos três tomos que, editados separadamente, compuseram seu conhecido livro de litografias Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, que ao todo continha 220 imagens distribuídas em 153 pranchas.

Com ênfase quase monótona, o artista exibe, nesses desenhos e aquarelas, a inserção de homens e mulheres negros como mão de obra escravizada no ambiente urbano brasileiro daquela época. Em vários deles, mostra-os executando serviços diversos em proveito de seus senhores. Serviços como o transporte de potes e cestos de alimentos, transporte de gente branca em trânsito para casa ou igreja e de materiais usados na edificação de moradias. Exibe também cenas da comercialização de comida e de coisas miúdas feita pelos chamados “negros de ganho”, que, como a denominação sugere, tinham que repartir, com seus proprietários, qualquer lucro que obtivessem com a venda de seus produtos. São imagens que bem ilustram a distribuição de corpos vigente nas ruas da que era então a mais importante cidade do Brasil (e, por extensão, também em muitas outras do país), em que aos de cor negra cabia o trabalho forçado, enquanto aos de cor branca cabia o benefício desses esforços. Torna-se revelador de sua autoria, entretanto, que, a despeito de exporem uma relação de desigualdade tão extrema, quase todas essas aquarelas exibam os corpos escravizados como fortes, saudáveis e aparentemente dispostos às muitas tarefas que lhes são atribuídas como ordens, escamoteando ou amenizando as violências ali implicadas. É somente em algumas poucas dessas imagens que o artista expõe o que resulta a esses homens e mulheres em caso de qualquer falta às regras impostas ou de recusa a aquiescer ao poder de mando dos que se proclamam seus donos: espancamentos e sevícias conduzidos em espaços privados ou públicos como atos de reafirmação das formas como se dispõem e se relacionam os corpos na ordem escravocrata.

Assentar um naturalista e pássaros, aquarela de Dalton de Paula, 2019. Crédito a foto: Paulo Rezende. Cortesia do artista e da Sé Galeria.

Esses trabalhos de Jean-Baptiste Debret contribuem para delimitar aquilo que, no Brasil daquele tempo, possuía visibilidade social e poder explicativo sobre um mundo que então se construía. São imagens que desvelam um lugar de vida cindido e radicalmente desigual em termos do acesso que corpos brancos e não-brancos possuíam a uma existência autônoma e resguardada. Partição que não se ampara em quaisquer razões naturais e que se projeta e se atualiza ao longo do tempo por meio de violentos processos materiais e simbólicos entrelaçados, alcançando e marcando também o Brasil atual. Representações que, ademais, descrevem os africanos e afrodescendentes escravizados como homens e mulheres acomodados a uma posição subordinada e de subjugação ao colonizador, com frequência minimizando não apenas toda violência implicada no sistema escravocrata, mas a continuada resistência que aquela população oferecia a essa desigual distribuição de corpos nos lugares diversos onde a vida então se desenrolava.

A normalização desse olhar europeu sobre as regiões invadidas e colonizadas ultrapassa, porém, o próprio período em que foi materializado nessas imagens pelo artista francês, bem como por tantos outros que contribuíram para a formação da brasiliana. São imagens que fundamentam também a memória que, séculos depois, comumente se possui daquele período no Brasil. Memória atualizada por meio da reprodução acrítica daquelas cenas (ou em outras baseadas nelas) em livros escolares de história e em produtos culturais diversos, tais como exposições, filmes, telenovelas, propagandas, selos e cartões postais, além de serem comumente estampadas em objetos variados de consumo, de roupas a calendários, ou mesmo decorando salas em restaurantes, clínicas e repartições públicas. Uma memória da qual foram apagadas muitas das brutalidades coloniais e, de modo ainda mais evidente, silenciada a continuada oposição a essa condição de abuso físico e mental. Memória que exclui os símbolos, ideias, imagens, crenças e modos de viver que não importavam para o projeto de domínio europeu, impondo-se, em seu lugar, aqueles que são de interesse do colonizador. Uma memória seletiva, portanto, que é igualmente um modo de dominar mesmo após o término formal do colonialismo como ordem política. Memória que integra o que o sociólogo peruano Aníbal Quijano certa vez chamou de “colonialidade cultural”, resultado de um processo em que “a cultura europeia passou a ser um modelo cultural universal”, informando os modos de pensar, de agir e de lembrar dos habitantes de colônias e ex-colônias.

Artistas contemporâneos brasileiros têm tomado imagens feitas pelos artistas viajantes como objetos de suas investigações somente para inscrever nelas – ou delas extrair – significados que guardam em potência. Para mostrar como elas promovem uma história narrada e imposta pelos colonizadores europeus, a qual sonega ou ameniza abusos graves cometidos contra povos indígenas e contra homens e mulheres negros escravizados no país. São artistas que se debruçam criticamente sobre uma memória visual comum, naturalizada e quase apaziguadora que se tem de um Brasil distante no tempo. E que, por isso, terminam por decolonizar a brasiliana, pondo à vista as relações de poder e de subordinação extrema que permitiram e orientaram, de modo menos ou mais consciente ou explícito, a feitura daquelas influentes representações. As aquarelas e gravuras de Jean-Baptiste Debret, em particular, têm sido confrontadas por vários artistas em seus trabalhos, talvez por serem as que mais tenham sido reproduzidas em mídias e suportes diversos desde a época em que foram feitas. E que, por isso, permitem atar a época em que o país obteve sua independência formal de Portugal e o tempo de agora, dois séculos depois. Dá-se notícia aqui de três desses projetos.

 

Refino #5 (pés), de Tiago Sant’Ana, 2018. Cortesia do artista.

1 – Tiago Sant’Ana vem construindo obra em que propõe inflexões em narrativas vigentes sobre o passado colonial do Brasil a partir de um campo sensível amplo, valendo-se de performance, fotografia, vídeo, escultura, desenho, instalação e pintura. Em diferentes trabalhos de sua trajetória, usa o açúcar como matéria construtiva ou como lastro simbólico a partir do qual inventa imagens, formas e gestos. Centralidade justificada pelo fato de o cultivo da cana e a produção do açúcar terem sido o esteio concreto para o estabelecimento da empresa colonial no Brasil, ainda em meados do século 16. Atividades que assumiram papel central na formação econômica do país e moldaram, desde então, as relações sociais e formas culturais nele dominantes. No conjunto de fotografias intitulado Refino #5 (pés), realizado em 2018, é possível ver, cercados por uma superfície branca e espessa feita de açúcar, pés de homens e mulheres negros em movimento. Pés descalços que pisam o chão empoeirado da rua ou uma esteira de juta no interior de aposento qualquer. As imagens parcialmente veladas pela matéria branca são reproduções de aquarelas feitas por Jean-Baptiste Debret – descrições sintéticas da assimétrica distribuição de corpos brancos e negros no país em inícios do século 19, em que aos últimos cabia o trabalho obrigado e a dor da sujeição em esferas várias da vida. O destaque dado aos pés negros descalços em imagens quase totalmente submersas em açúcar evoca o fato de que não era permitido, a homens e mulheres escravizados, o uso de sapatos para proteção dos pés. Ausência de calçados como índice da violência sobre corpos negros que funda o Brasil e que, modificada, é trazida para além do fim formal do trabalho escravo no país. Violência que continua a ser atualizada dois séculos depois de quando foi figurada em aquarelas do artista francês.

Assentar volta à cidade de um proprietário de chácara, aquarela de Dalton de Paula, 2019. Crédito a foto: Paulo Rezende. Cortesia do artista e da Sé Galeria.

2 – Em uma série de desenhos feitos em 2019 (todos produzidos com nanquim e aquarela), Dalton Paula replica, transformadas, pouco mais de uma dezena de aquarelas feitas por Jean-Baptiste Debret no Rio de Janeiro, próximo ao momento da declaração da independência do Brasil. Aquarelas que são equivalências visuais para os trabalhos urbanos exercidos por negros e negras escravizados no país. São duas as principais mudanças que promove nos trabalhos do artista francês: exclui todos os corpos brancos das aquarelas que toma como modelo e substitui os corpos negros que lá havia por imagens de uma mesma cadeira feita de madeira e palha trançada, típica de casas senhoriais da época. Os títulos dos desenhos de Dalton Paula incluem partes dos títulos das aquarelas de Debret a que remetem, embora acrescentando, em seu começo, o infinitivo do verbo assentar, como a exprimir, no uso dessa palavra, o que sua operação visual já declara. Assentar volta à cidade de um proprietário de chácara; Assentar senhora indo à missa; Assentar vendedor de cebola; Assentar vendedor de linguiça; Assentar fatias de coco; Assentar vendedor de pó de sapato; Assentar banha de cabelo bem cheirosa, entre outros mais. Associa seus trabalhos, desde logo, a uma denúncia de abusos e a uma demanda por repouso e cuidados. Associa-os, também, à proclamação do direito de as pessoas escravizadas se assentarem em suas vidas, deixando de serem usadas como instrumento de realizar extenuantes tarefas para vantagem alheia. Finalmente, tomando-se o verbo assentar como aquele que designa o ato de realizar assentamentos, é legítimo pensar que esses desenhos querem ser oferecimentos às divindades a que homens e mulheres negros escravizados recorriam para apaziguar suas aflições e para fortalecerem-se na luta por seu livramento. Oferecimentos que transformam imagens de racismo e subordinação em imagens votivas para um futuro no qual exista uma outra distribuição de corpos nos espaços em que se partilha a vida.

 

Levantamento do mastro – Festa do Divino Espírito Santo, colagem digital de Gê Viana da série Atualização traumática de Debret, 2020. Cortesia a artista.

3 – Na série Atualizações traumáticas de Debret, iniciada em 2020, Gê Viana revisita um conjunto de aquarelas criadas pelo artista francês durante sua estada no Brasil e altera, por meio do que chama de colagens digitais, os modos como corpos negros são ali figurados, redistribuindo as posições que ocupam em cenas que seriam próprias da vida no Rio de Janeiro em inícios do século 19. Se, em uma aquarela de Jean-Baptiste Debret, homens e mulheres negros escravizados se colocam de pé junto à mesa em que senhores brancos comem – sempre a postos para servi-los –, Gê Viana refaz a imagem assentando os primeiros nas cadeiras de comer. Em outro trabalho, transforma a cena de açoite público de um homem negro em imagem de celebração religiosa e festiva. Em um terceiro, altera a representação de trabalho forçado que movimenta uma moenda de cana-de-açúcar em composição que exibe a produção de enormes cogumelos coloridos. E o que era descrição visual de violência contra trabalhadores escravizados em sapataria se torna, em uma quarta releitura da obra de Jean-Baptiste Debret, cena de loja de ervas em que um grupo de pessoas negras trabalha pacificamente. São atualizações de descrições da violência colonial no Brasil que imaginam o quão diferente poderia ter sido a vida daqueles homens e mulheres negros retratados ali, não houvessem sofrido o tanto que sofreram. Trabalhos que exploram, tal como o faz a historiadora Saidiya Hartman em seus estudos sobre a escravidão, “as capacidades do subjuntivo (um modo gramatical que expressa dúvidas, desejos e possibilidades)”. E que implicitamente indagam, a qualquer um, o que pode e deve ser feito agora para que o sofrimento não seja ainda o que marca a vida dos que vieram depois. São trabalhos que imaginam, em meio à lembrança da dor, a cura como projeto.

Feitos no Brasil do século 21, os projetos desses três artistas revisitam representações do Brasil à época de sua independência formal do colonizador europeu para, de diferentes maneiras, “iluminar a intimidade” da experiência dos que vivem agora com as vidas dos que há muito morreram. São trabalhos que demandam que o presente precisa ser “interrompido por esse passado” para que seja possível conceber, desde o campo do sensível, um tempo outro, que divirja radicalmente da memória da dor inscrita (mesmo e sobretudo quando apaziguada) nas aquarelas feitas por Jean-Baptiste Debret. Ao submeter essas imagens – parte nuclear da brasiliana – a uma crítica e desmonte a partir do Brasil contemporâneo no qual vivem, os autores desses trabalhos sugerem ser impossível considerar a independência do país sem pesar o quanto ela ainda é projeto excludente e inconcluso para a maior parte dos que vivem nele. Aliam-se, a partir do espaço da invenção artística que lhes é próprio, a esforço político urgente e mais amplo de reinventar o Brasil. ///

 

Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010)Local/global: Arte em trânsito (2005) e Contraditório. Arte, globalização, pertencimento (2017) entre outros volumes e ensaios em livros.

 

 

Tags: , ,