A imagem na política: a revanche da fotografia contra o meme
Publicado em: 10 de fevereiro de 2023Quem não notou a presença obstinada daquele homem de cabelos compridos, portando uma câmera, às vezes duas, sempre na cola de Lula? Na campanha, nos discursos de vitória e na solenidade de posse, o fotógrafo Ricardo Stuckert chamou atenção pela liberdade com que atravessava os protocolos dos eventos, pelo modo como posicionava a lente a um palmo do rosto de Lula e pela autoridade com que, às vezes, dirigia a cena. Nesse momento tão importante da nossa história política, o fotógrafo se tornou personagem: sua trajetória profissional foi relembrada por diversas reportagens, sua imagem bombou nas redes e virou meme, e sua performance ganhou edições do tipo “melhores momentos”.
Stuckert já tinha uma carreira sólida no fotojornalismo quando, em 2002, foi convidado a integrar a equipe de comunicação de Lula, no final da campanha presidencial que conduziu à sua primeira vitória. Manteve-se no posto durante os dois mandatos. Acompanhou o presidente em todos os eventos oficiais, em viagens internacionais, nos encontros com personalidades, no corpo a corpo com a militância, também nos churrascos e nas “peladas”. Com muita discrição, acompanhou também sua vida familiar. Construiu um arquivo sem precedentes. Quando Dilma foi eleita, imaginou que esse ciclo havia se encerrado. Mas novas missões ao lado do ex-presidente não demoraram a chegar: fora do Executivo, a vida de Lula permaneceu agitada e, assim, também a de Stuckert.
Protagonismo da imagem
A parceria que se formou entre Stuckert e Lula é muito singular. Tem a ver com confiança e com o encaixe que foi se formando entre as habilidades do fotógrafo e as necessidades do político. Mas tem também a ver com certo lugar de protagonismo que a imagem alcança na atualidade. O espaço que Stuckert conquistou é também a primazia de que goza a imagem no universo da política.
Qualquer pessoa que viva de sua vida pública guarda um lugar privilegiado para os profissionais da imagem. Duas ou três décadas atrás, essa era uma exigência restrita a certo grupo de pessoas famosas: atores, músicos, atletas, jornalistas e, claro, alguns políticos. A internet abriu espaço para celebridades de nicho, os influenciadores, pessoas que compartilham sistematicamente suas vivências em qualquer tema: viagens, moda, restaurantes, investimentos, saúde, cultura, sexualidade etc. Podem eventualmente não ter outra expertise que não a de fazer circular suas imagens, falando de qualquer coisa que venha à cabeça e exibindo-se em qualquer lugar em que esteja. São registros de suas realidades. Mas, em muitos desses casos, é a imagem que roteiriza a vida que supostamente registra. Para muitos pensadores, essa inversão de papéis esvazia o sentido do real e produz alienação. Futilidades à parte, podemos pensar que as imagens são parte inerente da vida social, de modo que elas não apenas reportam – de modo preciso ou impreciso – os acontecimentos: as imagens são, elas próprias, acontecimentos. Dito de outro modo, contar uma história é um modo de produzir a história.
As linguagens são parte da realidade humana. O que é novo é o modo sistemático como a habilidade de fazer circular imagens se torna uma forma vulgar de ganhar poder. Celebridades e, mais recentemente, também os influenciadores têm no domínio da imagem um cacife que lhes permite fazer sucesso e, eventualmente, disputar cargos públicos. Mas o que é incontornável é o fato de que políticos não sobrevivem hoje se não tiverem ao redor um aparato de produção de imagem semelhante ao dos influenciadores.
A disputa das redes
Sabemos que Barack Obama usou estratégias digitais – de comunicação e arrecadação – que foram revolucionárias no mundo da política. Mas, nesse momento, as redes ainda não tinham revelado todas as suas armas. Donald Trump e Jair Bolsonaro são exemplos mais claros do poder desmedido que se pode construir com a capacidade de fazer circular mensagens, independentemente de seus conteúdos: registros de factoides, memes, manifestações de ódio, teorias conspiratórias e fake news se tornam, nesses casos, discursos oficiais. “Elegemos um meme!”, disse de forma entusiasmada o usuário de uma rede que produzia conteúdos anônimos em favor de Trump. Redes de desinformação, contas falsas e robôs se tornam dispositivos estratégicos de comunicação institucional. Aqui, coletivas de imprensa foram substituídas por um “cercadinho” em que o presidente se dirigia a sua claque, onde também jornalistas eram frequentemente xingados. Bolsonaro nunca teve um fotógrafo oficial tão atuante, mas tinha à sua disposição uma máquina bem azeitada de produção de imagens.
A esquerda também está presente nas redes, igualmente sujeita a deslizes e violências, mas com “contas oficiais” moralistas demais para fazer frente à capacidade viral do discurso da extrema-direita. Foi essa defasagem que fez com que a aliança com André Janones, representante de uma esquerda mais agressiva nas redes, fosse considerada tão estratégica para a campanha de Lula.
Pouco disso tem a ver com a missão de Stuckert. Entre suas habilidades está a desenvoltura com que opera as tecnologias, que lhe permite, por exemplo, transmitir uma live com uma mão enquanto fotografa com a outra. Mas ele é zeloso demais com as imagens que produz para entrar nessa disputa que valoriza palavras de baixo calão, gestos agressivos e posturas nada estéticas. Tal brutalidade é cultivada com orgulho: para o bolsonarismo essa é uma imagem sem filtros que afronta o que supõe ser a linguagem ideologicamente contaminada da imprensa. Penso aqui a imagem num sentido alargado: a percepção que se constrói por meio de um universo de informações, incluindo a fotografia. Mesmo que acolha rompantes e falas impensadas, essas representações estão longe de ser puras. Existe sim um filtro, mais ou menos como aqueles que estavam disponíveis no aplicativo Hipstamatic, que emulava os defeitos de uma câmera barata. Com Bolsonaro descobrimos que, também na política, existe um fetiche em torno das imagens rústicas. Muitos comentaristas políticos viram nisso uma comunicação estratégica: todas as vezes em que Bolsonaro se viu diante de uma denúncia importante, uma grosseria qualquer dita, dentro de pautas mais tradicionais do politicamente incorreto, roubava a cena nas redes sociais.
Não é fácil enfrentar a extrema direita nesse campo de batalha: quando ela teve o privilégio de escolher os memes como arma política, essa guerra já estava decidida. Felizmente, as imagens históricas seguiam fazendo seu trabalho em silêncio. Já propus nesta coluna que os memes não são páreo para as imagens históricas, mesmo quando as distorcem: se os memes têm agilidade, as imagens históricas têm enraizamento. Na ocasião, Leo Índio, sobrinho do ex-presidente, havia postado uma montagem feita a partir de uma foto célebre de Evandro Teixeira, que mostrava um estudante caindo ao chão, perseguido por policiais, no período mais violento da ditadura militar. Na montagem, é Bolsonaro quem dá uma rasteira nesse estudante que, nas redes sociais, chegou a ser confundido com Lula. Enquanto um índio de mentira militava no “gabinete do ódio”, indígenas verdadeiros morriam. Morriam de muitas coisas, inclusive, de invisibilidade. Mas não se esconde um genocídio com memes. Hoje, Leo Índio está desempregado e, por ter participado das ações antidemocráticas do dia 08 de janeiro, seus endereços foram alvo de busca e apreensão pela Polícia Federal. Enquanto isso, novas imagens surgem, mostram os efeitos trágicos que as políticas do antigo governo produziram numa comunidade Yanomami, em Roraima, e se juntam à longa história de extermínio dessa população. Não é tarefa simples, mas, ao reparar invisibilidades, essas imagens também recobram do público sensibilidades perdidas e estabelecem limites à elasticidade que se pode dar às narrativas.
A disputa da história
O espaço conquistado por Stuckert também tem a ver com certo protagonismo que a imagem tem na política, mas suas estratégias visam efeitos de longo prazo. Conhecemos bem a trajetória de Lula: foi metalúrgico, líder sindical, foi peça chave na fundação do Partido dos Trabalhadores e no movimento Diretas Já, e foi derrotado em três eleições presidenciais consecutivas, em 1989, 1994 e 1998. Quando chegou como favorito ao pleito de 2002, seus aliados e seus inimigos sabiam que estavam prestes a testemunhar um momento histórico. Justamente por não haver unanimidade, sabiam também que haveria muitos modos de contar essa história. Essa virada de século marcou a disseminação da consciência de que o discurso histórico não brota espontaneamente dos acontecimentos, eles constituem um campo de batalha.
Quando Lula foi eleito, não bastava a ele ter seu retrato na Galeria dos Presidentes do Planalto, nem mesmo habitar os arquivos com registros de momentos solenes. Em grande medida, aquilo que lhe conferia singularidade histórica permanecia nas ruas: seu carisma, sua empatia com pessoas identificadas como periféricas, sua capacidade de falar para multidões e gestos surpreendentes de afeto que vinham de pessoas anônimas. Mesmo em missões mais oficiais, o presidente tinha uma capacidade única de arrancar das autoridades uma simpatia nada protocolar. Era preciso fixar essas cenas e demonstrar sua recorrência. É aqui que entra Ricardo Stuckert.
Diferente das imagens bombásticas e dos memes que viralizam nas redes, as imagens de Stuckert são parte de um investimento de retorno menos imediato. São imagens oficiais, controladas, tratadas, e são imagens ideológicas, como o fotógrafo mesmo já disse. Mas ele permaneceu a postos também em momentos menos favoráveis da vida de Lula: no tratamento contra câncer, no velório de D. Marisa Letícia, sua esposa, no enterro do neto. Stuckert conta que foi muito difícil ver, em 2018, Lula deixando o sindicato dos metalúrgicos em meio à multidão para se entregar aos agentes da Polícia Federal. Mas seu trabalho não podia parar: “aí você esquece um pouco a emoção e você tem que trabalhar. Por quê? Porque em algum momento isso vai ser contado”, disse ele. (documentário Visita, Presidente, Globo, 2022). Meses depois, a defesa de Lula solicitou ao STF autorização especial para que seu fotógrafo pudesse visitá-lo periodicamente na Superintendência da Polícia Federal de Curitiba, onde estava preso.
A imagem não é histórica de antemão. Há uma anedota que ouvi de Maurício Lissovsky: durante uma palestra, um fotógrafo perguntou a ele como se faz uma fotografia histórica. Lissovsky respondeu que, se pesa sobre isso alguma decisão, ela é do historiador e não do fotógrafo. Na dúvida, Stuckert produziu um grande arquivo de todas as conquistas de Lula, que ficará à disposição de quem queira contar sua história. Assim como o fotógrafo, esse acervo permanece de prontidão. E, mais do que isso, essas imagens militam para alcançar esse lugar. Naquele que foi o pior momento da vida política de Lula, Stuckert se tornava agente fundamental de uma narrativa de superação que começava a ser negociada. Quando essa superação se confirma, com a derrocada da Lava Jato, com a anulação do processo que resultou em sua condenação, com a nova candidatura e a vitória para seu terceiro mandato, vemos o fotógrafo entrar em cena com mais desenvoltura e mais espaço do que nunca. Ele é um dos mais importantes articuladores políticos nessa negociação de longo prazo que chamamos de história. O zelo que tem com suas fotos é o de quem imagina que cada uma delas poderá, um dia, ser impressa nos livros escolares das gerações futuras.
O compromisso que tem com esse projeto é passível de críticas. Desde que se colocou a serviço de Lula, Stuckert assumiu total controle não apenas das imagens clicadas, mas de todos os processos em torno delas: da organização dos arquivos, das demandas da imprensa, de sua veiculação nas contas oficiais. Ele cobre com exclusividade quase todos os eventos do Executivo e, quando não, decide quem poderá fotografar e de que lugar. Controla até mesmo registros feitos pelo celular por amigos e simpatizantes. No detalhado perfil dedicado a ele pela revista Piauí, Ana Clara Costa destaca a competência de Stuckert, mas observa o risco que o monopólio da imagem de Lula traz de produzir uma visão unilateral de sua história (O fotógrafo, dez/2022).
Nos primeiros dias do novo governo, a imprensa noticiou que Stuckert ocuparia a Secretaria do Audiovisual, mas a aposta não se confirmou. Fico imaginando como seria difícil para Lula substitui-lo no papel de fotógrafo oficial. Ele segue de prontidão. “Ricardo Stuckert possivelmente está com Lula neste exato momento”, disse Caio Ferreti numa reportagem escrita para a revista Trip, em 2010. Treze anos depois, a afirmação permanece certeira. Mas, depois das reviravoltas políticas dos últimos anos, ela adquire um peso bem diferente: num momento repleto de incertezas, num país que descobrimos tão sujeito a esquecimentos e retrocessos, em meio a uma guerra violenta de narrativas, sua câmera ocupa uma posição mais estratégica do que nunca. ///
Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.